Jane Carroll Dornacker nasceu em 1º de outubro de 1947. Iria chegar à era punk com uma idade um tanto mais avançada do que era exigida pela lógica dominante. Mas a estadunidense não deu a mínima pra isso. Em 1977, ao completar trinta anos, já andava com uns malucos e malucas pela Califórnia, pra dar suas voadoras no sistema.
Ela se mudou pra São Francisco em 1965, com dezoito aninhos, pra tentar a sorte como atriz, depois de ter atuado em varias peças escolares em sua cidade natal, Albuquerque, no Novo México. Em 1968, precisando trabalhar, acabou se tornando a primeira mulher carteira dos Estados Unidos. Ela seguiu atuando paralelamente por mais duas décadas, trabalhando no Magic Theatre.
Ela montou uma banda chamada Leila And The Snakes, que acabou se aproximando e excursionando com o The Tubes, grupo de “punk farofa”. Leila And The Snakes lançou apenas um único single, cuja cópia física hoje é bastante raro, chamado “Rock And Roll Weirdos”, com “Pyramid Power” no lado B.
Na capa do disco, ela, Pamela Wood (baixo) e Pearl Gates (vocal e mais tarde esposa de Paul Simonon, do Clash) mostram seus glamorosos bumbuns desnudos, com os créditos em cima deles.
“Rock And Roll Weirdos” era uma resposta a “Rock And Roll Survivors”, do Fanny, um grupo da filipina June Millington e sua irmã Jean, que também foi banda de apoio de Barbra Streisand (especialmente no disco de 1971, “Barbra Joan Streisand”). A faixa está no quinto disco do grupo, de 1974.
Aqui a de Leila:
Ela tinha bom trânsito no meio subterrâneo musical da costa oeste. Ela foi convidada, em 1978, por exemplo pra cantar com o R. Crumb & His Cheap Suit Serenaders, no single “Christopher Columbus”.
A banda, como se sabe, era do cartunista Robert Crumb, e fazia músicas dos anos 1920, com os palavrões de praxe e as capas feitas pelo próprio Crumb.
Ela também escreveu e cantou com o The Tubes. No segundo álbum do grupo, “Young And Rich”, de 1976, assinou com Ron Nagle “Don’t Touch Me There”. Ela interpreta a canção também.
Os Tubes, vale lembrar, conseguiram sucesso com “White Punk On Dope”, do primeiro disco, homônimo, de 1975, que acabou tendo versões do Mötley Crüe e da Nina Hagen, ridicularizando a molecada bem nascida de Hollywood (ouça aqui).
A crítica ao consumismo e ao culto às celebridades era uma marca dos Tubes. Dornacker se sentia em casa nesse ambiente.
Leila And The Snakes chegou a gravar um disco cheio, produzido por Hugh Cornwell, dos Stranglers. Porém, o trabalho só foi lançado em 2006, eplas mãos de Miles Corbin, do Aqua Velvets.
Chegou ao cinema, inclusive. Em 1983, as telonas do mundo apresentavam Dornacker como a enfermeira carrancuda Murch, na adaptação do livro de Tom Wolfe, em “Os Eleitos – Onde O Futuro Começa” (The Right Stuff, direção de Philip Kaufman). Ela tinha um toque sádico e enfrentava as investidas do personagem casado e prepotente de Dennis Quaid.
Ainda atuou em um segundo filme, com Danny Glover, chamado “The Stand-In”, de 1985, de Robert N. Zagone, um documentarista californiano da cena musical local. Uma dos seus filmes, foi “Bob Dylan Speaks”, de 1965, com a entrevista do música na rádio KQED, de São Francisco. É dele também “San Francisco Rock: A Night At The Family Dog”, de 1970, com Santana, Grateful Dead e Jefferson Airplane.
Nos tempos de teatro na Califórnia, se tornou amiga de Whoopi Goldberg.
Dornacker se considerava rebelde não agressiva, remetendo a uma época de humor perverso e alegre, e uma celebração de simplesmente ser diferente, de pensamento livre, sem no entanto prejudicar o próximo. Não havia nada de punk nisso, obviamente. Dornacker era só uma artista pela vida livre.
