“Foi uma experiência bem profunda, fiquei obcecada com aquilo. Levei algo em torno de nove meses trabalhando com afinco. Criei meus próprios instrumentos no passado, mas nesse trabalho, usei basicamente viola pra compor e gravar, embora nós tivéssemos outros músicos de apoio, pra dar volume ao negócio (…) Compor pra um filme é um novo território pra mim”, escreveu Mica Levi com exclusividade pro Guardian, em março de 2014 (leia o original aqui), relatando a experiência de pisar no terreno cinematográfico pela primeira vez, com “Sob A Pele”, suspense que mostra Scarlett Johansson como uma alienígena sugando a pele, a vida e a essência de seus homens-presas.
A direção pouco habilidosa de Jonathan Grazer (de “Reencarnação”, 2004, com Nicole Kidman; e do interessante “Sexy Beast”, 2000, com Ben Kingsley) acabou sendo salva pelo clima criado pela fotografia escura de Daniel Landin e pela música soturna de Mica. Nessa obra, o ex-diretor de vídeos musicais (Massive Attack, Blur, The Dead Weather e Radiohead estão no seu currículo) deve muito aos dois, em especial à senhorita Levi.
“Ouvi a palavra ‘sobrenatural’ sendo usada um par de vezes pra descrever a música, mas isso não era uma instrução específica de Jon e Pete (Peter Raeburn, produtor musical). A ideia era seguir o personagem de Scarlett Johansson e tentar reagir em tempo real ao que ela estava experimentando, pra não antecipar-se ou refletir sobre as coisas que já aconteceram no filme. Algumas passagens tinham a intenção de ser bem difíceis mesmo. Se a sua vida está sendo sugada por um alien, não vai necessariamente soar muito agradável”, segue ela.
Mica Levi nasceu em 1987 em Watford, uma cidade suburbana a noroeste de Londres. Seus pais eram como “nerds da música”, ela gosta de dizer. O pai era um professor de música na Royal Holloway, da Universidade de Londres. A mãe, uma professora de violoncelo. Logo cedo, ainda criança, Levi aprendeu a viola, o violino e violoncelo. Ela estudou no Guildhall School Of Music And Drama, também em Londres.
Aos trinta anos, já experimentou um bocado na vida. Conhecida como Micachu, criou o Micachu And The Shapes (com Raisa Khan nos teclados e Marc Pell na bateria) e lançou três conceituados discos, que foram avaliados como “pop music com noise e distorção”. Por causa dos compromissos com a banda, ela nunca se formou na faculdade.
Mas até que tudo ia bem. O primeiro disco, “Jewellery”, de 2009, ganhou críticas variadas, embora na maioria das vezes elas se encontravam no lado do positivo. É que Micachu fazia quase um pop infantil: era bonito, acessível e melodioso, ao mesmo tempo em que tinha canções quebradas por instrumentos não usuais, por barulhos e por estranhezas diversas.
Vídeo de “Golden Phone”:
Vídeo de “Turn Me Well”:
Antes de Mica se aventurar pelas telas, com “Sob A Pele”, o trio ainda lançou “Never”, em 2012. O terceiro álbum, de 2015, “Good Sad Happy Bad” curiosamente fez a banda mudar de nome pra… Good Sad Happy Bad. Mas ninguém pareceu se importar muito, de fato.
Nesse ínterim, chamando atenção da imprensa “alternativa” ou “indie”, acabou excursionando e tocando em festivais como V Festival, Bestival, CMJ, SXSW e o All Tomorrow’s Parties de maio de 2011, que teve curadoria do Animal Collective.
“A música que eu compunha na faculdade era pra quarteto de cordas, usando um bocado de harmonias e técnicas. Pra ‘Sob A Pele’, nós queríamos achar algo humano no som natural de um instrumento, pra daí então desacelerar ou mudar o andamento e o tom e assim parecer desconfortável. O resultado soa assustador, mas queríamos que fosse sexy“, escreveu.
