KIGO – SUNSHINE

O grande problema de bandas como My Bloody Valentine é a ficha corrida e a expectativa que advém daí. Depois de um disco que reside no altar de tantas pessoas, como é “Loveless”, não se espera outra coisa senão o descanso eterno nas alturas da admiração. O artista acaba como um deus intocável, irrepreensível, e dele não se espera mais nada, a não ser a aposentadoria ou, caso ele insista em peitar o inevitável, a derrocada e a frustração.

“MBV” não foi exatamente “a derrocada” do My Bloody Valentine, mas há uma forte corrente de percepção que defende que é um disco dispensável, embora não necessariamente ruim.

Daí que é inevitável voltar olhos e ouvidos pra crias e imitadores de Kevin Shields. Não são poucos, você sabe, e é preciso ter paciência pra garimpar. Se há muito picareta por aí, há surpresas preciosas no meio, em grande parte vindo de lugares igualmente surpreendentes. É o caso do kigo, de Brisbane, Austrália.

D.P. Pearce é a mente por trás do nome. Ele já havia lançado um ruidoso disco em 2013, “So Lost Now” (ouça e leia aqui), que é o trabalho imediatamente anterior a esse “Sunshine”, de 26 de setembro de 2016 (mas há uma penca de singles e EPzinhos no meio).

O que diferencia kigo dos outros imitadores descarados de Shields é o modo como sua criação soa soturna e melancólica. Os timbres e distorções são como cópias xerocadas dos do mestre: você identifica o original, mas a cópia sai mais suja e imperfeita.

Pearce faz tudo sozinho: compõe, executa, grava, mixa e lança. Nesse caso, em escreveu e gravou todas as canções em “hotéis ao redor da Austrália, entre 2013 e 2016”. É uma coletânea de sua vida nesse período.

“Some Other Place” é um exemplo de como a ambientação se apropriou do shoegaze de maneira capaz de inverter protagonismos: saem os muros de distorções e entra o que estava no meio, o clima e a contemplação. “A Memory Is Not Enough” e “It Is” idem.

“Sound And Score” e “Lust Lost” poderiam estar em “MBV”, com Pearce experimentando com botõezinhos e brinquedinhos valvulados. Por vezes, arrisca um vocal, como aqui. É raro e é mais um instrumento. “Sunshine” é um diário sonoro da sua vida, não canal poético de desafogo, de desabafo. É basicamente “som”.

Enquanto Shieds parece sempre vagar em busca da “genialidade” que seja associada a ele, Pearce parece se exercitar, querer entender a guitarra e seus brinquedinhos, ver o que é possível ser feito. É estudo e é hobby, é diversão e é uma válvula de escape. É despretensioso.

E vai continuar na obscuridade. kigo é daqueles projetos pra iniciados: aparenta imitação, derivação, mas tem um algo mais. De Pearce imagina-se aquela alma solitária, introspectiva, olhando pra si em busca de algo que só a música pode dar. É, de certa forma, um “herói”, lutando sozinho contra seus temores e contra o fato de que ninguém vai prestar atenção – e quem prestar vai ver outro artista, aquele do altar, intocável, genial e também solitário, utilizando as distorções como arma pra compreensão.

01. Sunshine
02. Everyone Waits
03. Can You
04. How (Can I See)
05. Some Other Place
06. Lust Lost
07. Put Me Down, Pick Me Up Again
08. A Memory Is Not Enough
09. It Is
10. Sound And Score

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