NEIL ARMSTRONG E DAVID BOWIE – O MITO DA BOA SORTE

Foi em 10 de janeiro de 2016, dois dias após completar 69 anos, que David Bowie morreu. A notícia bateu logo cedo, numa segunda-feira, dia seguinte ao acontecido, como se fosse a notícia trágica da passagem de algum amigo.

Quarenta e oito horas antes, Bowie lançava um disco, “Blackstar”. Tony Visconti, seu produtor preferido, disse: “sempre fez o que queria fazer. Sua morte não foi distinta de sua vida: uma obra de arte. Fez ‘Blackstar’ pra nós, seu presente de despedida”.

Até antes de sua morte, já havia gente dizendo que “Blackstar” podia figurar entre os melhores discos de sua carreira. E não foram poucos álbuns: vinte e cinto. Mais: é uma trajetória incomparável de clássicos, como “Space Oddity” (1969), “The Man Who Sold The World” (1970), “Hunky Dory” (1971), “The Rise And Fall Of Ziggy Stardust And The Spiders From Mars” (1972), “Aladdin Sane” (1973), “Diamond Dogs” (1974), “Low” (1977), “Heroes” (1977), “Lodger” (1979) e até mesmo alguns que foram recebidos com desconfiança, “Young Americans” (1975), “Let’s Dance” (1983) e “Never Let Me Down” (1987) (leia o que o Barcinski escreveu sobre Bowie).

Sem contar as passagens pelo cinema – especialmente “O Homem Que Caiu Na Terra”, de 1976; e “Fome De Viver”, de 1983 -, além de moda e pintura.

Foi no cinema que ouvi falar de Bowie pela primeira vez. Foi em “Fome De Viver”. Eu era pré-adolescente e achava legal ser, errr, “gótico”. No começo do filme, o Bauhaus tocava “Bela Lugosi’s Dead”, numa boate digamos “vampiresca”. A cena tem a marca publicitária do finado Tony Scott, que estreava na direção cinematográfica aqui. Fui atrás da banda pra conhecer e me deparei com um single recém-lançado, uma versão arrebatadora de “Ziggy Stardust”, de David Bowie.

Foi uma maneira estranha de tomar contato com a obra dele. Até porque, em 1983, Bowie lançava um disco de alta rotação pop, o “Let’s Dance”, Dele saíram “China Girl” (escrita com Iggy Pop, que eu também sabia quase nada sobre quem se tratava), “Modern Love”, a faixa-título e “Cat People” (que até rendeu uma indicação ao Globo de Ouro, junto com Giorgio Moroder).

Ao mesmo tempo, eu ligava os pontos: Bowie era aquele cara que cantara com o Queen a insuportável (eu achava, hoje é uma das que eu mais gosto, porque quando a gente é jovem a gente acha que sabe tudo) “Under Pressure”. Ele era o que o Duran Duran representava, essa parada de “new romantic”, troço que gótico não suportaria – percebe o quão idiota um adolescente pode ser?

Como gostar de um cara assim?

Talvez eu fosse mais uma criança sendo apresentada à fase mais crítica de um gênio. Não era o melhor momento.

Mas o cinema deu mais uma chance. “A Traição Do Falcão” (“The Falcon And The Snowman”, 1985, de John Schlesinger) virou um dos meus filmes preferidos à época. Achava 007 um negócio legal e o filme tem essa aura de espionagem. Nele, Bowie não atua, mas aparece com a música mais marcante da peça: “This Is Not America”, uma parceria com Pat Matheny, que a despeito de toda baboseira “gótica” impregnada em mim, acabou virando uma das minhas músicas preferidas.

Talvez Bowie não fosse alguém tão ruim, afinal.

Se bem que nos anos 1980 ele seguiu fazendo músicas discutíveis, como a parceria com Mick Jagger, na versão dispensável de “Dancing In The Street” (ainda se mantém dispensável com o passar dos anos, principalmente o vídeo tosquíssimo – aqui, se sua memória não anulou isso – e coisas como “Absolute Beginners” (que não é de todo ruim, afinal).

Mas em 1990, anunciaram uma turnê dele pelo Brasil (vale ler esse relato sobre a passagem dele). Rio de Janeiro e São Paulo na agenda, fui ao inesquecível show no Parque Antártica, o estádio do Palmeiras que hoje é uma mega arena. Lembro bem da chuva daquele dia e de ouvir algumas músicas que o rádio apresentara. Discos mesmo eu não tinha nenhum dele, a não ser uma coletânea roubada do pai de uma amiga que eu dava em cima e nada conseguia.

Nessa época, nossas fontes de informação musical eram poucas, Bizz e alguns segundos cadernos de jornais. Mesmo assim, antes dele se aventurar com a Tin Machine (a superbanda que também veio ao Brasil), volta e meia já surgiam os boatos de que David Bowie havia morrido. O pai da Tamires, minha amiga, era fã do Bowie, conhecia tudo sobre ele ou parecia conhecer tudo sobre ele. Não, Bowie não havia morrido. E nesses boatos, Tamires falou pra mim, ao risos: “Fernando, só fico com você quando o Bowie morrer de verdade”. Fiquei com o coração partido, e por um bom tempo meio que torci pela má sorte do artista.

O tempo passou, o Nirvana chegou, o My Bloody Valentine apareceu na área, e larguei Bowie por um bom tempo.

Ele mesmo, apesar dos quatro discos lançados na década de 1990 e os dois no início do novo século (“Reality”, de 2003, é interessante), meio que se retirou, muito pelo susto do ataque cardíaco que teve em 2004. Passou o resto da década fazendo uma aparição ou outra em shows de outros artistas, pra só em 2013, de surpresa, chegar com “The Next Day”, seu penúltimo disco.

A qualidade musical de “The Next Day” e de “Blackstar” e sua própria reserva social e pessoal deram uma dica de como David Bowie se diferenciava até mesmo no processo de envelhecimento. Enquanto outros artistas de sua envergadura seguem se arrastando nos palcos, fazendo seus milhões à base da memória afetiva dos fãs, Bowie envelheceu com qualidade artística e relevância.

“Blackstar” é o melhor último disco que alguém do calibre dele poderia desejar. Ou de qualquer calibre. Visconti tem toda razão: até na sua morte, o enredo foi artístico, contundente.

O que me faz lembrar novamente de Tamires, remetendo ao mito da famosa frase que acham que Neil Armstrong disse ao andar na Lua: “Good luck, Mr. Gorsky”.

Eis a história famosa, pra quem não conhece: quando era criança, Armstrong batia uma bolinha de basebol no quintal, em Ohio, quando ouviu uma conversa acalorada dos vizinhos. Nela, a senhora Gorsky brigava com o marido: “quer sexo oral, quer? Pois só vou fazer em você quando o filho do vizinho pisar na Lua!”.

De lá pra cá, meu coração já se remendou e já foi partido outras trocentas vezes, como é normal. Hoje, casado, nem faço ideia por onde anda Tamires. Fosse vinte e cinco anos antes, quem sabe? Creio que David Bowie, lá de Marte ou de onde quer que esteja, estaria cantando agora um “boa sorte aí, caro Fernando”.

Eis uma sorte que não queria ter tido.

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