Não foi em trilhas pra filmes que Mica Levi se inspirou pra estrear no cinema. Ela admite que teve influência de um monte de coisas do século XX, como Giacinto Scelsi, Iannis Xenakis e John Cage, “esses grandes compositores que mudaram a música”, mas que também foi buscar no mundano uma leitura da personagem de Johansson: “também me inspirei na música de clubes de striptease“.
“Foi uma experiência totalmente diferente de fazer música como Micachu And The Shapes”, resume.
Ouça na íntegra a trilha de “Sob A Pele”:
Sim, parece óbvio que a música pop, a mais “alternativa” ou a “de mercado”, é totalmente diferente da música pras telas. Elas seguem objetivos distintos. A música pop entretém por si só – mesmo contestadora que seja, ela tem um cunho social bem aplicável – enquanto a música de cinema se presta a um produto mais amplo, o filme, que é a obra de outros artistas, o diretor, o montador, o roteirista. Entretanto, Mica Levi acabou se destacando por justamente não fazer trilhas que se enquadram no usual. Suas notas não redundam a ação que se vê na tela.
Ela não teria só essa experiência cinematográfica. Embora “Sob A Pele” não tenha sido bem recebido pela crítica (aqui dou um chute baseado apenas no achismo: aposto que vai se tornar alguma espécie de cult movie em uma ou duas décadas, porque ele tem cara de filme B, o que pode gerar alguma nova visão e análise de uma próxima geração), Mica causou boa impressão, a ponto de ser indicada ao Bafta. Nesse ano, ela concorreu com outro grande compositor saído do “indie” (desculpe-me pelo termo) e que também vem se firmando no cinema, Jóhann Jóhannsson (com “A Teoria De Tudo”). Ambos perderam pra Alexandre Desplat, por “O Grande Hotel Budapeste”.
O chileno Pablo Larraín, diretor do inquietante “No”, de 2012, com Gabriel Garcia Bernal, ficou impressionado com o trabalho de Levi e a quis pra biografia de Jacqueline Kennedy que iria filmar em 2016. “Jackie” é um filme exuberante muito graças ao roteiro sempre beirando o clímax, ao show de interpretação de Natalie Portman (sempre prestes a entrar em colapso), ao figurino e à trilha de Levi, que acabou também sendo indicada ao Bafta (dois filmes, duas indicações, 100% de aproveitamento, e mais uma vez contra Jóhannsson, que concorreu com “A Chegada”) e ao Oscar, vindo a perder ambos pra Justin Hurwitz, de “La La Land”.
Há um reforço a ser feito: Levi é só a quinta mulher a concorrer ao Oscar da categoria e a primeira mulher em dezesseis anos a ser indicada – a última havia sido Rachel Portman, por “Chocolate”, de 2000 (que é a única mulher a ganhar na categoria, por “Emma”, de 1996).
Em ambos os trabalhos, Mica não estava fazendo nem a sua música pop-torta, nem tampouco estava seguindo padrões de trilha pra cinema. Ned Beauman, em fevereiro de 2017, resolveu escrever um artigo sobre a obra cinematográfica dela, pra revista New Yorker, com o título “as trilhas intensamente não-convencionais de Mica Levi”, e com o subtítulo “a compositora indicada ao Oscar faz música que se recusa a acompanhar a ação”. No artigo, ela aponta a Beauman duas “escolas” de compositores pra cinema: o que tenta fazer algo novo e diferente e o que busca acelerar a trilha, como em filmes de ação, suspense, infantis.
