O dia 1º de julho de 1990, significa algo a você?
Bom, pra mim, é uma data absolutamente histórica e decisiva na minha vida. Trata-se do dia em que estive frente a frente com os irmãos Reid, turnê do “Automatic”, Projeto SP, noite fria em São Paulo, decibéis acima do que os ouvidos permitem, um dia que estará pra sempre cravado na minha cabeça.
A imagem de Jim Reid gritando “fuck, fuck, fuck”, durante a cover de “New Kind Of Kick”, do Cramps, porque o baixo de Douglas tinha pifado; e o mais impressionante, William Reid e seu instrumento ensurdecedor, a imagem dele sozinho no palco estraçalhando as cordas de sua guitarra e definindo e destruindo por completo a audição dos presentes no Projeto SP.
São imagens reais e sequelas eternas naquelas pessoas, e eu sou um dos retratos vivos desse estrago todo, três dias, três longos dias com os tímpanos reproduzindo a microfonia avassaladora que William propiciou aos meros mortais…
O nome da banda, você sabe, é Jesus & Mary Chain.
A introdução aí serve de roteiro pro que virá nos parágrafos abaixo, pois não somente o show do J&MC deixou marcas irredutíveis no ser Renato Malizia, como o que aconteceu antes do início foi tão marcante quanto o próprio show.
Eu caminhava pela casa, como um discípulo de Bob Gillespie, camiseta preta abotoada até o pescoço, calça preta, bota preta, magérrimo, franjas descompassadas nos olhos (ah, os bons tempos, risos); e nas caixas, a preparação pro J&MC era com “Christine”, do House Of Love; “Crash”, dos Primitives; V.U., Stooges e outras mais.
Uma música em especial marcou aquela noite. De repente, inicia uma guitarra suja e distorcida e uma voz ecoa ao fundo, “well, look out”! E uma explosão de guitarras barulhentas vem à tona. Fiquei boquiaberto e, prestando uma atenção além do normal, ao lado direito do palco, onde William detonaria sua bomba em forma de guitarra horas depois, estava prostrado um cara, que me abordou naquele momento:
Alguém: Ei, beleza, cara?
Renato Malizia: Beleza.
Alguém: Isso é foda.
Renato Malizia: Cara, concordo, mas não sei o que é isso.
Alguém: Não sabe?! Chama-se Spacemen 3. Uma pena que a banda acabou de terminar. Minha banda predileta e essa música chama-se “Revolution”…
Renato Malizia: Porra, cara, terminaram?! Nunca havia escutado, é do caralho!
Alguém: Eles são de Rugby, Inglaterra. Começaram em 1982, são tidos como uma das bandas mais drogadas da história da música. Pra você ter uma ideia, nos shows deles, quando alguém entrava, recebia algum tipo de droga, pra que a pessoa pudesse entender melhor. Os caras são gênios, Sonic Boom e Jason Spacemen. Realmente é uma pena que eles não conseguiram mais um olhar pra cara do outro, porque juntos eles criaram discos magistrais, como esse da música que está tocando, “Playing With Fire”. Cara, procure que você vai pirar!
Renato Malizia: Porra, preciso conhecer mesmo… Spacemen 3, né? Beleza, valeu pela história, qual seu nome mesmo?
Alguém: … Falou, acho que o show vai começar, valeu!
Ouça “Revolution”:
“Revolution” ainda ecoava na casa, e pude ouvir claramente “just five seconds of decision, to realise, that the time is right… To start thinking about, a little revolution”… E uma pancadaria sonora de guitarras e wall of sound penetrou em minha mente, que não consegui nem ouvir o nome do cara. Simplesmente, ele sumiu a escuridão do Projeto SP…
Depois disso, os Irmãos Reid assumiram o controle e tudo aconteceu. Mas após uns três dias, ainda sob o ecstasy daquele dia, me lembrei do “cara”, do Spacemen 3 e das últimas frases da música: “start to thinking about, a little revolution”. E sozinho, em casa, pensei comigo: “caralho, como era mesmo o nome do disco? Porra, não me lembro… Mas da música eu me lembro, ‘Revolution’, preciso dar um jeito e ir atrás disso”.
E comecei a correr pelas lojas de São Paulo, atrás do álbum do Spacemen 3 que continha a musica “Revolution”. E também a ler e pesquisar sobre o Spacemen 3.
Depois de algum tempo, consegui encontrar artigos e alguns conhecidos que tinham “alguma coisa” deles, mas nada tão “especifico” quanto a história que o “cara” havia me contado lá no Projeto SP.
Passados mais alguns meses, finalmente minha encomenda chegaou: “Playing With Fire”, o tal álbum que continha “Revolution”. Mais ou menos na mesma época, descolei uma Melody Maker, com uma entrevista em separado de Peter “Sonic Boom” Kember e Jason “Spacemen” Pierce, já separados e explicando os motivos pelos quais não poderiam mais seguir adiante com o Spacemen 3. Coisas como Peter é megalomaníaco e suicida, ou Jason perdeu a real importância do nosso propósito e mais perolas diretas um contra o outro. O fato é que pude perceber que estava prestes a lidar com algo perigoso.
Assim que ouvi os primeiros acordes de “Honey”, fiquei pasmo, porque era o oposto de “Revolution”. Mesmo assim, aquilo me seduziu. Na sequência, “Come Down Softly To My Soul” me deu a sensação de estar próximo de Deus, mesmo sem saber que realmente estava. Mas foi com “How Does It Feel?” que realmente aquilo me consumiu por completo.
