NONSUN: SANGUE E PESO EXPLOSIVO A SEU FAVOR

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É irritante quando alguém tenta dissociar a música, o esporte ou qualquer outra atividade humana das questões políticas ou sociais. Normalmente são vozes conservadoras pra quem qualquer tipo de ruído ao entendimento confortável que a pessoa se encontra é um mal a ser combatido. Mas não tem jeito, esses idiotas podem até se esganiçar, perder a voz (a razão já era há tempos) e tremer de raiva, e a arte e a vida em geral vai dar os braços ao que interessa: a organização social em busca do que há de mais includente. Pode demorar, mas a lógica social vence os estúpidos defensores dos privilégios.

Dito isso, corte-se pro oeste da Ucrânia, mais precisamente Lviv. É da cidade próxima à fronteira com a Polônia que surgiu o Nonsun, uma banda de “metal experimental” ou “doom” ou “post-metal”, escolha aí o seu rótulo entre os que a própria banda apresenta. Seu segundo disco, “Blood & Spirit”, saiu em 15 de abril de 2022, quase dois meses depois que começou a invasão russa pelo leste da Ucrânia, em 24 de fevereiro, naquela que é considerada a pior crise geopolítica e humanitária da Europa desde a 2ª Grande Guerra.

O disco obviamente foi imaginado, escrito e gravado bem antes da invasão e da Dunk!records colocar a peça no mercado – foi gravado entre 2016 e 2020. Não se sabe exatamente se seus quatro integrantes são algo perto do que o presidente russo, Vladimir Putin, chama de “neonazistas”, uma desculpa esfarrapada pra invadir o país vizinho, ou se eles são pessoas do bem (qualquer pessoa não neonazista deveria, por princípio, se considerada, de cara, uma “pessoa do bem”, ou inocente até que pise na bola voluntariamente).

Não importa. Os quatro integrantes e seus familiares fazem agora parte de uma história que transformou todos os ucranianos em vítimas – o que num quadro mais amplo é o que são mesmo. Se isso faz deles bons músicos e sua banda e seu disco, algo a ser admirado, a resposta virá de cada um que for lá e ouvir as cinco faixas quilométricas de “Blood & Spirit” (a mais curta tem pouco mais de sete minutos).

Sim, as faixas são massacrantes, pesadas e estrangulantes, mas não têm nada a ver com a guerra. Cabe apenas a coincidência. Ou como diz o próprio quarteto: “nunca poderíamos imaginar o quão dolorosamente relevante o título do álbum soaria perto do momento do lançamento. Gostaria que não fosse. Embora inicialmente tivesse um significado pessoal, obviamente agora ressoa com muito mais”, lembrando que o “sangue” e o “espírito” são temas um tanto recorrentes neste universo.

“O título do álbum se refere a lutas espirituais nos momentos mais sangrentos. As cinco faixas, em certo sentido, são anseios, ou orações, lançadas no vazio. O que não te mata… te deixa mais forte? Quando toda a magia se foi… A sabedoria vale alguma coisa? Trata-se de levantar questões em vez de dar respostas. À medida que a mente racional e a força de vontade falham, começa uma busca espiritual”, segue a banda. “A intenção por trás de tudo isso deveria ser pesada o tempo todo, apenas contextualizada de maneira muito diferente, com muito espaço pro esotérico e fantástico tecer sua própria influência nas coisas”.

O posicionamento do selo foi mais direto, claro, afinal em um mundo massacrantemente capitalista, fazer negócios com a guerra também não é de todo ruim: “obviamente todos vocês estão cientes da situação devastadora na Ucrânia. Você também pode conhecer uma de nossas bandas, Nonsun, que mora em Lviv, Ucrânia. Neste momento (final de março), todos os membros da banda e suas famílias estão bem. No entanto, as circunstâncias são difíceis e suas vidas estão completamente de cabeça pra baixo. Decidimos lançar a pré-venda do novo álbum ‘Blood & Spirit’ pra criar uma oportunidade pra nós e pra você apoiar a banda nestes tempos difíceis. A Dunk!records doará 100% dos lucros pra banda (assim como todos os lucros de seu lançamento de 2018 ‘Black Snow Desert’) a partir de hoje até o dia do lançamento”, o que quis dizer cerca de quinze dias.

Não é culpa de ninguém essa guerra, a não ser especificamente de Putin e da OTAN (dependendo de que lado você olhe), então, por que não?

Apesar disso, o primeiro guitarrista da banda, chamado apenas de Taras (foto abaixo), morreu na guerra, em 17 de abril, dois dias depois do lançamento oficial do álbum.