“Algumas das mais queridas primeiras experiências de Levi com música orquestral foram as trilhas pra filmes da Disney, que ela via insistentemente quando criança – e ela considera ‘La La Land’ (leia sobre essa trilha aqui), que ela curtiu, como parte dessa tradição. ‘O que ‘La La Land’ tentou fazer é trazer de volta uma forma de entretenimento, ao contrário de um bocado de outros filmes que têm por aí, incluindo ‘Jackie’, que é um tanto mórbido. Hoje em dia ainda se consegue esse tipo de entretenimento na Disneylândia ou em filmes como ‘Ela Dança, Eu Danço 2’, mas as pessoas sentem falta disso em filmes pra adultos”, disse ela no artigo.
“Nessa tradição – e, de fato, na grande maioria dos filmes -, o que se espera é que a música conjumine perfeitamente no espetáculo”, completa.
Levi dá a Beauman uma visão interessante: os expectadores não se tocam que os filmes têm música. É bizarro ouvir tal afirmação, mas talvez seja pelo fato de que a música sempre esteve lá, ela simplesmente faz parte de um filme. Por isso, pouca gente nota. A música tem o poder de fazer crescer uma cena – inclusive nesses arrasa-quarteirões hollywoodianos. Experimente tirar a música da cena de um filme qualquer e é capaz do espectador não notar que falta algo, mas, no oposto, experimente colocar música numa cena sem música e verá como ela encorpa.
“Randall Poster, um supervisor musical que já trabalhou em filmes de Martin Scorsese e Wes Anderson, é um admirador da obra de Levi”, escreve Beauman. “Ele me disse que o que faz a trilha de ‘Jackie’ ser incomum é que ela é elementar pra história e não um aditivo, é a medula da narrativa”.
“Pablo Larraín especialmente manifestou tal característica com suas escolhas em relação à música de Levi: ele aumentou a trilha no mix de áudio, e encontrou lugares inesperados pra encaixá-la. Uma das composições mais marcantes na trilha de ‘Jackie’ é ‘Walk To The Capitol’. Se você ouve sem saber de que tipo de filme veio, pode imaginar, a partir das conhecidas cordas de Bernard Herrmann, que acompanha uma cena em que a heroína é perseguida numa casa escura por um monstro, mas Larraín usou o tema pra procissão do funeral de JFK”, diz no artigo.
Sobre tal cena, Levi disse a Beauman: “eu havia sugerido uma música diferente pra cena – que não era assustadora, que era mais emotiva, mais patriótica, porque é assim que eu a interpretei”. Esse é um dos exemplos de como o diretor redefiniu a função da música. É um trabalho conjunto, onde o autor (no caso, o diretor) tem a palavra final. “Embora Levi alegue que suas intenções eram ‘mais convencionais’ que as de Larraín, o próprio diretor me disse o contrário”, conta Beauman: “ela não pega o caminho convencional – ela não encaixa uma nota ‘triste’ numa cena triste; ela vai encontrar um tom emotivo que adicione mais emoção ao filme; sua sensibilidade revela uma outra dimensão”.
As duas experiências cinematográficas de Levi foram amplas e distintas. Enquanto com a Micachu And The Shapes – a música pop em si – Mica Levi assumia um personagem que dava aos fãs até ali conquistados (e à imprensa e ao selo Rough Trade) um certo e aguardado tipo de música, assumida como identidade do grupo, como compositora de trilha sonora, Levi precisa sempre começar do zero, inventando a partir da criação de outras pessoas – o diretor e o roteirista. Na sua curta experiência, teve dois filmes distintos.
No primeiro, uma história noir passada na Escócia. Marcelo Hessel escreveu sobre o filme (leia aqui): “coincidência ou não, o cabelo moreno da predadora alienígena vivida no filme por Scarlett Johansson está igualzinho ao de Monica Vitti em ‘A Noite’, o segundo filme da Trilogia da Incomunicabilidade de Antonioni. Pra espelhar a incompletude do ser, Glazer e sua protagonista refazem o trajeto do cineasta italiano por dias e noites, ruas e festas, num lugar onde tudo parece meio abandonado ou à beira do fim – Milão no caso de ‘A Noite’, a Escócia e seus vazios em ‘Sob A Pele’ (…) Glazer recorre a paisagens de impacto pra criar essa opressiva geografia humana – como a floresta de galhos-espinhos que ‘violentam’ a protagonista – enquanto estiliza, com a ajuda da trilha sonora saliente de Mica Levi, as cenas das ‘refeições’ da alien”.