“Honey”
“How Does It Feel?”
Depois de anos pesquisando e lendo sobre a banda, fui entender como aquele som repetitivo pôde ser criado. Kember na época havia adquirido uma guitarra não usual, chamada Vox Startstreamer, feita nos anos 1960 e capaz de reproduzir efeitos de fuzz e repeaters sequenciais. Daí o porquê da sonoridade. Muito mais do que o efeito musical, foi o efeito cerebral e psíquico, porque a música é hipnótica, um mantra que traga sua alma e suplica algum tipo de ação.
Sonic Boom é a alma perturbada e doentia por trás do conceito Spacemen 3, não tirando o mérito sem proporções de Jason. Mas Kember conduz o efeito químico, psíquico e musical que a musica do Spacemen 3 produz.
“I Believe It” é o inicio da redenção, mas muito longe ainda de ser alcançada, porque antes disso é necessário passar pela famigerada “Revolution”, o meu real motivo de adoração e fanatismo pelo
Spacemen 3.
“I Believe It”:
Com exceção de Iggy à frente dos Stooges, nunca versos de uma canção foram recitados com tamanho ódio e ojeriza por alguém ou por algo ou por tudo. “Revolution” é um exorcismo musical. Uma canção pra bradar com urros e dizer o quanto estamos cansados e doentes por tudo e por todos, e crer que é possivel, sim, sair dessa pasmaceira criando pequenas revoluções internas.
Passando pelo cataclismo, vem outra ode de Kember em parceira com Pierce, “Suicide”. O Spacemen 3 nunca escondeu suas inspirações V.U., Stooges, MC5, Suicide, 13th Floors Elevators, Sun Ra e outros. “Suicide”, a música, é uma orgia frenética de repeaters homenageando os mestres Alan Veja e Martin Rev.!
“Suicide”:
Por fim, algo absolutamente sobrenatural ocorre. Após uma ode de druggy sounds, o pedido eterno ao senhor, “Lord Can You Hear Me?”, uma prece em forma de canção, um pedido de redenção e perdão ao Senhor. Kember e Pierce precisavam ir ao inferno e conhecê-lo para que depois pudessem clamar por benção. Sinceramente, foi o proprio Senhor que os fez seguir tais caminhos.
“Lord Can You Hear Me?”:
“Aquele cara” mudou por completo a minha vida e criou uma religião eterna em mim. A religião chamada Spacemen 3. É inevitável dizer que virei devoto da obra em vida de Kember & Pierce. E mais, “aquele cara” foi o responsável por eu ainda sentir o mesmo frescor da primeira vez que ouvi “Revolution”… Ainda ecoam na minha mente os últimos momentos: “start to think about, a little revolution!”.
Quem quer que seja esse “cara”, fico agradecido. Na verdade, após esses quase 21 anos, chego à conclusão que ele é o próprio Senhor…
1. Honey
2. Come Down Softly To My Soul
3. How Does It Feel?
4. I Believe It
5. Revolution
6. Let Me Down Gently
7. So Hot (Wash Away All Of My Tears)
8. Suicide
9. Lord Can You Hear Me?
Álbum – Playing With Fire
Lançamento (original) – 12 de fevereiro de 1989
Gravadora – Fire Records
Tempo total – 46 minutos e 45 segundos
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Nota do editor:
Em 1994, a Taang! lançou o disco em CD, com vários extras. A lista final ficou assim:
01. Honey
02. Come Down Softly To My Soul
03. How Does It Feel?
04. I Believe It
05. Revolution
06. Let Me Down Gently
07. So Hot (Wash Away All Of My Tears)
08. Suicide
09. Lord Can You Hear Me?
10. Suicide (Ao Vivo na Holanda)
11. Repeater (How Does It Feel?) (Ao Vivo na Holanda)
12. Ché
13. May The Circle Be Unbroken
Álbum – Playing With Fire
Lançamento (CD) – 1994
Gravadora – Taang! Records
Tempo total – 72 minutos e 55 segundos
Em 2001, nova reedição, agora em CD duplo, com demos e raridades. O segundo disco é esse:
1. Honey (Demo)
2. Let Me Down Gently (Drum Mix)
3. How Does It Feel? (Alternative Version)
4. Suicide (Alternate Mix)
5. Lord Can You Hear Me? (Demo Vocal)
6. I Believe It (Alternate Mix)
7. Ché (Maracas Mix)
8. Any Way That You Want Me (Demo)
9. Girl On Fire (Demo)
Álbum – Playing With Fire
Lançamento (CD duplo) – 2001
Gravadora – Taang! Records
Tempo total – 46 minutos e 17 segundos (CD extra)
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Renato Malizia é editor do blogue The Blog That Celebrates Itself.
que relato lindo.. eu tb conheci o Spacemen atraves de uma coluna na Falecia Bizz e corri atra s do disco.. acho que Sweet Jane.. acho que este era o nome da loja.. nao tenho certeza.. ou era algo parecido..
obrigado pelo elogio tony!!!grande abs
esqueci de falar que este foi meu primeiro show gringo..)
Como eu gosto de ler os textos do Renato Malizia…. ele consegue passar a sensação real do momento que viveu. pqp 1990, perdi.
Vou ouvir esse albúm, só conhecia essa banda de nome.