Quando o guitarrista Leandro, do Falsos Conejos, teve que enrolar um pouco com a plateia, enquanto arrumavam um amplificador que insistia em dar pau e o deixava visivelmente irritado, ele foi ao microfone, objeto quase decorativo no Festival A Música Muda, e sublinhou o que o evento que se iniciava ali representava: “a música somos só nós tocando o que gostamos, é a nossa viagem, e vocês viajando do jeito de vocês, sem ninguém ou nada nos dizendo como devemos nos sentir”.
Porque música instrumental é exatamente isso: a poesia sonora, sem a poesia cantada e interpretada por voz. É poesia. A música é muda, sem fala, mas não sem voz. E ela muda nossos conceitos, tem esse poder. Baixo, guitarra e bateria, duas bandas de formação similar e sonoridades diferentes ressaltando que “música instrumental” não é “estilo”, “tag” (leia mais sobre isso aqui): ela diz muito mais do que essa etiqueta.
O primeiro dia do festival, unindo Macaco Bong, de Cuiabá, e Falso Conejos, de Buenos Aires, era um bom exemplo dessa diversidade.
O SESC Pompeia estava cheio pra ver o Macaco Bong, que subiu ao palco com alguns minutos de atraso (estava marcado pras 21:30h). Fãs estavam com saudades da banda, que na primeira década deste novo século, apontou como a mais importante do cenário independente, fazendo shows por todo canto do país (um tanto por conta da ligação com o polêmico Fora do Eixo, uma história que você pode ouvir com exclusividade nesta edição do podcast “O Resto É Ruído”).
Depois da turbulenta desassociação com o Fora do Eixo, o guitarrista Bruno Kayapy reformulou o grupo e o SESC recebeu o novo Macaco Bong, com Eder Uchôa (bateria) e Igor Jaú (baixo).
Apesar do som um tanto embolado, a plateia conheceu duas músicas novas, que abriram a apresentação, “Foi-se Aquela Gota” e “Kiss From The Bong”. Kayapy só foi informar que eram novidades mais pra frente, perto do bis, enquanto o roadie trocava a corda da guitarra. Deu pra perceber algumas pessoas empolgadas com a proximidade de um novo disco, o terceiro do Macaco Bong.
Kayapy está à vontade. Sua banda é boa. O baterista Eder Uchôa tem cara de tiozinho dos anos oitenta, se veste como um tiozinho dos anos oitenta, mas desce a porrada com as baquetas como um menino. A banda é entrosada. Os rifes de Kayapy se alternam com as paradinhas bem encaixadas, com o aparente descontrole das canções (há momentos em que os três integrantes parecem tocar cada um uma coisa), e tudo soa febril, vibrante, como se o guitarrista estivesse desabafando. Ele pinga de suor. “Black Marroca”, mais uma nova, tem um clímax exuberante, explosivo.
Ninguém deixa o Macaco Bong ir embora. Desperdiçar esse momento? O público quer mais e é curioso, porque a imagem dos três nos palcos às vezes não casa com o que sai dos amplificadores: há energia demais no ato de tocar, e pulsação de menos chegando aos nossos ouvidos. Faltou volume. Mas ainda bem que a banda compensou com barulho, ruídos e uma boa capacidade de entreter.
Depois de uma hora e quinze, os brasileiros deram espaço pros argentinos dos Falsos Conejos, amigos de longa data.
Os coelhos fazem um som diferente do Macaco. Enquanto os brasileiros se mostram hábeis em espancar os instrumentos e se encaixariam com precisão na trilha de um filme de Tarantino ou na abertura de um programa de esportes radicais, os argentinos são mais calmos, metódicos, mais leves.
Os Conejos JuanK (baixo), Matias (bateria) e Leandro (guitarra) tocam canções quebradas, um tanto sem nexo, sem ligação, reverenciando de Shellac e Helmet ao jazz moderno, com algumas doses de hard rock, como se viu em “Villazon”.
O avançado da hora jogou contra eles, que viram a plateia diante de si se esvair (ah, o transporte público de São Paulo que se encerra cedo…). Mas quem ficou e procurou entender a lógica da poesia musical viu uma banda igualmente coesa e lutadora por seus ideais sonoros – e contra os empecilhos técnicos, como o tal amplificador citado no começo deste texto.
O disco mais recente deles é “YYY”, de 2010, mas fosse o que fosse, impressiona ver o Falsos Conejos em ação. A banda tem um baterista com bastante variação de repertório, um baixista que adora ruídos e um guitarrista econômico e certeiro, sem firulas.
No fim, a celebração: Kayapy sobe ao palco e toca com os amigos argentinos “Interstellar Overdrive”, do Pink Floyd, culminando num epílogo ruidoso e caótico. Abraços no final. Satisfação.
A música sem fala, a música muda, é ruidosa, raivosa e instigante. E muda pra melhor o humor de qualquer um.
Veja o Macaco Bong tocando “Black Marroca”: