“MA” é o segundo disco cheio dos paulistanos da Huey. O quinteto entre o novo trabalho quatro anos depois do elogiado “Ace”, de 2014 (ouça e leia aqui).
A demora, numa época em que alguns artistas chegam a lançar dois, três, até quatro obras num ano, causa estranheza mas tem lá sua explicação: a Huey é uma banda cuja música está em constante construção.
É mais ou menos como o teatro, em comparação com o cinema. No cinema, a obra aparece definitiva, cem por cento arranjada e acabada. É imutável, o que o espectador assiste é a obra final. Não importa o quanto de tempo e de cabeças se arregimentou pra compor a obra, ela é o que está ali. No teatro, cada apresentação de uma peça é diferente da outra. O texto é o mesmo (às vezes nem isso, graças aos cacos), o figurino é o mesmo (mas pode sofrer alterações e melhorias sutis), entretanto todo o mais é diferente, porque depende da atuação ao vivo, naquele momento, dos atores, de algum imprevisto, de alguma eventualidade. Ver uma peça de teatro não é ver uma obra definitiva, é ver sempre uma versão da obra imaginada. Ela pode ter tantas versões quantas forem apresentadas e cada versão é intercalada por silêncios e distanciamentos que aumentam a expectativa pela próxima leitura.
A Huey é essa peça de teatro. Embora o disco seja o “seu cinema”, que está gravado e imexível naquele formato, a cada audição revela-se uma nova construção na cabeça – o que se acentua, obviamente, com a apresentação ao vivo. Porque a Huey é uma banda “ao vivo”. “MA”, foi gravado assim, ao vivo, com o mínimo de interferências possíveis (overdubs, por exemplo), com a produção e mixagem de Steve Evetts (responsável por produções de bandas como Sick Of It All, Sepultura, The Dillinger Escape Plan, Skinlab, The Cure, A Static Lullaby, The Wonder Years etc.).
Gravadas no Family Mob Studios, em São Paulo, as oito faixas mostram uma banda como em “Ace”, cirúrgica, com as paradas calculadas, o peso massacrante, ao mesmo tempo em que sugere uma diferenciação em cada unidade, com músicas se contorcendo e revirando sobre um tema-base pra se desdobrar em outros tantos, surpreendendo o ouvinte – “MA” é uma palavra japonesa pra identificar um espaço ou uma pausa entre duas partes, de modo que os breques assumem o protagonismo na música da Huey.
Cada espaço é mais barulhento que qualquer distorção. Ele é o agente anunciador da surpresa. A cada silêncio, o ouvinte pode se perguntar o que vem a seguir. É uma ferramenta curiosa de narrativa: ao invés do respiro, a apreensão.
“Inverno Inverso” começa direta e sem oferecer fôlego. Não há climão de abertura (há em “Mother’s Prayer” e em “0+”), o que não quer dizer que ela não mude de ideia e no meio não surja espaço pra viagem negada no início.
“Wine Again”, já conhecida (como “Pei” e “Adeus Flor Morta”), tem um rife melódico e menos pesado, o que poderia sugerir mudança de padrão, mas, outra vez, a banda não pretende ser determinista. A canção se revolta contra ela mesma e se desdobra em outras tantas.
A ótima e angustiante “Mar Estar” tem tantas reviravoltas como um pequeno veleiro numa tempestade grau cinco no Caribe.
A impressão que se tem é que a Huey tinha em mãos muito mais do que oito canções. A banda parece ter feito um compacto de tudo o que criou nesses quatro anos e condensou nos oito temas. Entretanto, ao contrário do que a ideia sugere, não cria uma confusão, mas também não explica muito. As músicas são bem trabalhadas e fica óbvio que essa é uma banda atomicamente centrada na precisão. Só que as etapas por onde cada música passa parecem expor ao ouvinte universos não distinguidos nas audições anteriores (“Pei” é um ótimo exemplo disso, com seu rife inicial grudento que logo é substituído): essas são as músicas-em-constante-construção da Huey.
Desse modo, é possível ouvir “MA” uma, duas, dez, vinte vezes e não se chegar a uma conclusão. Por outra: pra quê uma conclusão? Pode-se até identificar aqui um disco mais “leve” e “harmonioso”, e logo se arrepender de uma precipitação. Pode-se identificar um disco “pesado” e logo perceber que não é bem por aí. Porque talvez “MA” não seja propriamente um disco “cinema”, fechado em si. “MA” pode ser um convite pra que a gente vá ao show e lá veja uma nova (re)construção dessas faixas exaustiva e previamente concebidas.
É um robusto clichê entender um trabalho como algo de “constante avaliação”, afinal toda obra é passível de avaliações e eternas novas interpretações. A diferença é que a Huey faz disso sua força maior. “MA” surge como um ponto de interrogação brilhando e pulsante: o que será que eu vou perder se não me ater ao próximo passo, à próxima reviravolta? Toda vez que o silêncio surgir, é pra ficar atento: tudo pode mudar.
1. Inverno Inverso
2. Wine Again
3. Pei (clique aqui pra ver o vídeo)
4. Mother’s Prayer (clique aqui pra ver o vídeo)
5. Adeus Flor Morta
6. Mar Estar
7. Fogo Nosso (clique aqui pra ver o vídeo)
8. 0+