Quarta-feira, dia 14 de março de 2018. A data pode (ou deveria) ficar na história da democracia brasileira como o dia em que ela foi mais uma vez sangrada e, nesse caso, literalmente: assassinada, executada, extraída da existência. Quando os assassinos da vereadora Marielle Franco dispararam os projéteis que tiraram sua vida e do motorista dela, a sociedade (ou a parte não apodrecida da sociedade) teve certeza de que o discurso de endurecimento e retirada de direitos (à voz, ao pertencimento e à existência) não é meramente um discurso de embate político, ele é uma realidade.
A vereadora dava voz aos excluídos (a população periférica e sem acesso às oportunidades, seja por preconceito, seja por descaso da sociedade) e às vítimas da violência, civis ou policiais. Por incomodar os “donos do poder”, foi morta. E sua morte foi um rasgo tão profundo na humanidade de quem se importa que ficou difícil falar sobre qualquer coisa nos dias seguintes. Aqui no Floga-se, a sensação de derrota não permitiu que a gente encarasse o cotiano musical com normalidade, de modo que até nossas postagens foram reduzidas. Não havia clima.
Só que a vida continua pra quem não incomoda os tais “donos do poder” ou não é atingido pela guerra urbana não-declarada no Brasil. A música, pra cada um, de alguma maneira, dá um respiro e no final de semana seguinte à execução da vereadora era preciso encarar essa retomada da normalidade de frente – todos os brasileiros não-apodrecidos precisaram. Já na sexta-feira, o show de lançamento do segundo álbum cheio do quinteto paulistano Huey, “MA” (leia e ouça aqui), seria uma boa maneira de explodir certos gritos.
O disco passa aquela impressão de que não foi encerrado, que o palco seria um complemento. A Huey é uma banda matemática, cuja precisão é um sexto integrante, qualquer deslize pode fazer desmoronar tudo, e há pouca manobra pra improvisos, mesmo assim o disco passa a sensação de que aquelas músicas seguem em construção.
É uma sensação tão conflitante quanto a plateia poderia enfrentar ali, diante do quadro incerto que o Brasil (mais uma vez) se colocou. Afinal, como se divertir assim? Formado por familiares e amigos próximos à banda, a experiência já estava ganha de qualquer forma, mas não é de se negar que o nervosismo fosse parte integrante do quinteto, assim que eles começaram a tocar uma a uma as faixas do “MA”.
Quando as três guitarras soaram no belo palco do Espaço Cultural Rio Verde, na Vila Madalena, em São Paulo, quem tivesse capacidade de escapar do hipnotismo gerado pelas camadas sobrepostas, podia perceber uma plateia visivelmente satisfeita com a massa pesada de porrada alternada com os climas da Huey. Ok, familiares e amigos faziam sua obrigação de agraciar os músicos, mas era mais do que isso: uma presença musical estava ali pra expurgar a droga de um mundo vil, cruel, indigno e desigual. Um mundo que do lado de fora daquele espaço não merecia ver essas músicas serem concluídas – ou, por outra, precisaria se balancear com aquelas músicas.
A dado momento, Dane, um do guitarristas, expôs o sentimento ainda engasgado sobre o caso Marielle. Foi um dos poucos momentos ao microfone. E, a bem da verdade, foi justamente depois do desabafo político-social do músico é que a banda (e a plateia) se soltaram. A Huey pareceu mais suingada (agradeça ao baixista Vellozo) e as pessoas não batiam cabeça, mas mesmo que timidamente requebravam. “Pei”, assim, cresceu. Seu rife ficou mais vívido. A elástica “0+” pareceu mais coesa. “Mar Estar” se fez mais explosiva e algo dançante.
As músicas teriam chegado ao seu formato final? Não, certamente não. Elas são como um organismo vivo social: a gente sabe como funcionam, são séculos e séculos de construção e busca de uma organização perfeita, mas sempre podem surpreender e nos fazer testar nossa própria capacidade de ter que construir tudo de novo.
