JOHN CAGE: A ANARQUIA DO SILÊNCIO

Em 2009, uma exibição sobre John Cage ocorreu no Museu d’Art Contemporani de Barcelona. A ideia da exibição partiu de um princípio interessante: uma sala de exibição vazia, uma galeria completamente pelada, onde os visitantes teriam que se virar sem explicação alguma.

“Os planos mudaram, e a sala vazia desapareceu, mas foi o que chamou minha atenção quando me pediram pra escrever o ensaio pra este catálogo” (pra ser entregue na exibição), escreveu James Pritchett, músico e especialista em John Cage, com vários textos sobre o artista. “Era uma ideia pouco usual pra uma exibição num museu, uma vez que a proposta de visita ali é ver coisas belas ou interessantes. Pessoas não vão ao museu olhar paredes em branco, ou andar por galerias vazias. Sem o contexto correto, os visitantes poderiam achar apenas que tomaram o caminho errado”, completa.

Mas o autor alerta: as pessoas que forem a uma exibição sobre John Cage sabem do que se trata. “Ah, aquela música sobre o silêncio”, e podem se pegar sorrindo sobre a “pegadinha”.

Isso porque, como Pritchett lembra, “4’33″” é de longe a obra mais famosa de John Cage: “eu poderia dizer que todo mundo que conhece o nome Cage sabe que ele escreveu uma peça de música que consiste inteiramente de silêncio. É uma peça que se tornou ícone da cultura pós-guerra, como as latas de sopa de Wharol (…); o trampolim pra milhares de análises e argumentos; evidência da extremada e destrutiva avant-guarde que apareceu nos anos 1950 e 60″.

A primeira performance aconteceu em 29 de agosto de 1952, em Woodstock, Nova Iorque.

Imagine a cena. David Tudor, um pianista dos bons, vestido de gala, senta-se defronte ao seu piano. Além deles, no local, a plateia cheia de expectativas. Tudor, abre a tampa do piano e fica sentado ali, olhando pras teclas, durante trinta segundos. Então, ele fecha a tampa. De pronto, ele a abre novamente, e novamente fica defronte ao instrumento, sem tocá-lo, sem emitir uma única nota, por longos dois minutos e vinte e três segundos. Ele fecha o tampo do piano e o abre novamente, ato contínuo, pra pela terceira vez ficar sentado ali sem nada fazer, agora por um minuto e quarenta segundos. Fim do terceiro e último ato, Tudor fecha a tampa, se levanta, curva-se diante da plateia, e se retira.

Veja o próprio Tudor apresentando a obra já na década de 1980:

A controvérsia foi geral. De idiota a gênio, toda sorte de adjetivos foi vinculada à peça e ao autor. “Eles não entenderam. Não há nada como o silêncio. O que eles pensaram que era silêncio, porque eles não sabem como ouvir, era algo cheio de sons acidentais. Você poderia ouvir o vento lá fora, durante o primeiro movimento. Durante o segundo, gostas de chuva começaram a tocar o teto, e durante o terceiro, as pessoas mesmo fizeram todo tipo de sons interessantes, assim que começaram a falar e a sair do local”, disse John Cage sobre a reação à sua obra.

Sobre “4’33″” propriamente, Cage disse: “originalmente, tínhamos em mente o que você poderia chamar de uma beleza imaginária, um processo de vazio básico com apenas algumas coisas que surgem dali… E então, quando nós realmente começamos a trabalhar, uma espécie de avalanche veio, uma avalanche que não correspondia em nada com aquela beleza que parecia surgir pra nós como um objetivo. Pra onde vamos, então? Bem, o que temos de fazer é ir em frente, sem dúvida, uma revelação. Eu não tinha ideia de que isso ia acontecer. (…) As ideias são uma coisa e o que acontece é outra coisa diferente”.

O que ele criou, talvez sem saber exatamente, foi algo tão anárquico, que no livro “Noise/Music: A History”, de 2007, Paul Hegarty diz que “4’33″” é o embrião do que chamamos hoje de noise music, por trabalhar com sons incidentais, justamente como Cage intencionava.

