“Enquanto Não Durmo O Dia É O Mesmo” começa com uma trinca ensurdecedora: a instrumental “Não Sou Mais De Onde Vim”, depois vem “Feminismo E Liberdade Pessoal” e daí “Troca”. A guitarra de Melinna Guedes, ou simplesmente Melinna, se contorce como a do Velvet Undergoround no “White Light White Heat”, embora ela aponte outras as suas influências.
“Na real, eu nem sei direito especificar minhas influências pras músicas desse projeto porque foram muitas mesmo, e acho que me influencio muito mais pelas ideias da galera do que exatamente pelo próprio som. Se for falar de uma sempre presente foi a Patti Smith, em vários aspectos, Sonic Youth e Dinosaur Jr. também… várias paradas tipo Mudhoney etc., mas o que mais me marcou ultimamente veio de artistas e bandas nacionais, de selos próximos, dessa efervescência que tá rolando (…)”, escreve ela no comunicado à imprensa.
Melinna é guitarrista e vocalista do trio punk Oldscratch, que lançou em fevereiro de 2016 o petardo “Padrões De Conserva” (ouça aqui, faça isso!) e mergulhou nesse projeto solo, que lançou também em 2016 o EP “Pedras No Sutiã” (ouça aqui).
O punk do Oldscratch, que tem grunge e tem Mercenárias, não foge muito da temática poética apresentada aqui, em “Enquanto Não Durmo O Dia É o Mesmo”. Mas a Melinna solo é mais provocadora na sonoridade. Sua guitarra não soa óbvia e tenta acompanhar seu estilo vocal sem métrica definida, ora acelerado, ora falado, ora gritado.
“Feminismo E Liberdade Pessoal” parece ser a bula do projeto: “Pra ser mulher ativa é preciso quebrar quantas barreiras, pular quantos muros? / Quando finalmente se constrói o próprio lar é muito difícil voltar pra velha casa / E é assim que eu me sinto em relação ao feminismo e à minha liberdade pessoal, a minha casa”. E sentencia em definitivo: “Nós já sabemos da nossa repressão / Sabemos da nossa castradora criação”.
Viver é difícil, ainda mais se você for pobre, negro, gay ou mulher, sempre comparado com ser rico, branco, hetero e homem. Enquanto a sociedade vai dando passos largos ao atraso e consolidando-se pra deixar a vida ainda mais difícil, é preciso gritar. E distorcer a melodia, se houver ensejo pra melodias.
Melinna tá fazendo a parte que compete ao expurgo do seu incômodo. Sendo urgente, como na desconstrutiva “Troca”; sendo ruidosamente vibrante, como na retorcida “Liquidificador Filosófico” (“Palavras se apropriam de tudo / Às vezes nem consigo lembrar o que eu acabei de pensar” são versos reflexivos e contundentes); sendo o que todo jovem deveria ser, curioso, questionador, incomodado, provocador. E, claro, você não precisa ser jovem na carteira de identidade pra ser tudo isso.
Outra diferença com a Oldscratch é a inclusão de peças mais introspectivas, como a faixa-título, “Sono E Coração” e “Coisas”. Violão e um vocal mais “calmo” se apresentam.
Em “Sono E Coração”, Melinna deixa-nos ouvir o sotaque de alagoano (ela é de Maceió) num quase-canto. É a exposição do seu incômodo, mais uma vez: “Teve um dia que dormi sem querer com a casa ainda aberta / Mas dessa vez não sonhei com ondas gigantes ou com alguém invadindo minha casa / Onde eu crio diversas maneiras ou armas pra impedir / Dessa vez acho que até meu inconsciente não aguentava mais as mesmas coisas / Do nada, pescoço pinga, acordo com tanta palavra fervendo minha cabeça / Como se me cobrassem algo que eu deveria ter iniciado há muito tempo”.
Veja, Melinna é como tantas outras pessoas de sua geração (e das gerações que se foram e as que virão a seguir): vai sofrer com os preconceitos, com as injustiças, mas ao contrário de seus pares, vai se indispor com o que a sociedade há milênios trata de perpetrar. Sua voz é a música e a poesia não-uniforme. Compor, tocar e cantar são o seu desabafo.
Afinal, não é pra isso que a música jovem serve? Pra combater injustiças, desalentos e decepções?
1. Não Sou Mais De Onde Vim
2. Feminismo E Liberdade Pessoal
3. Troca
4. Uva
5. Enquanto Não Durmo O Dia É O Mesmo
6. Sono E Coração
7. Liquidificador Filosófico
8. Coisas