Na virada de 1970 pra 1980, ela se tornou repórter da defunta rádio AM 610 KRFC, de São Francisco. Fazia de tudo, inclusive reportava sobre tráfego nas longas e sempre entupidas vias da região.
Pra quem já havia sido carteira, atriz estudantil, autora de música, performer musical, vocalista, dançarina, atriz de cinema, ser repórter era mais uma forma de ganhar dinheiro, se bem que melhor, porque era mais dinheiro e ainda chegava aos ouvidos de milhares e milhares de pessoas. Acabou se tornando bem conhecida, carregando humor nas suas reportagens.
O sucesso fez ela receber o convite pra trabalhar do outro lado do país, em Nova Iorque, na rádio WNBC, pra ser repórter de tráfego. Ela foi.
Em abril de 1986, o helicóptero onde estava Dornacker, sobrevoando Manhattan, caiu no Rio Hackensack, perto de Nova Jérsei, logo após a decolagem. Naquele dia, ela e o piloto, Bob Banes, nadaram para um local seguro.
Após o acidente, Dornacker não voou por um ou dois meses. “Não acho que ela realmente queria decolar”, disse Chris Doyle, produtor de um programa de rádio vespertino de música e comédia. Mas logo ela o fez.
Em 25 de junho, um helicóptero da mesma marca caiu no Hudson depois que os ventos o desviaram do curso e o piloto decidiu pousar na água ao invés de bater em uma aeronave estacionada em um heliporto na 30th Street. Nem o piloto nem o passageiro sofreram ferimentos graves. Parecia um recado.
Em 22 de outubro, ela já estava voando novamente. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, quanto mais três, ela deve ter pensado. Caiu.
Ela estava fazendo uma atualização de rotina sobre o tráfego no Lincoln Tunnel às quinze pras cinco da tarde. Era uma quarta-feira. Ela estava ao vivo, quando ela fez uma pausa e gritou pro piloto William Pate, “hit the water! Hit the water! Hit the water!”.
O helicóptero cortou uma cerca de arame antes de cair no rio, no lado oeste de Manhattan.
Depois que a transmissão parou abruptamente, o apresentador, um abalado Joey Reynolds, disse aos ouvintes: “ok, vamos tocar alguma música aqui ou algo assim… e descobrir o que aconteceu com o helicóptero”. Estima-se que um milhão de ouvintes estavam sintonizados, de acordo com a WNBC.
Uma equipe de resgate com equipamento de mergulho retirou as duas vítimas da água dez minutos após o acidente. O bombeiro Paul Hashagen, de 35 anos, nadou seis metros pra baixo e soltou Pate do cinto de segurança, trazendo-o pra superfície. Ele, então, voltou pra encontrar Dornacker flutuando dentro do helicóptero e também a trouxe pra cima.
“Ambos estavam inconscientes e sem respirar quando os encontrei”, disse Hashagen.
Antes da chegada dos bombeiros, dois agentes do Serviço Secreto que passavam mergulharam na água em uma tentativa vã de resgatar os dois. As equipes de emergência trabalharam freneticamente pra ressuscitar as vítimas no local antes de transferi-las pra hospitais.
Dornacker foi levada ao Centro Médico St. Vincent, onde foi declarada morta por afogamento às oito e vinte da noite, após esforços prolongados pra reanimá-la. Pate, 30, estava em estado crítico no Hospital Bellevue, onde foi submetido a uma cirurgia pra sangramento abdominal interno. Ele sobreviveu.
A última gravação dela foi essa:
Dornacker tinha 39 anos.
Sua filha Naomi, então com 16 anos, ficou orfã. Seu pai, Bob Knickerbocker, havia morrido em julho daquele mesmo ano. A menina recebeu US$ 325 mil da fabricante de helicópteros, como indenização (cerca de US$ 786 mil hoje).
Jane não teve uma supervalorização artística após sua morte, como normalmente acontece. Ela continuou vivendo na memória do subterrâneo musical californiano, restrito a poucas pessoas. Sua vida bastante agitada e produtiva resgata aquele velho ditado popular – a vida é curta, aproveite.