LEO JAIME, SOLANGE E A VINGANÇA DE UMA GERAÇÃO

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Pode ser que Leo Jaime tenha cutucado onça com var curta, ao nomear seu disco de estreia como “Phodas ‘C'” em numa época onde liberdade era tão raro quanto estabilidade econômica. Mas, oras, a culpa era de qualquer um, menos dele.

Vindo do João Penca E Seus Miquinhos Amestrados, Jaime tinha a metade humorística ainda muito forte, o que lhe deu uma leveza na carreira até hoje, uma de suas marcas, especialmente em épocas duras como aquele começo dos anos 1980.

“Phodas ‘C'”, de 1983, foi vetado pela Censura, o órgão de repressão artística que só foi extinto oficialmente com a Constituição Cidadã de 1988. Na época de seu lançamento, quem comandava a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) era Solange Maria Chaves Teixeira Hernandes, ou simplesmente Solange Hernandes, a temida e odiada delegada da Polícia Federal (PF) que riscava vinis, apagava letras, tirava do intestino seu ódio pra colocar-se contra a criatividade.

Ela chefiou o órgão de 1981 a 1984 e se tornou a censora mais famosa do Brasil, o que, definitivamente, não é algo pra se orgulhar, apesar de se esconder na contra a “falência moral” e a favor dos “bons costumes” e da “ordem política”.

Isso incluía “Phodas ‘C'”, pra desespero de Leo Jaime. O disco acabou indo pra prateleira, mas recebeu o rótulo temido pras vendas de “proibido pra menores de 18 anos”, justamente o público de Jaime. As canções, como “Aids”, sobre a recém-descoberta doença, e “Sônia” foram proibidas de execução pública. Jaime chegou a fazer um comentário, como lembra o livro “Dias De Luta: O Rock E O Brasil Dos Anos 80”, de Ricardo Alexandre, de que a doença deveria “ser boa, como tudo o que vem dos Estados Unidos”, numa crítica à subserviência brasileira – uma afirmação dessas hoje em dia seria um deus-nos-acuda e vale lembrar que em 1983 ninguém fazia ideia da dimensão do problema.

Mas “Phodas ‘C'” também não era assim o disco dos sonhos de Leo Jaime. Ao Jornal do Brasil de 12 de março de 1985 (dia, veja só, da posse de Mikhail Gorbachev como líder russo), Jaime afirmava que o resultado do disco foi “tecnicamente perfeito, mas sem qualquer emoção”, por conta de Johnny Galvão, produtor português que a CBS chamou pra trabalhar com o músico. Jamari França, que assina a reportagem, disse que Galvão era “um ótimo profissional, mas totalmente ignorante ao trabalho” de Leo Jaime.

O músico queria um disco “mais sujo”. “Eu saquei que o caminho certo era fazer o que eu tinha mais convicção, o mais sincero possível mesmo que às vezes dê vergonha de mostrar, porque é muito íntimo”, ele disse. “A sinceridade é primordial pra fazer um trabalho de qualidade, se o disco vender bem, parabéns, se não vender, em outro momento, quem sabe”, completou, já escaldado com o resultado pífio de “Phodas ‘C'” na caixa registradora, agravado pela censura.

E assim nasceu o “Sessão Da Tarde”, o disco que de fato lançou Leo Jaime, com lançamento pela Epic, naquele 12 de março de 1985. Nele estão “Fórmula Do Amor” (com participação do Kid Abelha), “Só”, “As Sete Vampiras”, “Amor Colegial”, “Abaixo A Depressão” e… “Solange”, uma versão de “So Lonely”, que o Police lançou em 1978, no “Outlandos d’Amour”, sem disco de estreia.

“O disco tem uma homenageada especial, a D. Solange Hernandez (grafada com ‘z’), recém-demissionária do Serviço de Censura e Diversões Públicas”, escreveu Jamari França. “Um dia ele estava com um caderno de letras do Police e não lembrava dessa música, perguntou pro Leoni (do Kid Abelha) que mandou: ‘é aquela Solange, Solange’. Leo teve um clique e fez uma música aproveitando um verso que ele já tinha na cabeça, ‘Solange, por você meu dente range'”.

“D. Solange foi uma homenagem justa a uma pessoa que participou a pampa do meu trabalho, proibiu quase todas as músicas, me fez perder uma montanha de dinheiro. A música foi liberada porque ela não apareceu na Censura no último mês, de ter ficado muito deprimida com o fim da ditadura”, alfinetou o artista.

