O COLECIONADOR: SEQUESTROS, SERIAL KILLERS, GROUPIES E MÚSICA POP

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A sessante e cinco quilômetros de Londres, em 1926, nasceu o escritor James Fowles, em Leighton-On-Sea, Essex, onde o rio Tâmisa se encontra com o mar. Daquela região costeira, Fowles partiu pro mundo, pra ser reconhecido com suas novelas, que incluem “Mago, O Falso Deus” (The Maggus, 1965), “A Mulher Do Tenente Francês” (The French Lieutenant’s Woman, 1969), “Mantissa” (1982) e… “O Colecionador” (The Collector, 1963), sua obra de estreia e que teve uma curiosa influência cultural e policial.

“O Colecionador” teve reconhecimento comercial imediato, a ponto de Hollywood correr pra comprar seus direitos de adaptação. William Wyler abraçou o projeto. Ele deixou de fazer “A Noviça Rebelde” (The Sound Of Music, 1965), que ganhou cinco Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Direção, pra Robert Wise, o talentoso faz-tudo que assumiu a empreitada, pra abraçar a história angustiante de um rapaz que sofreu bullying a vida inteira, que fica rico de repente, ao ganhar na loteria, e sequestra a paixão de infância na tentativa de convencê-la a passar a amá-lo.

O que tinha tudo pra ser um teatrão filmado, encontrou no já rodado Wyler um filme claustrofóbico.

Wyler já tinha 63 anos quando “O Colecionador” ganhou as telonas. No seu currículo, três Oscars de Melhor Direção – “Rosa Da Esperança” (Mrs. Miniver, 1942), “Os Melhores Anos De Nossas Vidas” (The Best Years Of Our Lives, 1946) e “Ben-Hur” (1959) – e oito indicações na mesma categoria, incluindo pra filmaços imperdíveis, como “A Carta” (The Letter, 1940), “Pérfida” (Little Foxes, 1941), “Tarde Demais” (The Heiress, 1949) e “A Princesa E O Plebeu” (Roman Holiday, 1953).

Ele também assina a direção dos clássicos “Jezebel” (1938), “Horas De Desespero” (Desperate Hours, 1955), “Da Terra Nascem Os Homens” (The Big Country, 1958) e do excepcional “Infâmia” (The Clindren’s Hour, 1961), refilmagem do próprio trabalho lançado em 1936, mas sob o título original de “These Three”, que toca num tema atualíssimo: o impacto negativo de notícias falsas.

O tratamento que William Wyler deu a “O Colecionador”, quase 100% fiel ao livro, com exceção da suavizada no final, acabou inspirando um maluco chamado Robert Berdella a sair da casinha e cometer uma série de crimes.

Berdella ficou conhecido como “O Açougueiro do Kansas” ou ainda, simplesmente, “O Colecionador”. Ele mantinha suas vítimas dopadas, em cativeiro, por semanas. Homossexual, todas as suas vítimas eram homens. Ele os torturava, injetava todo tipo de droga legalizada, inclusive veterinária, no corpo deles e promovia sessões de sadomasoquismo, das quais participavam convidados dele, tudo relatado em um diário.

Oficialmente, ele matou seis homens entre 1984 e 1987. Depois, cortava o corpo deles em pedaços e colocava em diferentes latas de lixo pela cidade.

Ao ser preso, em 1988, confessou os crimes e falou da inspiração do filme.

Dois filmes foram feitos sobre ele. Nenhum dos dois é recomendado. O primeiro é o documentário “Bazaar Bizarre” (2004), com direção de
Benjamin Mead. E uma dramatização esquecível chamada “Berdella” (2009), com direção de Paul South e William Taft.

Berdella morreu na prisão, de ataque cardíaco, em 1992.

Não foi só Berdella. A dupla Leonard Lake e Charles Ng matou, entre 1982 e 1985, doze pessoas, oficialmente, inspirados no filme (mas o número pode chegar a vinte e cinco, de acordo com os ossos achados pela polícia, enterrados na fazenda de Lake). A personagem sequestrada no livro de Fowles era Miranda Grey, interpretada por Samantha Eggar no filme. Lake, quando sequestrava suas vítimas, chamava o ato de “Operação Miranda”.

A dupla atraía as vítimas com promessas emprego no rancho de Lake. Ali, matavam os homens e as crianças e deixavam as mulheres em cativeiro, estuprando-as e abusando moralmente delas.

Fowles morreu em 2005, aos 79 anos. Provavelmente, viu o que esses assassinos fizeram em nome de sua obra. Já Wyler escapou desse desgosto: morreu em 1981 (também aos 79 anos).

Mas Fowles talvez tenha ficado tranquilo com a própria consciência, afinal, no livro embora o sequestrador seja cruel e um torturador psicológico, “O Colecionador” do título vem do fato do personagem principal ser entomólogo, mais precisamente lepidopterologista, um colecionador de borboletas.