Nas diversas vezes que Cadu Tenório fala sobre noise, na sua coluna “Engrenagem”, aqui no Floga-se, e nos seus projetos, como o VICTIM!, ele alerta pra importância do silêncio: “os silêncios no disco são um conforto”.

Embora sejam formas diferentes de trabalhar o silêncio, Cage, Tenório e a turma toda do noise, sabem da sua importância. A plateia é que parece não ter entendido.

No caso de Cage, como diz Pritchett, “parte do que compõe o drama está na extrema simplicidade do conceito. O compositor não criou nada. O músico sobe ao palco e não faz nada. A plateia testemunha esse ato básico, o ato de sentar-se e se manter quieto. (…) A peça pode ser difícil pra plateia. Sentar-se quieta e calada por qualquer tempo não é algo que as pessoas estão acostumadas na cultura ocidental, muito menos numa sala de concertos. A tensão irá surgir, é natural. Confrontados com o silêncio, num ambiente que não podemos controlar, onde não esperamos esse tipo de evento, pode-se ter uma sem número de respostas (…)”.

O curioso é que no início de sua carreira como compositor, Cage era a antítese do silêncio. Sua obra, no período de 1937 a 1942, era bastante centrada no noise. Ou, como aponta Pritchett, “tomando sua inspiração de Luigi Russolo e os Futuristas do início do século XX, Cage abraçou entusiasticamente a utilização de instrumentos de percussão como forma de expandir sua música pra incluir sons que mais precisamente refletem a natureza da cultura industrial”. E o próprio Cage falou sobre o assunto no seu ensaio de 1937, “The Future Of Music: Credo”: “onde quer que estejamos, o que ouvimos é ruído. Quando ignoramos, ela nos perturba. Quando ouvimos, achamos fascinante”.

Esse ensaio trata sobre muitos dos temas que fariam de Cage uma figura conhecida: os sons são apenas sons; um compositor atua como um experimentador, descobrindo novas possibilidades sonoras; é importante o uso das novas tecnologias do século XX (veja, era 1937!) pra música contemporânea… A única coisa que falta nesse ensaio, porém, é identificar o silêncio como parte da equação. Pritchett até brinca com isso: “no ensaio, a palavra ‘som’ aparece 26 vezes, e as palavras ‘tom’ e ‘ruído’ muitos mais. A palavra ‘silêncio’, nenhuma vez”.

“O que aparece aqui é a discussão da estrutura musical baseada no tempo: ‘o compositor deverá encarar não só o campo do som, mas também o campo do tempo; a fração de segundo… Provavelmente será a unidade básica de medida do tempo”. Nos anos 1930, ele estruturava todas as suas composições baseado no tempo, na duração de cada som.

“Sua devoção à música de percussão também contribuiu pra sua utilização de ‘estruturas de duração’, uma vez que as estruturas baseadas na harmonia ou melodia não estavam disponíveis pra ele. Embora ele não tinha conhecimento de que, no momento, esta confiança no tempo, como a base pra a estrutura musical, foi um dos fatores que o preparariam pro seu encontro mais tarde com o silêncio”, observa Pritchett.

Mas a transição não foi suave. John Cage tinha planos maiores, de musicar e experimentar pra rádio e se viu, de repente, numa pendenga entre empregadores e não conseguiu levantar dinheiro pra sua orquestra. Teve que começar de novo, mas não sem experimentar: foi tocando um piano modificado (com objetos entre o cordeamento, pra alterar o som) que ele tateou primeiramente o terreno nova iorquino, seu objetivo no começo da pendenga.

Foi nesse período que ele conheceu Gita Sarabhai, uma indiana que mostrou a forma como o oriente enxergava a música: “o propósito da música é tranquilizar e limpar a mente, deixando-a suscetível às influências divinas”. Isso se tornou um mantra pra sua obra. Mas foi só a partir de 1948 que ele usaria a palavra “silêncio” em suas obras – e numa palestra, ele afirmou pela primeira vez que o silêncio e os sons podem coexistir numa obra.

