É claro que a maioria das pessoas gostaria de viver dentro de sua bolha. Uma definição de “mundo perfeito”. Uma bolha onde divas pop teriam bem menos relevância; onde esse sertanejo-universitário-romântico-acéfalo, que só fala de pegar mulher, cair na balada e ficar bêbado, não seria nada mais do que uma aberração; onde o funk proibidão das periferias seria bem mais do que um estudo sociológico pra elites culturais culpadas; onde o indie-de-Pitchfork seria tratado com menos seriedade do que merece; onde a história de música não ficaria restrita a “tiozões saudosistas” e onde “tiozões saudosistas” não se tornariam tudo aquilo que mais abominavam na sua juventude.
Dentro da nossa bolha, um sujeito como Nick Cave teria sempre o que se viu ontem, dia 14 de outubro de 2018, no Espaço das Américas: uma adoração superior ao que se projetava. Não, adoração é um bocado exagerado. Respeito talvez seja a palavra correta. Admiração. Reverência. Calo minha boca por achar o Espaço das Américas “grande demais” pra um cara como Nick Cave. Talvez minha bolha seja ainda maior do que eu imaginava.
Não sou bom de números, mas chuto algo em torno de duas mil pessoas ali dentro. Cheio, mas não abarrotado. Conforto. E pessoas de fato assistindo ao espetáculo, ao invés de conversar e tirar selfies. Na minha bolha, veja, isso é possível…
Mais de duas horas de apresentação. Um Nick Cave elegante e não tão sofrido quanto nos dois maravilhosos últimos discos, “Push The Sky Away” (2013) e “Skeleton Tree” (2016). Um Nick Cave que se entregou, suado e radiante, ainda mais do que tivemos a sorte de ver em 1989, no Projeto SP.
Depois da morte do filho (e, desculpe-me por sublinhar o clichê, mas nenhum pai ou mãe deveria enterrar um filho), que numa experiência desastrosa com LSD, caiu de um penhasco na Inglaterra, aos quinze anos, Nick Cave se tornou ainda mais emocionalmente explosivo. Ele passou a se conectar com o mundo pelo luto e não há conexão mais forte. Ele experimentou na pele a sensação de que a vida se sustenta apenas por um fino fio de crenças de que nunca vamos sofrer. Nos fechamos na nossa bolha pra evitar sofrimentos e o dissenso.
Nick Cave quer enfrentamentos. Depois do baque, não há mais nada que possa abalá-lo nessa magnitude. Ele expõe tudo isso na música. Ao vivo, sem o menor temor, e cai nos braços da audiência.
Das vinte músicas apresentadas, sete são dos dois discos mais recentes. As outras treze passeiam por quase toda sua carreira, incluindo duas do “The Good Son” (1990), seu “álbum brasileiro”, e duas do “Tender Prey” (1988), disco da turnê de 1989. “Mercy Seat”, na minha bolha, deveria fazer parte de qualquer altar musical, e ela esteve aqui ainda mais raivosa.
“Higgs Boson Blues”, “Jubilee Street”, “Tupelo”, “The Weeping Song”, a lista de canções é uma lista de de emoções descarregadas. Um crooner (podemos chamá-lo assim) vigoroso e uma banda (especialmente Warren Ellis em seu violino) sem a menor timidez em criar explosões de ruídos e suingues lentos de cabaré numa mesma música, que trazem a plateia pra reflexão ou pra paixão na mesma medida.
Ele conversa com a audiência. Lembra do tempo em que morou em São Paulo, dedica “Into My Arms” ao Brasil e todo mundo canta junto. No bis, lembra que escreveu “Jack The Ripper” “numa pequena casa na Vila Madalena” – “escrevi muitas canções enquanto morava aqui”, reforça. Na minha bolha, essa é a São Paulo que adoramos.
Também na minha bolha, essas duas, três mil pessoas estão conscientes de que a música envolve muito mais do que só a música. É posicionamento político também. O #elenão foi gritado em coro mais de uma vez. O próprio Nick Cave pediu (timidamente) #elenão. Não houve protestos em contrário, como aconteceu no show de Roger Waters em São Paulo, três dias antes. Se havia eleitores do #elenão ali, esses não tiveram a coragem de enfrentar a bolha e chamar aquilo de “comício”. Tiveram que aceitar e engolir o que minha bolha desabafava.
Nick Cave une as pessoas seja na dor, seja na catarse, seja na esperança de um mundo melhor. Nem que seja um mundo irreal e utópico, um mundo que só exista fechadinho dentro da bolha de cada um. Na minha, não tem lugar pra discurso de ódio: é só amor, inclusão e respeito. Só que o mundo é bem mais do que isso, é bem mais cruel e diverso. Mas enquanto tivermos alguém cantando e se entregando como Nick Cave, ainda haverá alento.
01. Jesus Alone
02. Magneto
03. Higgs Boson Blues
04. Do You Love Me?
05. From Her To Eternity
06. Loverman
07. Red Right Hand
08. The Ship Song
09. Into My Arms
10. Shoot Me Down
11. Girl In Amber
12. Tupelo
13. Jubilee Street
14. The Weeping Song
15. Stagger Lee
16. Push The Sky Away
BIS
17. City Of Refuge
18. The Mercy Seat
19. Jack The Ripper
20. Rings Of Saturn