Juçara Marçal lançou um dos melhores discos de 2014, “Encarnado” (leia resenha aqui). Um trabalho que une muito bem a MPB e o experimentalismo dos noises e da estrutura não convencional.
De fato, é um trabalho menos inovador do que se pressupõe, e a própria artista dá dicas disso no disco e no show, ao interpretar os clássicos Itamar Assumpção e Tom Zé. Mas diante da pasmaceira que é a música brasileira atual onde apenas no subterrâneo é possível encontrar provocações intrigantes, Juçara e sua turma (Thomas Rohrer rabeca, Kiko DInucci na guitarra e Rodrigo Campos na guitarra e cavaquinho), que estão volta e meia vislumbrando a superfície, fazem algo significativo a se diferenciar do resto.
A grande questão aqui era: funciona ao vivo? Em estúdio, os noises chegam a incomodar (o que é positivo), sobressaindo-se à comodidade das linhas vocais MPB adotada pela protagonista. Esse choque é o que faz o disco ser reverenciado.
Mas a Casa de Francisca, a “menor casa de shows de São Paulo”, segundo a apresentação da própria casa, não oferece um ambiente decente pra que o choque do disco se apresente na plenitude. Ele está lá, mas amansado.
O local é uma bela mistura de casa de shows, restaurante e bar, com jeitão de cabaré europeu, pequeno (apenas quarenta e quatro lugares), aconchegante e fica numa área residencial, sujeito a reclamações dos vizinhos (o que lhe dana as intenções com relação a qualquer volume). Em outras palavras, barulho nem pensar.
Eis que Juçara e sua turma tiveram que se conter no volume das guitarras. Entretanto isso não chegou a ser exatamente um problema. Juçara consegue agradar. Seu vocal segue a linha bem reconhecível da MPB, os trejeitos interpretativos idem. Seu grande trunfo está mesmo na sua banda (que confunde-se com o Metá Metá, já que Thiago França faz participação especial em duas canções). Rohrer faz o diabo com sua rabeca. Dinucci se empolga na guitarra. A voz, porém, sempre acima, não chega a ser incomodada.
No repertório, claro, está “Encarnado” e, segundo Juçara, a banda vai apresentá-lo “quase na ordem”. Começa, pois, com a ótima e uma das melhores de 2014, “Velho Amarelo”, de Rodrigo Campos. A sequência é pulada com “Queimando A Língua” e “Pena Mais Que Perfeita”.
Daí, a primeira quebra, entrando num ritmo mais lento, com “Xote Da Navegação”, de Chico Buarque, música que não está no disco, e “Odoyá”/”Ciranda Do Aborto”, a melhor do disco. No trecho “Xote…” e “Odoyá”, Juçara canta, introspectiva, com Rohrer improvisando uns ruídos a cortar as canções. Ao fim de “Odoya”, como em “Encarnado”, entra “Ciranda Do Aborto”, o momento em que a banda não se segura e aumenta ao máximo possível o volume. Aqui, quem buscava a comparação com o disco, satisfez-se e capitulou: valeu o ingresso.
Mas tinha mais. Teve a participação de Thiago França com seu sax “jazz livre” em “Damião”, as coveres de Itamar e Tom Zé, presentes no disco, além de uma versão de “Comprimido”, de Paulinho da Viola. “Velho Amarelo” começou e encerrou o show.
A garçonete perguntou-me ao final: “gostou?”. “Sim”, respondi. “Juçara é sempre maravilhosa, mas a apresentação de hoje foi ‘uau’, melhor que a de ontem”. “Que bom, vim ao show certo”. “Sim, você teve sorte, mas sorte mesmo é ver isso todo dia”, concluiu, lembrando que Dinucci e Marçal volta e meia estão naquele palco.
Comprei o disco na saída. Em disco, consigo ouvir todo dia.
01. Velho Amarelo
02. Queimando A Língua
03. Pena Mais Que Perfeita
04. Xote Da Navegação (Chico Buarque cover)
05. Odoyá
06. Ciranda Do Aborto
07. Canção Pra Ninar Oxum
08. Damião
09. E OI Quico? (Itamar Assumpção cover)
10. Não Tenha Ódio No Verão (Tom Zé cover)
11. Comprimido (Paulinho da Viola cover)
12. Presente De Casamento
BIS
13. João Carranca
14. Velho Amarelo