Deprimida não foi o caso. Mas teve que correr pra ter sossego. Solange Hernandes se mudou pra São Paulo, no bairro de classe média alta Pinheiros, mas logo teve que se mudar pra Ribeirão Preto, a mais de trezentos quilômetros da capital paulista. Ela tinha medo de ser descoberta por vizinhos e por jornalistas e historiadores.

Ficou “escondida” (assim mesmo, entre aspas, porque foi simplesmente esquecida lá, em sua aposentadoria como ex-delegada da PF) até 2010, quando o Correio Braziliense conseguiu uma matéria curta com ela.

“Eu não sou feroz, eu não mordo”, disse ao repórter que a contatou por telefone. Mas era feroz na chefia do DCDP, com seus 279 funcionários, sendo 87 lotados em Brasília e o resto nos estados.

Em 1981, “foram analisadas 56.877 letras musicais. Ao todo, acabaram vetadas 1.168. Solange, entretanto, achava pouco”, diz a matéria. Ela reclamava que o órgão tinha pouco dinheiro.

Ela acreditava que o DCDP era “um órgão moderador entre a liberdade de criação e expressão dos artistas e criadores e o grande público receptor de suas mensagens”. Acreditava que realmente estava servindo bem seu país. Bom, é o que todas as autodenominadas “pessoas de bem” acham, independente do mal que causem – e sempre causam.

“Solange pode até dizer que não é feroz, mas entre todos os antigos integrantes do quadro da DCDP foi ela que passou a ser considerada a mais autoritária. Personificou a censura como nenhum outro censor. A assinatura dela aparecia antes de programas de televisão”, segue a matéria do CB. O que diferenciava Solange dos chefes anteriores da DCDP era o método. Mesmo no fim do período militar, ordenou aos subordinados mais ação durante a análise das letras musicais e de filmes”.

Quem via televisão naquela época, sempre se deparava com o selo da Censura antes de começar o programa, especialmente filmes. E a assinatura dela estava lá.

A revista Veja lembra que “sua intervenção mais polêmica foi a censura ao filme ‘Pra Frente, Brasil’, dirigido por Roberto Farias, que ela vetou por considerar um panfleto contra o regime vigente à época. A produção foi uma das primeiras a expor abertamente a tortura praticada pelos militares. A Justiça acabou liberando o filme em 1983, mas o episódio acabou provocando a demissão de Celso Amorim, que foi ministro nos governos Dilma e Lula, mas à época presidia a Embrafilme e autorizou o financiamento público do filme”.

Em “Solange”, Leo Jaime canta: “Eu tinha tanto pra dizer / Metade eu tive que esquecer / E quando eu tento escrever / Seu nome vem me interromper”. E segue: “Eu tento me esparramar / E você quer me esconder / Eu já não posso nem cantar / Meus dentes rangem por você” (sim, o verso apareceu mas de maneira diferente).

A estrofe mais “raivosa”, por assim dizer, é quando Jaime canta “Eu penso que vai tudo bem / E você vem me reprovar / E eu já não posso nem pensar / Que um dia ainda eu vou me vingar”.

A vingança de Jaime e de toda a sua geração foi simplesmente a conquista da democracia, da liberdade de pensamento e de expressão e do Brasil que passou-se a construir, entre erros e acertos, desde a Constituição de 1988. Esse Brasil, acreditava-se, não era mais um lugar pras Solanges.

Mas daí veio Bolsonaro e ele e seus ferozes apoiadores nos lembram que, sim, o fantasma da repressão, da censura, do autoritarismo estão por aí, sempre nos rondando. Querem o fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), porque acreditam que não exite hoje liberdade de expressão, que é justamente o que lhes permite pedir fechamento de um dos poderes da República. Por essa gente, Solange nunca teria se aposentado.

Mas Solange até já morreu, em 2013, aos 75 anos, no ostracismo. A mulher que dizia lutar pelos “bons costumes” entrou pra história como o que há de mais obscuro e sombrio nas sociedades. Só lembramos dela como exemplo do que não devemos ser e fazer. É assim que Bolsonaro vai terminar seus dias, esperamos: sozinho, isolado, atormentado pelos verdadeiros ventos da liberdade, que artistas como Leo Jaime simbolizam, a despeito de novas Solanges se arvorarem por aí.

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