No segundo, um drama massacrante sobre as horas e dias que se seguem a partir do momento em que a esposa mais famosa do mundo perde o marido mais famoso do mundo, com os miolos dele espalhados em sua roupa elegante, tendo que dar satisfação aos filhos e à imprensa, parecer forte e determinada e enfrentar os novos habitantes do poder. Uma história real, ao contrário da alegoria do primeiro trabalho.
“Porque ela era uma figura histórica real, porque ela era americana (Levi, vale lembrar, é inglesa), fecha-se a caixa do que você pode fazer”, ela disse a Beauman. “Levi inspirou-se na própria Jackie: ‘ela era leve e arejada e felina, então pensei que a flauta seria bastante apropriada’ – e partiu de uma música que os Kennedy poderiam gostar. (…) Ela evitou ouvir quaisquer gravações reais, de, por exemplo, Paul Winter Sextet dando o primeiro concerto de jazz na Casa Branca, em 1962. ‘Caso contrário, eu poderia apenas copiá-lo’, disse ela”.
Do sobrenatural ao drama histórico, Levi deu um jeito de mesclar as duas experiências. Beauman aponta que o “que faz as trilha de ‘Jackie’ ser memorável é que as texturas orquestrais familiares das prestigiadas biografias hollywoodianas foram mescladas com alguma coisa estranha, como se topássemos com a alienígena de ‘Sob A Pele’ escondida do quarto de Abraham Lincoln”.
O universo da música pop/rock sempre esteve rondando o cinema e seus personagens sendo reconhecidos por isso. Cher foi agraciada com o Oscar de melhor atriz, uma baita honraria, pelo boboca “Feitiço Da Lua”, de Norman Jewison, de 1987. Jennifer Hudson não era uma cantora de sucesso como Cher quando ganhou o Oscar de atriz coadjuvante em 2007, por “Dreamgirls: Em Busca De Um Sonho”, de Bill Condon, mas a projetou ainda mais do que o programa “American Idol”. Os Beatles levaram a estatueta em 1971, por “Let It Be”, de Michael Lindsay-Hogg. Pelo filme de 2010, “A Rede Social”, de David Fincher, Trent Reznor, do Nine Inch Nails, surpreendeu e levou o Oscar de melhor trilha original. Annie Lennox (do Eurythmics), Stevie Wonder, Eminem, Elton John, Sam Smith, John Legend, Bob Dylan, Lionel Ritchie, Adele, Carly Simon, Phil Collins, Bruce Springsteen e Prince já levaram o Oscar de melhor canção. A lista segue.
Mas Mica Levi parece já pertencer a uma espécie de casta de compositores, como Ryuichi Sakamoto (que levou o Oscar junto com David Byrne pela trilha de “O Último Imperador”, 1987, de Bernardo Bertolucci), Reznor e Jóhann Jóhannsson, por exemplo, que transitam muito bem entre os palcos, as críticas positivas, as vendas de discos e as telas de cinemas.
Beauman pontua dizendo que “Levi não é o tipo de experimentalista que persegue a aniquilação das velhas formas de atuar. ‘Você pode fazer algo novo, mas se você fizer isso com ódio das outras coisas, é um tanto desagradável, e o resultado não vai ser muito bom’. Pra ela, o maior valor é a autenticidade. ‘Eu tenho que ficar com meus instintos. É tudo o que eu tenho'”.
Na linha tênue entre acertar e ser desastroso que um compositor de trilhas se equilibra, o instinto deve ser o instrumento mais afinado a soar.