LÊ ALMEIDA – AULAS

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Em 25 de dezembro de 2020, Lê Almeida lançou “Aulas”, disco que chega quatro anos depois de “Todas As Brisas”, de 2016 (ouça na íntegra e leia mais aqui), com a compilação “Amenidades” no meio, em 2018 (ouça na íntegra e leia mais aqui).

Os discos de Almeida são saborosos porque sua guitarra e sua voz são um tempero único, que só ele consegue aplicar, inclusive nas bandas e projetos paralelos que possui na sua Transfusão Noise Records, etiqueta pela qual lança todos os seus discos. São trabalhos invariavelmente pessoais, de crivo pessoal.

Mas “Aulas” tem algo especial nesse sentido: seus pais. E este texto que ele mesmo publicou em uma rede social diz o suficiente sobre o álbum, de uma forma tocante.

“No meio da pandemia me dei conta de um monte de coisas, a maior delas foi que eu tinha tido algum tipo de sorte muito grande nos últimos tempos. 2019 foi o primeiro ano que eu passei quase ele todo fora de casa, em países que eu nem sabia falar a língua, foi uma experiência incrível e desafiadora, era difícil voltar o mesmo, ainda mais depois de ter feito parte de uma banda que sempre adorei, isso ainda é um sonho. Na volta pra casa em 2019 eu e o (João) Casaes tivemos nosso vôo adiado por conta de uma nevasca por mais um dia e perdemos o natal no Brasil. Minha mãe tinha me tirado no amigo oculto na festa de natal do quintal aqui de casa, perdi, mas Leticia fez um vídeo dela dando pistas antes de abrir o presente, enquanto eu voava de volta pra casa na noite de natal. Guardo o presente com muito carinho, é um porta retrato (sic) com uma foto nossa no meu aniversário em 2019″, escreveu.

O Natal de 2019 não tinha pandemia ainda. No de 2020, sim.

Daí, lembro de quantos conhecidos passaram o último Natal com familiares em 2019 e não puderam fazer o mesmo em 2020 por conta da covid-19, ou porque parentes morreram, negligenciados por governos federal, estadual e municipal negacionistas.

A data passou a ser, pra mais de 220 mil famílias vitimadas pela doença (até o momento em que escreve este texto), uma dia de tristeza.

Espero sinceramente que grande parte dessas famílias tenha membros com talento suficiente pra aplacar a dor com a arte, como Lê Almeida faz com “Aulas”.

Não, seus pais não morreram pela covid-19, mas o disco é sobre perdas e o lançamento no Natal tem seus motivos. O de 2019 teria sido o último dele com sua mãe.

“No dia 13 de março de 2020 a gente reabriu o Escritório (local de shows da Transfusão, no centro do Rio de Janeiro) depois de uma reforma, era uma sexta feira (sic), ali fazia dois anos que tínhamos perdido meu pai. Foi nesse final de semana que tudo fechou com a pandemia e eu senti o que estava acontecendo, fiquei em casa um longo tempo, minha vó nessa época dizia que minha mãe tava muito tranqüila por eu estar em casa. Eu comecei a andar de bike toda manhã pelo bairro e passei a tirar umas fotos analógicas de paisagens. Em maio, exatamente nos dias das mães, a minha mãe teve uma queda em casa, era o rompimento de um aneurisma, a gente perdeu ela de uma forma muito triste, eu e Letícia passamos por um imenso sufoco com hospital com pessoas que não se importavam que a nossa mãe estava morrendo, a gente fez tudo. Ela era o meu sol, guiava o maior dos equilíbrios”, seguiu.

“A gente sempre teve umas simbologias grandes em casa com datas, aniversários. Depois da ida dos nossos pais passar por essas datas que eram deles e nossas acho que passou a ser mais difícil, até angustiante. Entre a data do meu aniversário e da minha mãe (jul/ago) eu comecei a criar alguma rotina de gravação, tentar montar um disco, encontrar os amigos no Escritório pra gravar, Bigú estava voltando, muito assunto na cabeça. Voltei a gravar em casa, numa casa que ainda era nova pra mim e com uma janela onde eu sempre consigo ver a lua, quase que emoldurada pela janela de tão bem encaixada. Passei a cuidar do carro que era da minha mãe, que meu pai dirigia. Nele eu ouvia minhas mixagens do que andava gravando, me re-conectava com o bairro, esse carro sempre teve uma vibração incrível, a gente sempre deu valor, minha mãe pagou por ele com a barraca que ela tinha frente da casa onde morávamos. Sempre tive a melhor referência de trabalho autônomo dentro de casa, se organizar. Aulas fez eu me reorganizar num momento estranho, durante minha rotina de gravações eu recomecei umas obras em casa”.

