O que “Some Girls”, “Tatto You” e “Undercover”, dos Rolling Stones, além de “Face The Heat”, do Scorpions, “Electric Café”, do Kraftwerk, têm em comum? Todos têm ligação com o alemão Hubert Kretzschmar, artista gráfico autor de capas desses discos famosos, além de pôsteres promocionais de trabalhos e turnês de gente como Björk, Pet Shop Boys, Depeche Mode, Jethro Tull, The Psychedelic Furs, The Dead Kennedys, Queen, Iggy Pop, Frankie Goes To Hollywood, Soft Cell, Tears For Fears, Orb, Yello, 50 Cent, Dead Boys, Yes e coloca etcetera aí.
Hubert Kretzschmar nasceu em 1954, em Karlsruhe, cidade do sudoeste da Alemanha, a poucos quilômetros da fronteira com a França. A cidade de pouco mais de trezentos mil habitantes é berço também de nomes como Karl Benz (criador do veículo automotor e cuja empresa acabou virando a Mercedes-Benz), Heinrich Rudolf Hertz (que descobriu as ondas eletromagnéticas), Karl Freiherr Von Drais (precursor da bicicleta e da motocicleta), Richard Willstätter (prêmio Nobel de Química), base da Universität Karlsruh, um dos maiores centros de pesquisa científica e de engenharia da Alemanha, e da Hochschule Karlsruhe, centro de referência em tecnologia.
Essa pequena cidade fervilha em pesquisas e descobertas. Kretzschmar cresceu em meio a esse ambiente de provocação pelo novo. Apesar das bos universidades, acabou se mudando pra Essen, em 1974, pra estudar na Folkwangschule, universidade de artes. Já formado, em 1978, foi pros Esteites, e se quedou em Nova Iorque, cidade que adotou e onde ainda vive. Foi ali que movimentou-se e construiu uma rede de conhecidos que o levou a assinar trabalhos tão importantes ligados à música popular jovem.
Na Cidade Que Nunca Dorme, aprimorou seu trabalho em ilustração e trabalhos pioneiros em colagens fotográficas, vídeo, escultura e, especialmente, computação gráfica. Se empolgou com a arte do grafite dos anos 1980, e Nova Iorque era um mundo de oportunidades nesse sentido. Acabou em galerias importantes e, daí, com grande ajuda do igualmente icônico desenhista Peter Corriston, que virou parceiro nos seus principais trabalhos, com os Rolling Stones, em especial a polêmica capa de “Some Girls”. Sua reputação no meio artístico o levou também a realizar trabalhos pra empresas como Apple, Sony, MTV, TimeWarner e Nike, por exemplo.
Ele é descrito de maneira perspicaz como “um (Tanino) Liberatore em Weimar, explorador de sua história cultural, enquanto desafia seu legado de tradição. Sua visão é composta de (Max) Beckmann, (Otto) Dix e muito do que a República aprovaria. Imagine (Albrecht) Dürer nos portões da era digital; um acontecimento ao longo das linhas limpas do De Stijl, impregnado da ironia crua do Dadaísmo; a fluidez do surrealismo combinou com a reverência irreverente da Pop Art”.
As referências do trabalho de Kretzschmar são tão amplas quanto a música que tenta-se rotular a partir dos anos 2000. Há sempre algo identificável, embora híbrido de muitos outros rótulos. É o reflexo da absorção de uma gama cada vez maior do leque da música pop. O esforço é parecer original a partir de pedaços assimilados. Kretzschmar conseguiu pegar suas referências alemãs de épocas mais distantes e transformar em algo moderno pra época.
Na capa de “Some Girls”, disco que o Rolling Stones lançou em 1978 (quando Kretzschmar tinha apenas 24 anos), o uso de imagens de rostos femininos famosos, intercalados com o rosto femininos dos quatro Stones, como se fosse uma propaganda de perucas dos anos 1950/1960, rendeu uma grande polêmica. O uso das imagens não-autorizadas de Lucille Ball, Marilyn Monroe, Farrah Fawcett, Judy Garland e Raquel Welch rendeu um processo contra a banda. A capa foi recriada mais três vezes, trocando os rostos, às vezes com textos no lugar de rostos, às vezes com os rostos só dos membros da banda, numa outra versão com outras mulheres. Em torno da polêmica, crescia o nome de Kretzschmar, com elogios até mesmo de Andy Warhol, cujos trabalhos a capa foi citada com comparações.
Ele contribuiu ainda com Corriston na capa de “Emotional Rescue” (1980). Mas foi a capa de “Tatto You” (1981) que foi considerada uma obra de arte pela técnica empregada.
A capa de “Undercover”, de 1983, é ousada, embora nada original, como se destaca o trabalho do artista, um sopão de referências. Ela remete diretamente ao trabalho de outra artista contemporânea a ele, Linda Sterling, autora da capa de “Orgasm Addict”, do Buzzcocks, lançado em 1977 (leia artigo completo aqui). Entretanto, enquanto Linda estava trafegando nos subterrâneos da música, Kretzschmar trabalhava com a maior banda de rock em atividade, expunha em galerias e museus (em Nova Iorque, Filadélfia, Zurique, Budapeste, Berlim, Tóquio, Düsseldorf e outros centros) e tinha entre seus clientes as grandes marcas do mundo.
Mas talvez seu trabalho mais impressionante (e original) seja mesmo o de “Electric Café”, do Kraftwerk, disco de 1986. O uso de computadores deu uma visão da banda que os fãs não tiveram antes. A bem da verdade, antes deste disco, o rosto dos quatro integrantes do Kraftwerk era associado a almofadinhas nerds, cabelos com gomalina, gravatas e ternos mod, enquanto a música era outra coisa. O choque entre visual e sonoro tinha seu grande valor, mas a arte de Kretzschmar deu uma dimensão ao produto Kraftwerk que não existia até ali e passou a ter dali em diante, inclusive em cima do palco, nas projeções atrás da banda, no uso cenográfico dos robôs (como estão no encarte do disco) e até mesmo como marca. Já era um reflexo de trabalhar com grandes marcas mundiais e, por isso, poder associar uma banda a uma marca própria.
Kretzschmar, como a música que representa com imagens, colagens e ideias, abraça a mutação conforme o tempo exige. E avança. O artista das mil faces e mil referências inventa como seus conterrâneos: se imagem é tudo, cunhar uma imagem forte é um trabalho pra criadores únicos.