1. Inverno Inverso
2. Adeus Flor Morta
3. Wine Again
4. Fogo Nosso
5. Pei
6. 0+
7. Mother’s Prayer
8. Mar Estar
9. Pedregulho
No dia seguinte, teve um evento totalmente oposto do show da Huey. No gigante e moderníssimo Allianz Parque, a arena do Palmeiras, Katy Perry, uma das vozes que as adolescentes mais curtem, se apresentaria – logo depois de passar por Porto Alegre e um ano e meio depois de passar pelo mesmo palco, em 2016.
Perry é uma moça esperta. Surgiu ao mundo com uma canção “chocante” pros padrões conservadores estadunidenses, “I Kissed A Girl” (e ela gostou, segundo canta), e foi direto ao ponto: as meninas podem fazer o que querem e que se dane quem acha o contrário.
A artista é uma bela mulher, branca tipão de capa de revista adolescente. Ela está no espectro oposto ao periférico, mas isso não quer dizer que não tenha enfrentado os problemas que as mulheres enfrentam no showbizz machista. Ela mesma usa e abusa de uma sensualidade-posada-e-forçada (que acaba sendo não-sensual), com suas roupas, danças e gemidos, usa as armas de quase toda mulher no altar das “divas”, a despeito do talento e de todo o marketing envolvido.
Sua plateia é um espetáculo a parte: crianças (mesmo!) e adolescentes, com os pais. E todos parecem se divertir. É uma festa, um programão. O palco é uma atração em si, afinal Katy Perry, pra quem está longe, é só uma voz e uma figura minúscula no telão. Nem todo mundo vê. Daí que luzes, papel picado, pirotecnia, fantasias, o tubarão, danças, vídeos, tudo serve pra tirar atenção da música esquálida.
Divertir-se é a palavra de ordem. E pergunta-se: por que não? Num país sofrido, que vem se abalando constantemente com sua democracia vilipendiada, o escapismo não é só uma necessidade, é uma tarefa lucrativa que, se abobalha as mentes (vejam as letras dos sertanejos universitários e afins), ao mesmo tempo oferece uma alternativa. Pais, mães e tios se esbaldam naquela escola-de-samba gringa que Katy Perry oferece. A música é o de menos. O espetáculo é o que importa.
Ela divide o show em cinco atos – dando tempo suficiente pra ela realizar as trocas de roupas – interage com a plateia (sempre da mesma forma, pedindo pra ensinar umas palavras em português) e guarda o grande sucesso, “Firework”, pro final. Assim, com a técnica e a precisão reconhecidas, o sucesso é garantido.
No Rio de Janeiro, show ocorrido no dia seguinte, Katy Perry recebeu a irmã e a mãe de Marielle Franco no palco. Uma imagem da vereadora executada foi jogada no enorme telão ao fundo, com o formato de um olho (é a turnê “Witness”). A imagem imediatamente correu o Brasil. Foi simbólico: estamos todos de olho.
Perry pode jogar pra plateia, algo que ela faz com maestria. Mas o simbolismo da ação foi forte o suficiente pra que todo mundo pudesse se colocar novamente diante da nossa triste realidade. E assim ela fez mais do que muito artista líder de vendas no Brasil. Cantar, se apresentar num palco, fazer arte é um ato político. Se isentar é ajudar as coisas a ficarem como estão – e elas estão num caminho desastroso.
Em caminhos opostos na música e na arte, Huey e Katy Perry se uniram numa rara intersecção: a de que com dor no coração ou com oportunismo/consciência podem influenciar as pessoas a não aceitaram as coisas como elas são. Esquecer por um momento a dura realidade, a partir da música (escapista ou não), pode ser só um momento pra se reenergizar e enfrentar essa realidade com mais vigor pra, então, buscar a mudança que nos faça uma sociedade melhor.
01. Witness
02. Roulette
03. Dark Horse
04. Chained To The Rhythm
05. Teenage Dream
06. Hot N Cold
07. Last Friday Night (T.G.I.F.)
08. California Gurls
09. I Kissed A Girl
10. Déjà Vu
11. Tsunami
12. E.T.
13. Bon Appétit
14. Wide Awake
15. Unconditionally
16. Power
17. Part Of Me
18. Swish Swish
19. Roar
BIS
20. Firework