Quando o “controverso”, pra dizer o mínimo, presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide tomou o golpe de Estado em 1991, o grupo Boukman Eksperyans teve que se exilar no exterior.
Foi lá e no mesmo ano que lançou seu primeiro disco, “Vodou Adjae”, que acabou sendo indicado ao Grammy.
A banda criou seu nome a partir das homenagens a Dutty Boukman, o padre vodu considerado o grande nome do estopim da revolução haitiana, em 1791, contra o colonialismo francês, e a Jimi Hendrix, já que Eksperyans é “experience” em crioulo haitiano.
Sim, a banda faz o que ficou conhecido como rasin, que mistura música tradicional vodu haitiana com rock’n’roll.
Segundo Chanté Griffin, “Nanm Nan Boutey” (“Alma Em Uma Garrafa”, em crioulo), uma das músicas mais famosas do grupo, “captura apropriadamente as conseqüências estripantes do imperialismo, colonialismo e escravidão em um povo, cujos efeitos são sentidos muitas gerações depois”.
Os versos são diretos: “Ei, isso é difícil! / Ei, isso é difícil! / Nossa alma em uma garrafa / Isso é difícil! / Temos que falar como essas pessoas / Temos que ver como essas pessoas / Temos que ouvir como essas pessoas / Temos que parecer com essas pessoas /
Quando chegaremos / Quando tomaremos uma posição / Meus amigos, isso é difícil! / Vamos nos juntar à revolução!”.
Griffin ressalta que a música feita por pretos e colonizados também é um instrumento de guerrilha e afirmação.
“Ti Pa Ti Pa” é outro exemplo:
Enquanto o mundo celebra “Black Is King”, o projeto-petardo que Beyoncé lançou em 2020, muitos também se questionam os motivos da música de protesto e afirmativa de centros menos influentes serem descartadas no radar das atenções não só comerciais, como culturais.
O trabalho incansável de Beyoncé é importante pra mostrar ao mundo o impacto do racismo constante, especialmente numa potência como os Esteites. Mas a música preta é revolucionária por todo canto e é preciso ressaltar sua importância nesse sentido, não só como entretenimento.
A alma dos colonizados fica presa em uma garrafa por séculos e quando os intelectuais do mundo se dão conta disso, espera-se que todos aceitem com alegria a nova visão das coisas. Mas a mudança não acontece sem dor, sem criatividade, sem lágrimas, sem arte, sem perdas, sem conflitos.
Os pretos africanos foram espalhados pelo mundo à revelia. Os árabes africanos se espalharam como fuga de genocídios promovidos ou por religião ou por imposição do capitalismo selvagem que trucidou o continente.
E os povos que conseguiram a “libertação”, como no Haiti, vivem à míngua, em disputas avassaladoras por poder e dinheiro. Brancos colonizadores como patrocinadores.
Se o assassinato de George Floyd neste ano causou as justas revoltas que causou, mesmo em meio à maior crise sanitária da história, fornece do outro lado o questionamento do porquê a mesma ira não se dá com os milhares de jovens pretos corriqueiramente assassinados pela Polícia Militar no Brasil, por exemplo.
Os casos não são poucos.
De acordo com dados oficiais do governo paulista, a cada dezesseis horas um preto foi morto pela Polícia Militar de São Paulo no primeiro trimestre de 2020. A cada dezesseis horas.
Num ano bissexto como este, seriam 549 vidas pretas ceifadas pelo Estado. E não causam revolta massiva na sociedade.
Os pretos norte-americanos enfrentam a dureza do racismo. Mas os jovens pretos brasileiros, senegaleses, haitianos, congolanos, nigerianos, dominicanos e encha de etecetera aí enfrentam o racismo, a pobreza e o esquecimento. Não estão em países importantes. como os Esteites. E se o preto e colonizado for mulher ou LGBT, a situação se agrava ainda mais nas injustiças.
As últimas palavras de jovens negros foram reunidas pra tentar minimizar esse esquecimento.
Muitas vezes quem mata são outros pretos, policiais ou não, numa espécie de extermínio que cai bem na branquitude massiva da elite.
“Você pode apagar uma vela / Mas você não pode apagar um fogo / Uma vez que as chamas começam a pegar / O vento vai soprar mais alto”, canta Peter Gabriel, branco e rico, na famosa e bela “Biko”.