A certa altura do filme, ao tentar impressionar Miranda, o sequestrador mostra sua coleção. Ela, em surto de sincericídio, vira-se pra ele e diz: “olha quantas mortes você causou; onde você vê beleza, eu só vejo morte”. E olhando nos olhos dele, reforça: “eu só vejo morte por aqui”.

Paul Weller, vocalista do The Jam, a chamada “mais britânica banda de todos os tempos”, também se sentia como Miranda. Mas o que sequestrava sua sanidade e liberdade era o sistema e, especialmente, as groupies. “The Buttefly Collector”, canção de 1979, lançada originalmente no lado B de “Strange Town”, ganhou inspiração no filme e falava sobre a morte de emoções ou, no esticar da corda, do amor verdadeiro, segundo uma das análises possíveis.

Diante dos crimes brutais que Miranda sofreu, além das vítimas de Berdella, Lake e Ng, parece choro de estrela do rock: a borboleta que coletada aqui é o próprio Weller, em uma crítica às groupies: “There’s tarts and whores but you’re much more”, ele canta no refrão, “You’re a different kind ‘cause you want their minds”, exatamente como o sequestrador de Miranda.

Há uma versão de que Weller tinha um nome em mente, quando escreveu a letra: a jornalista do semanário New Music Express, Julie Burchill. Em seu livro de 1978, escrito com Tony Parsons, “The Boy Looked At Johnny – The Obituary Of Rock And Roll”, a então jornalista de 19 anos se diverte demolindo todos os figurões do rock, o que significa todo mundo, sem exceção, que não fosse os Sex Pistols.

Burchill mandou voadoras no peito e na biografia de Lou Reed, Iggy Pop, The Who, Jimi Hendrix, Elton John e até na nova geração, contemporânea dos Sex Pistols, como Siouxsie & The Banshees, The Damned, The Clash e, claro The Jam, com Paul Weller sendo chamado de “o Barry McGuire do punk“, em referência ao cantos do The Mamas & The Papas, o que era uma tremenda ofensa na época.

O tempo tratou de mostrar que Johnny Rotten (ou Lydon), o vocalista dos Pistols, é que se tornou coluna de sustentação fascista, nos anos 2010-2020, apoiando ideias de Donald Trump, algo pra Burchill se envergonhar.

O Jam, por sua vez, nunca foi de fato punk. Estava era olhando pros anos 1960, especialmente pro The Who. “The Butterfly Collector”, inclusive, era quase uma versão de “Shangri-La”, dos Kinks. Empresta até um verso: “you just can’t get any higher”.

Soo Catwoman, um dos ícones no começo da cena punk londrina também é candidata a “homenageada” em “The Butterfly Collector”. Após a implosão do Sex Pistols, a moça tentou se tornar parte da comitiva do Jam e isso foi ressentido por Weller. Ele a via como alguém que tentava obter fama pendurando-se no pescoço de outras pessoas. Ela alcançou um status de culto, no entanto, graças ao fotógrafo Bob Gruen, que a elevou à “ícone punk”, o que quer que isso queira dizer.

O fato é que Weller conjuminava com a ideia de Fowles sobre os “colecionadores” sociais. Colecionar coisas é uma prática habitual. O exagero é que pode significar uma patologia, e pode ocasionar um transtorno obsessivo compulsivo. Os colecionadores sociais não param, como gafanhotos, destruindo o que deixa pra trás.

“So you finally got what you wanted / You’ve achieved your aim by making me walk in line / And when you just can’t get any higher /
You use your senses to suss out this week’s climber / And the small fame that you’ve acquired / Has brought you into cult status /
But to me you’re still a collector”, começa a canção do Jam.

O colecionador de borboletas de Weller também significava “morte”, de certa maneira. Assim como Miranda encarou seu raptor e esfregou uma verdade cruel na cara dele, Weller alfinetou sua “sequestradora”.

Cinco anos depois de “The Butterfly Collector”, “O Colecionador” de William Wyler voltou a aportar nos anais da música pop. Em janeiro de 1984, os Smiths lançaram “What Difference Does It Make?”, terceira faixa de trabalho de “The Smiths”, disco de estreia da banda, que seria lançado no mês seguinte.

Na capa, uma imagem de Terence Stamp, que interpreta o sequestrador em “O Colecionador”, segurando um chumaço de pano com clorofórmio, usado pra abater Miranda.

Stamp, a princípio, não autorizou o uso da imagem. A banda, então, recorreu a uma imagem alternativa, de Morrissey segurando um copo de leite. Stamp, depois, reviu sua posição e liberou a imagem, de modo que a capa com Morrissey e o copo de leite ficou rara e é, hoje, mais procurada e desejada.

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Lá se vão mais de cinquenta anos desde que “O Colecionador” chegou aos cinemas. O sucesso comercial de livro e filme ajudou a acumular consequências conhecidas de mentes ou pavorosamente psicóticas ou brilhantemente criativas.

De um lado, serial killers. De outro, Wyler, Weller, Morrissey – e Noel Gallagher e Garbage, que fizeram versões pra “The Butterfly Collector”.

No meio, uma coleção de sensações de quem entendeu que não se pode brincar com a vida alheia.

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