A forma como Lê Almeida escreve seu relato – e leio enquanto ouço o disco – parece apropriadamente uma extensão da obra. Tudo exposto por ele é pessoal (e não pense que isso é “óbvio”, porque não é – artistas nem sempre têm coragem de olhar pra dentro de si mesmo e transformar em arte sofrimento e alegrias).

No caso de Almeida, não só é uma “terapia” pra um período doloroso, como um norte, algo onde se segurar pra não desmoronar. Eu faço isso com o trabalho, escrevendo – melhor do que com a birita, certamente.

“Algumas faixas eram coisas que eu tinha começado e largado, comecei desse ponto e as coisas novas eu gravava bem rápido sem pensar tanto, nessa situação eu passei a gravar com mais cuidado nos timbres do que às vezes seria só um esboço. Isso tudo fazia eu colocar alguma coisa pra fora. A meta era lançar no natal por um carinho nosso, aquele aniversário dele, sem ele. Consigo pensar em muitos momentos em várias faixas que gravei pensando e sentindo uma força dos dois, que sempre me apoiaram muito nesse caminho tão incerto e maluco. Enquanto gravava passei a explorar dois instrumentos que tinha comprado de uma viúva em Boise, nos EUA onde eu e Casaes moramos por um mês, um metalofone e um theremin. A conexão com a morte nesse período me fazia ligar algumas coisas, pensando com valor que eu usando algo com carinho e cuidado o que era de alguém que cuidou por tanto tempo talvez trariam só boas energias. Consegui alguns amps bem antigos num brechó no centro onde o dono do lugar tinha me contado que as caixas eram de um senhor de uns noventa e poucos anos que tinha morrido recentemente um tempo atrás. Usei muito uma dessas caixas no disco e durante umas mixagens de inserts e colagens eu reabri umas caixas velhas de fita cassete que eu e Joãozin tínhamos achado anos atrás numa calçada no bairro do Flamengo, eram fitas sobre ocultismo, esoterismo, poesia, meditação. Todas com muitas anotações, ali descobri que essas fitas eram de uma mulher, algumas com poesias dela, declamadas por ela. Dessas fitas eu venho tirando umas doideiras desde que achamos, mas são tantas caixas de fitas que eu vou ter que ir descobrindo e viajando aos poucos”, disse.

É possível viajar nas palavras no momento em que se ouve as experimentações de “Falta Fatal”, jogo de palavras pertinente, antes da amalucada “Imaculada” e, claro, a intensa “Amarração” (uma das melhores do disco, junto com “Aulas”).

“‘Aulas’ é dedicado aos meus pais Antonio Carlos e Sonia Maria, primeira coisa que faço sem os dois. Também é dedicado a minha irmã Leticia Almeida ❤ (que toca metalofone na primeira faixa!) e minha Vó Lenir Silva Lullini, que me ajudou com a capa, nas costuras e com a vida ao longo dos anos. Amo vocês”.

Sorte deles e de todos os seus amigos ter Lê Almeida como o vocábulo artístico de suas vidas; e sorte de suas experiências que produziram a sorte de termos um disco tão pessoal e tocante, sem ser piegas o choroso.

Só me ensinaram o que era o amor.

“Aulas” foi gravado por Lê Almeida (vários instrumentos e voz), com Bigú Medine (baixo), João Casaes (baixo nas faixas 2, 5 e 8, sintetizadores nas faixas 1, 2, 3, e intervenções e guitarras nas faixas 9 e 11) e Joab Régis (bateria nas faixas 9 e 11).

Há ainda as participações de Leticia Cristina (metalofone na faixa 1), Rumi Kuzmic (violino nas faixas 3 e 6), Laura Lavieri (vocal de apoio na faixa 6), Julio Santa Cecilia (sintetizadores, drones e intervenções na faixa 7), André Medeiros (guitarra na faixa 8), Daniele Vallejo, Dinho Almeida, Felipe Oliveira e Joab (coral na faixa 9), além de Barbara Guanaes (metalofone) e Felipe (trompete) em “Amarração”.

01. Constelação De Virgem
02. Luar Crescente
03. Interior De Qualquer Desordem
04. Apreço Antigo
05. Insight Fim
06. Coroação
07. Fatal Falta
08. Imaculada
09. Amarração
10. Castelo De Asas
11. Aulas

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