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Mas “Blood & Spirit” tem suas qualidades dentro do estilo. Uma resenha da The Quietus coloca uma visão sobre o disco: “a primeira faixa apresenta, na ordem: uma introdução pastoral, algumas majestosas batidas de guitarra, drones vocais monásticos, rifes, sintetizadores atmosféricos, rugido literal, um interlúdio quase ambiente com mais voz de monge e – finalmente – uma percussão sobressalente e um final de sintetizador. É tão perverso. Em mãos menores, pode parecer ridículo, mas aqui é perfeito e muitas vezes surpreendente. Feito mal, o doom metal pode muitas vezes parecer um modelo e uma pose, mas pros verdadeiramente inspirados, esse mesmo modelo pode ser subvertido, permitindo que um artista lance bolas curvas atrás de bolas curvas (um paralelo com bons lançamentos no beisebol)”, escreve o resenhista. “E Nonsun está verdadeiramente inspirado, e caramba, é delicioso”, empolga-se.

“Em outros lugares, ‘Guilt, Disgust, Disaster’ nunca se distancia muito do pós-rock. Ele resiste à guitarra cavernosa e bateria trovejante de uma besta pesada e cambaleante como ‘That Which Does Not Kill’. Em vez disso, sua bateria é mais leve em seus pés, suas guitarras se contentam em brilhar e às vezes triturar, aparentemente em homenagem aos feedbackers que vieram antes. Ainda é pesado, mas medido e gracioso também. Em seguida, o sax noir aparece e leva a faixa pra outro lugar por um tempo, antes de as cordas arrebatadoras entrarem em ação e a coisa explodir como as músicas do Mogwai costumavam fazer. Há um fluxo e refluxo magistral nessas composições. Como um rio, você fica preso na corrente e segue com ela”, analisa.

A descrição do álbum diz: “os fãs de doom, drone, post-metal e música avant-garde devem considerar este 2xLP um must-have. É uma das combinações mais convincentes de princípios desses gêneros irmãos em algum tempo, oferecendo uma maior acessibilidade sem sacrificar a ferocidade potente ou o experimentalismo de sondagem que Nonsun iniciou com ‘Black Snow Desert’, o primeiro disco da carreira. ‘Blood & Spirit’ revela um grupo de músicos apertando seu controle coletivo em uma estrutura conceitual já convincente e elevando-a a novos níveis de poder e impacto”.

Lendo desse modo e ouvindo, há quem vá dizer que tanto faz que o Nonsun seja de Lviv e que sua vida cotidiana tenha sido afetada por bombas e o país tenha entrado numa crise sem precedentes, com gente morta pra todo lado, economia tentando se equilibrar entre o caos e o inferno e imprecisão sobre o futuro. Mas fica difícil defender um ponto de vista desses. O álbum se tornou o que o cenário quis que se tornasse – ou o destino quis. Fazendo um exercício preguiçoso, é possível chegar a vários exemplo, por é assim com um bocado de obras de arte.

A Nonsun é uma banda que começou em 2011, como uma dupla formada por Goatooth (guitarra, teclas e vozes) e Alpha (bateria) – sim, os nomes/apelidos são esses e hoje ainda há Alex (baixo) e Vlad (bateria). Em 2016, ano do lançamento do primeiro disco, “Black Snow Desert”, a música deles já estava no cinema, pelas mãos do diretor Taras Khymych, no filme “Alive”. Em 2018, excursionaram pela Europa e passaram por festivais do gênero. Uma carreira talvez promissora pelas vias próprias, com os sobressaltos que artistas tão subterrâneos têm, ainda mais em sociedades vistas como periféricas. Os brasileiros sabem bem disso. Mas a guerra mudou tudo e eles conseguiram uma vitrine que é cruel mas que pode impulsionar a carreira deles.

Tal vitrine levou o Nonsun a páginas de sites e blogues do mundo inteiro (até ao Brasil), com apenas dois discos e em um estilo cuja concorrência e falta de novidades são gritantes. Culpa da guerra, porque a guerra e especialmente uma guerra na Europa é uma atração e tanto (esqueça guerras no Oriente Médio e na África, o “mundo” – leia-se mídia ocidental – não liga se essa gente morrer). Contudo, o Nonsun tem culpa alguma nisso, a não ser o fato de ter lançado o disco no momento certo, ter o passaporte certo e, mais ainda, ter feito um trabalho que acabou agradando os ouvidos críticos onde desembarcou.

A guerra na Ucrânia um dia vai acabar, embora ninguém faça ideia de quando será isso e se ela vai se transformar em algo generalizado, de modo que o mundo acabe de vez (não ria, há cada vez mais essa possibilidade, com tensões se espalhando pra além da Ucrânia). E o Nonsun, se tudo der certo e é bom torcer por isso, vai estar por aí, batendo forte, esmagando notas, ouvidos e cérebros. Tomara que o impulso de agora leve a banda pra uma longa caminhada, como uma catapulta atirando uma pedra contra os inimigos da falta de bom senso, como um drone assassino do mau gosto, como um míssil destruidor munido de distorção, guitarras e peso. A nossa maior guerra é pela sobrevivência do direito de continuar fazendo a arte que quisermos fazer.

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