A música lembra Stephen Biko, o ativista anti-apartheid morto pelo governo sul-africano em 1977. Mas o apartheid era um regime que o mundo inteiro abraçou pela derrubada. Houve, depois de décadas de assassinatos e crueldades, enfim, algo que moveu todos em torno da necessidade de mudança.
A “revolução” veio também pela via da música pop. E por branquelos, como o Specials, em homenagem a Nelson Mandela.
Mas a revolução necessária clamada por Boukman Eksperyans não atrai tantos nomes famosos. É um movimento difícil. Não atrai Beyoncé, que está fazendo seu trabalho e sua arte no seu país.
Esses astros brancos ou pretos do mainstream têm muito mais o que fazer, aparentemente, do que se preocupar com todos os massacres do mundo.
A pessoas podem até achar que Beyoncé e companhia se beneficiam desse sistema que justamente se solidificou com a escravidão, com a colonização e com a exploração de pobres e trabalhadores, brancos ou pretos, árabes ou orientais, cristãos ou muçulmanos.
Vale lembrar que as 26 pessoas mais ricas do mundo detêm a mesma riqueza dos 3,8 bilhões mais pobres, que correspondem a 50% da humanidade. Os dados, referentes a 2018, fazem parte do relatório global da organização não-governamental Oxfam.
Os 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial, dados de 2020.
Em 2016, a riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial passou a equivaler, pela primeira vez, à riqueza dos 99% restantes. Se isso não te incomoda, é possível dizer que você já perdeu a humanidade e faz parte do problema.
Não é um sistema criado de uma hora pra outra. Muita extorsão, roubo de riquezas, escravidão, injustiça, assassinatos, guerras e toda sorte de tragédia foi feita pra chegar a isso.
Sim, Beyoncé, os rappers mais bem-sucedidos que você curte no seu aplicativo de música, todos se beneficiam desse sistema.
Ao mesmo tempo em que não é culpa deles. E deve-se aplaudir quem tenta mostrar uma visão diferente de mundo, como “Black Is King” está sendo celebrado.
Pegue-se o exemplo de Maureen Lupo Lilanda. Pouca gente dificilmente saberá quem é ela. Mas ela é um nome conhecido na Zâmbia, onde nasceu, e nos países da comunidade britânica (da qual o país faz parte).
Cantora de jazz (e formada em jornalismo), Lilanda nasceu em 1967 e começou a carreira ainda adolescente. Participou das bandas Le Banquets Nomade e Amashiwi, acapela. Por sorte, achar sua obra no YouTube, por exemplo, não é um problema. Mas pouca gente se importa.
Ela teve sorte. Foi presenteada pela natureza com uma voz estonteante e conseguiu se destacar num país que é um dos mais pobres do mundo.
Basicamente vivendo de cobre, cobalto e carvão, o país tem no turismo outra fonte de renda importante. Na fronteira com o Zimbábue, ao sul, ficam as famosas Cataratas de Vitória, do lago de mesmo nome, e há muitos parques pra safáris.
Ela conta pra National Geographic que visitava o interior quando criança, e sua família voltava com braçadas de frutas e legumes saborosos.
“Tudo era abundante”, diz ela. “Agora, com falta de chuva, você vai aos vilarejos e não há nada pra colher”.
Apesar da fonte abundante de água nas fronteiras, o país não tem sistema de irrigação; durante décadas, os agricultores se baseavam apenas no ciclo natural das chuvas pra dar vida ao solo. Nos últimos vinte anos, estima Lilanda, essas chuvas pararam de cair.
Não, o aquecimento global não é frescura. Ele já está matando.
Lilanda queria que as pessoas entendessem como o desmatamento e a queima de carvão poderiam mudar permanentemente o ambiente.
Como cantora, ela tem esse poder. Temas sobre conservação e a natureza sempre encontraram seu caminho nas letras dela. Ela faz parte de um número crescente de cantores no sul e leste da África que usa música pra transmitir mensagens sobre a adaptação e prevenção das mudanças climáticas.
Em 2019, ela se juntou a artistas como Theresa Ng’ambi, James Sakala, Pompi & Shaps pra criar “Samalinali”, pedindo preservação.
