Se você já foi a Viena, a bela capital austríaca, dificilmente escapará de “O Danúbio Azul”, a valsa mais popular de todos os tempos. Por outra, nem é preciso ir a Viena: a música está em muitos filmes, comerciais de tevê, festas de debutantes e casamentos mundo afora, sistemas de som de lojas de departamento, abertura de shows de astros famosos e onde mais você puder imaginar. É sinônimo de valsa.
Quando Johann Strauss II a compôs, em 1866, o filho mais velho de Johann Strauss já era um compositor de sucesso tanto quanto o pai. Mas o rio não passava exatamente pelo meio de Viena, como é hoje (o metrô inclusive passa por cima do rio, com uma estação bem na margem – margens que hoje são um parque aberto a todos, pra esportes, piqueniques, namoricos e bronzeamento no curto verão vienense). O Danúbio ficava, naquela época, um pouco afastado da cidade.
O que Strauss enxergou ali foi um símbolo que procurava. Ele leu um poema de Karl Isidor Beck, que se encerrava com o verso “às margens do Danúbio, o belo e azul Danúbio”. Beck nasceu na Hungria, em 1817 e morreu em 1879, sem jamais ouvir a valsa que inspirou o título.
A ligação entre Beck e Strauss – e “O Danúbio Azul” – segue por uma via mais longa, entretanto. Beck era um dos escritores (junto com Moritz Hartmann e tantos outros) que se opunham ao nacionalismo e ao que clamavam como autoritarismo de Klemens Wenzel von Metternich, o comandante do Império Austríaco. Daí pra caminhar ao apoio ao primeiro-ministro alemão Otto Von Bismarck foi um pulo. Bismarck foi escolhido, em 1861, pelo kaiser Guilherme I justamente pra construir uma estratégia que levasse à unificação da Alemanha.
A geopolítica europeia no século XIX era uma loucura de estados e países que pouca gente hoje daria conta de compreender as fronteiras. Pra resumir, basta entender que havia a Prússia, o Império Austríaco e a França e a Itália como potências. O que conhecemos como Alemanha era um apanhado de trinta e nove estados independentes que compunham o que se chamava de Confederação Germânica. A Áustria exercia forte influência sobre eles do ponto de vista político, mas a Prússia tinha influência econômica e a unificação faria a Áustria perder força.
A Prússia instituiu uma política de cooperação econômica, a Zollverein, que se baseava no livre comércio pelas fronteiras, excluindo os estados que estavam do lado da Áustria. O poderio econômico aumentou.
Logo, Bismarck entrou em conflito armado com a Dinamarca, em 1866, pelos territórios da Schleswig-Holstein, junto com a Áustria, em troca de compensações territoriais. A jogada de Bismarck foi ter prometido e não ter entregado, o que fez a Áustria entrar em guerra com a Prússia, no que ficou conhecida como a Guerra Das Sete Semanas.
Assim, em menos de dois meses, a Prússia pôde devastar a Áustria, que perdeu os territórios do sul, inclusive Vêneto pra Itália, que apoiara a Prússia e ficou com a região onde fica Veneza.
É nesse cenário de devastação financeira, política e moral que Johann Herbeck, mestre do Wiener Männergesangsverein (Sociedade do Coral Masculino de Viena), repete o pedido que havia feito um ano antes a Strauss sobre uma canção pra Sociedade. À época, Strauss tinha compromissos demais e, apesar de prometer entregar a peça, foi empurrando com a barriga. Diante do novo cenário de derrota, Strauss foi incentivado a rever sua promessa e escrever uma alegre canção pra levantar o espírito dos compatriotas.
Embora o Danúbio não passasse pela cidade de Viena e Beck se referisse ao Danúbio de sua cidade natal, Baja, na Hungria, a quatrocentos quilômetros de distância, a ideia de um “rio azul” servia como uma sátira – ao mesmo tempo como um símbolo de imponência perdido – como bem sublinhou Josef Weyl, o autor da letra pro coral: “Wiener seid froh! – Oho, wie so? / No so blickt nur um! – Ich bitt warum? / Ein Schimmer des Lichts – Wir seh’n noch nichts. Ei, Fasching ist da – Ah so, na ja!” (algo como “vienense, regojizem-se! – oh, por qual motivo?” / só olhe ao redor – por quê? / Um brilho de luz – não vemos nenhum. / Ei, a festa está aqui – Ah, tudo bem então!”).
Tentar elevar o moral dois austríacos foi a intenção primeira de Strauss e de Herbeck, mas o sucesso da canção foi muito além disso, como bem sabemos hoje. A peça na versão pra coral foi executada pela primeira vez em 15 de fevereiro de 1867, mais de cento e cinquenta anos atrás, um sucesso invejável pra qualquer artista pop da atualidade. O título original era “An Der Schönen Blauen Donau”, ou “No Belo Danúbio Azul”.
Desde o princípio, a peça foi aclamada como um sucesso. O jornal Neue Fremdenblatt escreveu em 17 de fevereiro de 1867: “O número de abertura da segunda parte foi um acerto decisivo (Schlager)” – o primeiro uso documentado da palavra alemã “Schlager” (“schlagen” também significa “sucesso”/”bater”/”hit“). Após a apresentação, o Wiener Männergesangsverein deu a Johann Strauss um ducado de ouro.