E juntou com a velha máxima da duração da composição: “das quatro características materiais da música, a duração, que é o comprimento de tempo, é a mais fundamental. O silêncio não pode ser ouvido em termos de afinação ou harmonia: ele é ouvido em termos de duração de tempo”.

Esse conceito é primordial. Ele percebe agora que o silêncio faz parte do processo, independente ainda da reação que vai causar no público. Mais importante: ele sempre usou o silêncio como ferramenta de composição, sem se dar conta disso.

Trabalhando em blocos de tempo, Cage admitiu: “o espaço de tempo é organizado. Nós não precisamos temer esses silêncios, podemos amá-los. Esta é um diálogo (…). É como um copo de leite. Precisamos do copo e precisamos do leite (…)”.

Em resumo, pensando dessa forma, Cage finalmente percebeu que poderia jogar com o tempo, fazer com ele o que quisesse: “posso não dizer nada e fará pouca diferença o que eu digo e como eu digo”. Era uma nova percepção de estrutura, porque agora ela é construída baseando-se no silêncio, mas, “além disso, a estrutura de tempo vazio não requer qualquer continuidade particular, sintaxe, encomenda, ou o sentido de progressão dos sons dentro dela. Uma composição estruturada como períodos de tempo não depende dos próprios sons pra criar a estrutura: ela existe com ou sem eles (…)”, diz Pritchett. Ou seja, as possibilidades se tornam ilimitadas.

A partir daí, Cage se viu na sua fase mais prolífica. Foi inspirando-se no virtuosismo de David Tudor que Cage criou uma enorme variedade de composições e eventos musicais pra piano, sempre baseado na estrutura do tempo em silêncio, embora repleta de sons fortes, barulhentos, ruidosos, enérgicos. Mas é no silêncio justaposto que está o ritmo impregnado nas obras.

Eis que ele se viu diante da questão: como a plateia se comportaria diante de uma peça muda? Ele realmente pensou que as pessoas iriam perceber esses sons todos que estão constantemente no espaço. O “som do silêncio”: “há toda espécie de sons fluindo no espaço, que a gente nunca se deu conta”, disse.

O curioso é que pensando assim, Cage admite que o silêncio propriamente dito nem mesmo existiria. E mais do que isso, ele percebe o silêncio como compositor, não como um ouvinte, o que certamente pode se tornar um problema.

Justamente o problema encarado por “4’33″”, que é o resultado máximo da experiência com o silêncio na música.

Na verdade, “4’33″”, por só funcionar dentro do contexto de uma audiência pré-determinada, agendada, com a plateia tendo pra si a informação do que vai “escutar”, é que esse “problema” pode ser dirimido. Fora desse contexto, a obra não vale nada. Não é “ausência de sons, de acordes, de música”, é só um silêncio disforme.

John Cage fez questão de nunca explicar muita coisa sobre a obra, muito menos sua motivação pra escrevê-la. Mas o histórico de sua carreira dá boas pistas, como vimos.

Com o passar do tempo, com o sucesso e o impacto da obra (uma das mais conhecidas da música), Cage passou a renegá-la a um canto da sua história, como se isso fosse possível, chegando a se recusar a dar entrevistas sobre ela.

Pritchett diz como devemos apreciar a obra: “a peça pode ser mais útil vista como um tributo à experiência do silêncio, uma lembrança de sua existência e de sua importância pra todos nós; mas ela é falha na medida em que pode sugerir que o silêncio é algo que pode ser apresentado a nós por outra pessoa; essa não é uma experiência que possa ser comunicada de uma pessoa pra outra”.

Mas é uma obra que nos lembra constantemente que o silêncio está aí, ele existe de uma maneira a significar “ausência de sons que se pretende ouvir”; porque nem mesmo a sua existência de fato pode ser comprovada. Sendo assim, “4’33″” não é uma obra silenciosa, é sobre como o silêncio pode ser percebido musicalmente. Basta abrir a mente e deixar entrar aqueles sons imperceptíveis da vida.

Veja a BBC Symphony Orchestra executando “4’33″”:

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