Omelê, tambor-onça, ronca, adufo, roncador, fungador-onça, socador, puíta: não importa como chamem, a cuíca é o instrumento mais bonito da música brasileira. O mais emocionante. O mais dramático. E o mais simbólico.
Pra além disso, a cuíca não é apenas um instrumento de apoio, de fundo. Assim como Casemiro Da Cuíca, na Portela, pra ficar em apenas um exemplo, Índio Da Cuíca leva o instrumento em seu nome artístico pra sublinhar com traços mais fortes a importância.
Em seu disco “Malandro 5 Estrelas”, lançado dia 5 de maio de 2021 pela QTV, casa de música torta e “provocativa”, ele mostra como a cuíca pode ser tão forte quanto um violão, um sete cordas, um cavaquinho e até mesmo que uma guitarra.
O solo “Melódica”, que faria Robert Johnson (ele mesmo) se inquietar em desespero e procurar o diabo pra outro arranjo, demonstra a precisão de Índio. Na sequência, há o lamento “Sonho Realizado”. Linda canção de amor: “Você faz de mim um grande homem / E me faz feliz”.
Como é o choro “Cuíca Malandra/Cuíca Encantada”. “A cuíca é boa / Não posso parar de tocar”, ele resume: amor pelo instrumento, amor pelo samba, amor pela música.
E pela poesia simples. “Respirando o ar da natureza / Sinto Deus / Atuando em mim / Aí eu percebi / Só é feliz / Quem tem amor”, Índio canta em “Shirley”. Direto, objetivo, sem firula.
O texto que acompanha o disco dá conta que, “após dar a volta ao mundo e tocar com artistas como Alcione, Jair Rodrigues e Roberto Carlos, Índio da Cuíca” lança seu primeiro disco solo. Ele tem 70 anos de idade e conta com mais de 50 anos de carreira. É um “multi-instrumentista, cantor, compositor e dançarino, um autêntico showman, que esbanja vitalidade e revela ao mundo a expressividade de sua performance, a originalidade de sua música e o carisma de um genuíno e tradicional malandro suburbano carioca”.
O repertório é composto por sambas (“A Cuíca Chora”, “Cuíca Malandra/Cuíca Encantada”, “Sonho realizado”), vassi pra Ogum (“Medley de Ogum”), calangos (“Stribinaite Camufraite Oraite”), boleros (“Shirley”), capoeira (“Jogo De Malandro”) e até mesmo um digníssimo funk carioca (“Baile Do Bambu”, encerrando o disco). E todas as músicas são de sua autoria.
A QTV lembra que a sonoridade de “Malandro 5 Estrelas” foi “construída tomando como referência a espontaneidade e a experimentação das gravações de samba dos anos 70 e 80, por influência, sobretudo, de Luiz Carlos T. Reis (Fundo de Quintal, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho…). Desde o início da produção, seguiu-se a ideia de que os músicos fossem reunidos em estúdio para tocar juntos, aproveitando o som da sala. Aplicando efeitos de maneira pontual, a mixagem de Renato Godoy aproveita essas características para ampliar o leque de sonoridades do samba contemporâneo”.
A direção musical e arranjos é de Gabriel de Aquino (Grammy Latino de melhor disco com Martinho da Vila em 2016) e codireção do músico, cuiqueiro e pesquisador Paulinho Bicolor.
Índio da Cuíca nasceu no morro do Borel, Zona Norte do Rio de Janeiro, em 1951. Ainda nos anos 70, se especializou em uma técnica que poucos cuiqueiros ousam praticar, segundo o texto de apresentação: a execução de melodias baseadas no sistema tonal. Tal habilidade lhe credenciou integrar a Orquestra de Solistas do Rio de Janeiro (OSJR), no início dos anos 2000.
Mas não é só de técnica e história que fazem de “Malandro 5 Estrelas” um dos discos mais bonitos deste século (se você acha que estou superlativando por falta de argumentos, ouça a beleza que “Jogo De Malandro” exala, o bem que essa música faz, e o argumento chega em notas).
O trabalho é bonito o suficiente pra colocar questões históricas, de luta e de experiências pro segundo plano. Ele se basta. Mas o caso é que ele carrega também tudo isso.
E com a modernidade que o tempo parece exigir. Índio não correu disso. O citado “Baile Do Bambu” é o exemplo mais notório, mas não o único. “Stribinaite Camufraite Oraite” é outro exemplo, música vibrante, elegante, apenas com cavaquinho, violão, baixo, cuíca e percussão.
A direção musical e os arranjos, como citado, levam assinatura de Gabriel de Aquino e Paulinho Bicolor, que também defende a produção geral, junto com Bernardo Oliveira.
O trabalho foi gravado por Renato Godoy na Audio Rebel, entre 6 e 9 de janeiro de 2020.
Na banda, anote, por ordem alfabética: Alaan Monteiro (cavaquinho e bandolim), Gabriel de Aquino (violão), Guto Wirtti (baixo), Luiz Otávio (teclados), Luizinho do Jêje (rum, pi, lé, garrafas, surdo, tantan, rebolo, espada de Ogum, escudo de Ogum, reco-reco, ferros, agôgos, shakes, xequerê, repinique, pandeiro, berimbau, cáscara na madeira e no ferro), Pedrinho Ferreira (surdo, repique de anel, pandeiro, repique de mão e tantan) e Bernardo Oliveira, Gabriel de Aquino, Renato Godoy, Paulinho Bicolor e Alann Monteiro, todos no coro.
Índio da Cuíca se encarrega “só” da voz, cuíca, violão, pandeiro, berimbau, reco-reco e cavaquinho.
Um disco pra história. Um disco pro coração. Um disco pra não se largar.
01. A Cuíca Chora
02. Stribinaite Camufraite Oraite
03. Cuíca Malandra/Cuíca Encantada
04. Shirley
05. Jogo De Malandro
06. Brincando Em Ré Maior
07. Medley De Ogum
08. Melódica
09. Sonho Realizado
10. Baile Do Bambu
Foto que abre o artigo: Alfredo Alves.