Cem anos depois, um cineasta já tido como “amalucado” e “difícil”, de Nova Iorque, viu em “O Danúbio Azul” a saída pra um impasse naquela que seria a grande obra da sua vida, “2001, Uma Odisseia No Espaço” (2001, A Space Odyssey, 1968).
O filme celebra em 2018 cinquenta anos de seu lançamento (exatamente dia 3 de abril de 1968) e ressuscitou uma série de lembranças dos seus bastidores e análises acerca da obra.
A parceria entre Stanley Kucrick, o cineasta, e Arthur C. Clarke, o escritor e roteirista, parecia ser promissora. Kubrick era um cético e Clarke um otimista de fé. A visão de ambos, embora divergente, não foi exatamente conflitante, e Clarke tocou o roteiro como pôde.
“O grande mérito de ‘2001’ reside na expansão desse entendimento sobre o herói dos mitos, que os autores aplicaram não a um único indivíduo, mas à trajetória de toda a humanidade”, escreveu Helen Beltrame-Linné, no ótimo, pois de simples compreensão a todos, artigo pra Ilustríssima, da Folha De São Paulo.
“‘De macaco a anjo’, como Kubrick definiria mais tarde. As palavras do diretor aludiam a ‘Assim Falou Zaratustra’ (1883), obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, na qual os seres humanos aparecem como uma espécie em transição, alguma coisa entre o macaco e o que o autor chamou de ‘super-homem'”.
A autora do artigo lembra que embora Clarke estivesse envolvido com o filme, foi Kubrick quem pensou tudo e pra ele era uma obra mais de silêncio e música do que de diálogos. Das quase duas horas e meia de filme, apenas quarenta minutos apresentam algum diálogo. A primeira palavra se dá só depois de mais de vinte minutos.
“No primeiro rascunho de roteiro”, segue o artigo, “Clarke havia escrito uma longa narrativa em off, marcadamente descritiva, que lhe parecia essencial pra dirimir dúvidas e incertezas do espectador. Com o filme em produção, era comum que o escritor aparecesse no estúdio com novas sugestões de narração, que escrevia depois de considerar incompreensíveis algumas cenas filmadas. O diretor, entretanto, caminhou cada vez mais no sentido de eliminar diálogos e deixar as coisas subentendidas. Em novembro de 1967, Clarke enviou um telegrama para Kubrick: ‘Acabei de retornar turnê de palestras duas semanas 16 mil km passei cada minuto livre trabalhando narração como solicitado’. O cineasta respondeu sem rodeios: ‘Lamento pela narração. Conforme o filme é montado, ficou evidente que a narração não será necessária’.
A solução pra Kubrick veio da música.
“‘Primeiro movimento: Aurora. O homem sente o poder de Deus. Andante religioso. Mas o homem ainda anseia. Ele mergulha na paixão (segundo movimento) e não encontra paz. Ele se vira pra ciência e tenta em vão resolver os problemas da vida em uma fuga (terceiro movimento). Soam as agradáveis músicas de dança e ele se torna um indivíduo. Sua alma se eleva para cima, enquanto o mundo vai afundando debaixo dele’. Poderia ser uma sinopse poética de ‘2001’, mas se trata da introdução escrita por Richard Strauss pra ‘Assim Falou Zaratustra’, obra musical de 1896 que ele definiu como uma sugestão sonora do estado de espírito do texto literário. Kubrick faz uso similar da composição: é o primeiro trecho da obra de Strauss, ‘Aurora’, que dá o tom daquela que se tornaria uma das aberturas mais clássicas do cinema de ficção científica (…)”.
Conforme Kubrick ia montando o filme, ia também percebendo que tipo de música gostaria. “O Danúbio Azul”, a grande valsa de todos os tempos, se encaixava perfeitamente na primeira cena “do futuro”, quando o espectador é transportado da “aurora da vida” pra um futuro até aquele momento distante (e que se mantém idealizado até hoje). As naves espaciais bailam ao som da valsa de Johann Strauss II. É um verdadeiro balé.
O resultado final, apesar de incompreensível pra audiência – e o é pra muitos ainda hoje – acabou gerando um sucesso de bilheteria por motivo inesperado. Se nas primeiras sessões, as pessoas chegavam a deixar a sala de exibição por não entenderem nada, o que fez o próprio diretor cortar quase vinte minutos do longa no intuito de deixar tudo mais fluido, logo uma plateia inusitada começou a encher as salas de cinema: usuários de drogas alucinógenas potencializavam os efeitos nas cenas em que as luzes coloridas da viagem no hiperespaço apareciam. O filme venceu no boca-a-boca.
O filme custou doze milhões de dólares da época, uma fortuna. Já rendeu duzentos milhões nesses cinquenta anos (sem atualização pela inflação, o que elevaria esse número pra três ou quatro vezes mais).
Como diz o cartaz comemorativo dos cinquenta anos, esse foi “o filme que mudou todos os filmes pra sempre”. Mas nada seria possível sem uma valsa que se perpetuou na história cento e cinquenta anos atrás.