“O vídeo da música começa com uma montagem de cenas sombrias. Os restos carbonizados de um tronco de árvore queimado; um leito árido do rio; uma parede de chamas cortando uma floresta verdejante. As imagens emocionam”, descreve a National Geographic.
A letra aborda algumas das questões ambientais mais prementes que a Zâmbia enfrenta, como desmatamento e queima de carvão, e o coro implora aos ouvintes que preservem a natureza e os animais.
Outros temas tratados por Lilanda são a AIDS, abuso infantil, violência doméstica, machismo e, claro, a perda daquele que você ama.
Todos são assuntos importantes porque são consequências da pobreza e exploração de séculos dos brancos europeus – que patrocinam exploração de pretos sobre pretos. Não é apenas discurso, é realidade.
“A música é uma ferramenta emocional. Vai diretamente ao seu coração”, diz Sakala.
Também nascido na Zâmbia, James Sakala é multi-instrumentista (guitarra e percussão), compositor e produtor de jazz.
Como ele, o país pode se orgulhar de ter muitos outros nomes.
Todos eles sabem que através da tradição oral, as músicas e performances são percebidas como uma ferramenta mais forte de mudança, uma vez que as músicas são tocadas pra todas as pessoas independentemente da afiliação política, cultura e religião.
Esse é um problema inclusive que os artistas estadunidenses estão enfrentando há tempos e querem dar um basta nas eleições presidenciais de 2020 (leia mais aqui sobre o manifesto).
Qualquer inovação musical é cheia de perigos pro Estado e, portanto, não espanta que ela seja repelida e até proibida por governos, porque a música seria uma força motriz pro ódio.
A política da Zâmbia não foi isolada da música e artistas sendo usados pra vender o manifesto político durante campanhas eleitorais.
Nathan Nyirenda e seu sucesso “Wemakufi”, do início de 2000, foi usado pelos partidos políticos pra ganhar simpatia nas estações de rádio.
Mas essas baladas não passam mensagens tão fortes.
São usadas por utilizarem dialetos que se comunicam com diversos povos do país.
Os povos pretos esquecidos. Os colonizados que sofrem com séculos de saques, escravidão, exploração e mortes também são fracionados em castas em seus próprios países. No Brasil é assim. Na Zâmbia. No Haiti. Na Nigéria.
E em muitos desses locais os temas abraçados por artistas consagrados como Beyoncé pouco querem dizer. Seus problemas são outros. Mais profundos. Comer, por exemplo. Doenças. Saneamento básico. Ditadores. Guerras civis. Sobreviver.
Ou como disse Sakala: “só vive o racismo constante quem sobrevive ao massacre diário que é não ter o que comer ou ser assassinado na guerra diária de luta pelo poder; pros que não sobrevivem, o racismo não existe”. A exploração está em primeiro lugar. Historicamente, é a causa de tudo.
Mas uma coisa não invalida a outra.
Emicida lembrou bem, em 2017: “o samba foi revolucionário, ele nasce revolucionário; a partir do momento que é crime uma pessoa de pele preta segurar um violão e andar com ele pela rua, a resistência ganha uma outra profundidade e um outro propósito”.
O desejo de “dar voz ao gueto”, como diz o rapper brasileiro, é o desejo de igualdade, de desaprisionar a alma colocada dentro da garrafa.
É revolucionário porque é dar voz àqueles que o 1% mais rico não quer que se expresse ou só quer que fale pra dar razão aos seus projetos de mais concentração de riqueza.
Preto pode ser rico jogando bola, cantando, fazendo arte (raramente), mas parece não poder ser médico, político, engenheiro, empresário.
Dar voz aos oprimidos é dizer pra eles que não precisam falar como os opressores, não ter que ver o mundo pelos olhos dos opressores, não ter que ouvir como os opressores, não ter que pensar como eles, nem se parecer, se vestir ou se portar como eles.
De todo modo, ao contrário do título, não existe “música preta” – existe música. Mas “música preta” é como dizer que não é preciso pensar e cantar como os opressores. É desmistificar o que é tido como “belo” pelos olhos dos opressores.
É a revolução da igualdade cantada em “Nanm Nan Boutey”, dos haitianos Boukman Eksperyans.