Riley Ben King nasceu no Mississipi, Esteites, dia 16 de setembro de 1925. Nos quase noventa anos seguintes, até sua morte em 14 de maio de 2015, escreveu uma história como poucos seres humanos conseguiram – forte, carismático, poeta sonoro, B. B. King, como ficou conhecido, gravou em torno de cinquenta discos e definiu um estilo, que a despeito dos outros, de quaisquer outros, é o estilo, o pai de todos que se constroem com guitarra, o blues.
B. B. King é o rei do blues.
“É”, assim mesmo, no presente. Não há passado pra essa figura inconfundível na estampa, no jeito de tocar. Jamais deixará de ser. Jamais deixará de encantar, surpreender e inspirar.
De tudo que B. B. King deve ter passado na vida, de tantas pessoas que tocou com sua música, dos incontáveis uísques saboreados por suas notas, é até irresponsável tentar definir seu impacto em poucos parágrafos. Não há resumo pra sua grandeza.
Mas cada pessoa que um dia ouviu sua música pode montar um epitáfio apaziguador da dor pessoal dessa perda. Porque ninguém fica imune ao impacto causado pela sua envolvente guitarra, a mais famosa das guitarras já existentes, com nome próprio e declarações de amor. É óbvio que sua obra fica, sobrevive, é eterna. O ídolo deixa de ser ele quando ganha essa dimensão, passa a ser intangível, e mesmo com seu corpo finito, mesmo que seu coração pare, que as doenças mundanas o vençam, ele vai estar sempre no mundo, como sempre esteve.
A não ser que você tenha uma história como a de Bob Kincey, publicitário e fã de grande envergadura do mestre. Ele tem uma história cujo protagonista é B. B. King. Não é só a música. Não é só o óbvio. Kincey não se conteve em ter passado pelo mundo apenas ao mesmo tempo em que a música de B. B. King surgiu. Ele precisava conhecê-lo. E em 1998, teve essa chance, aqui no Brasil.
O texto abaixo conta como um pouco de cara-de-pau pode dar resultados. Bob Kincey teve seus minutos de fama com B. B. King. Ele estava tão vivo quanto no palco, tão vibrante quanto nos discos – e era de verdade, não um ídolo intangível.
Recordar dessa pequena história é uma ótima maneira de recordar do grande B. B. King.
De frente com Mr. Riley B. King – O dia em que conheci o rei do blues
Texto e fotos: Bob Kincey
Desde pequeno tenho o hábito de ouvir música, influência paterna que agradeço até hoje. E, entre alguns gêneros, o blues rapidamente se tornou um dos estilos preferidos. Sempre que volto ao passado e viajo até a minha infância, resgato imagens de um moleque com feições nórdicas, adornado por gigantescos fones de ouvido. Música era um dos meus brinquedos preferidos, até mesmo na hora de dormir.
Seguia pro meu quarto, acompanhado por um par de fones adaptados, que se estendiam da minha cama até o gravador de rolo da sala. A qualidade do audio era superior a qualquer wi-fi ou home theater da atualidade. Assim eu embalava meu sono, ao som de Robert Johnson, Lightning Hopkins, John Lee Hooker, Buddy Guy, Muddy Waters e, é claro, B. B. King.
Quase trinta anos e alguns modelos de fones de ouvido depois, tive a chance de consolidar toda a minha paixão pelo blues em um encontro inesperado com o rei do gênero musical: Mr. Riley B. King.
Em 13 de dezembro de 1998, um domingo, um grupo restrito de paulistanos foi agraciado com uma única apresentação de B. B. King no Bourbon Street Music Club. Uma raridade se levarmos em conta a falta de frequência dos grandes artistas internacionais por essas bandas nos anos 90.
Fato que tornou a procura por ingressos um evento à parte. Em menos de uma semana, todos os assentos haviam desaparecido das bilheterias e com eles, o meu ingresso, que desapareceu logo nas primeiras horas do primeiro dia de vendas. Havia conseguido o assento mais simétrico da história dos meus concertos musicais: de frente pro palco, no centro e na primeira fila. O termo “macaco de auditório” nunca me serviu tão bem e, às oito horas daquela noite, sentaria a menos de dois metros do mestre Riley B. King.
Estrategicamente centralizado na primeira fila e indevidamente cercado por magnatas antipáticos e convidados nada especiais, fui obrigado a controlar minha ansiedade com o bom e velho amigo Jack. Jack Daniels, pros não tão íntimos. Mantive a compostura e, por volta das dez da noite, a banda iniciou uma breve introdução instrumental. Poucos minutos depois, seus integrantes apresentaram a estrela principal e B. B. King caminhou até o centro do palco, acompanhado da inseparável Lucille.
Antes que tocasse a primeira nota – aquela longa e sustenida nota que automaticamente ouvimos quando nos deparamos a uma foto ou lemos o seu nome em alguma publicação – B. B. King cumprimentou o público com um sorriso inigualável. Grato e humilde, característicos de um grande homem.
Música após música, o rei do blues e sua banda seguiram por quase duas horas. Foi um show impecável. Sim, talvez essa seja a melhor palavra para definir o que tinha acabado de presenciar. O som, o ritmo, a voz, as notas, a guitarra, todos impecáveis. Mais impecável ainda, foi apreciar a alegria, o respeito, a sensibilidade e a vivência de um homem que resolveu contar a sua história através da música.
Antes que deixasse o palco, Mr. King fez questão de presentear os fans com os famosos “pins” de guitarra, tradicionalmente distribuídos após suas apresentações. Fui um dos primeiros a desocupar a cadeira e estender as mãos pra receber a prenda. Além do mimo, recebi um aperto de mão, acompanhado de um sorriso mais que simpático. Nesse momento, depois do gratificante bônus, voltei ao meu assento e discuti com meu amigo Jack, o Daniels, a possibilidade de um encontro com o rei do blues. Não, não tive um rompante de arrogância, apenas percebi a oportunidade pairando no ar. Como no blues, esse era o meu “feeling”.
Meses antes, havia lido em sua biografia, que B. B. King costumava receber os fãs em seu trailer, depois dos shows. Assim sendo, tracei uma estratégia e fui em busca do meu objetivo.
Por alguns anos visitei o Bourbon Street Music Club com certa frequência, graças a amigos que costumavam se apresentar na casa. Com isso, acabei adquirindo alguns conhecimentos, descobri verdadeiros “atalhos”, quando o assunto era bastidores.
Normalmente, as bandas terminam as suas apresentações e imediatamente seguem pra uma sala reservada, onde fazem uma merecida refeição. Sabia que não seria diferente com a B. B. King’s Blues Band. Segui, então, em direção à tal sala, fazendo escala pra comprar um CD do B. B. King na recepção.
Desviei de alguns garçons e alguns bebuns de plantão e como um gato preto em noite de lua nova, cheguei até a sala mantendo o anonimato. Abri a porta e entrei com ares de quem havia se perdido. Estavam ali, todos os músicos, se alimentando de estrogonofe, batatas assadas e muito pão. Na ponta da mesa, se encontrava o trompetista, líder da banda e sobrinho do rei do blues, Mr. James “Boogaloo” Bolden. Ele se virou, sorriu e prontamente perguntou se eu precisava de ajuda. Confesso que, na hora, toda aquela simpatia me causou constrangimento, mas busquei foco e segui com o meu objetivo. Respondi que tinha a intenção de encontrar o toalete, mas indaguei estar mais feliz por ter encontrado a banda. Ele riu e essa foi a dica pra pedir que autografassem a capa do meu mais novo CD. Fechei a porta da sala e todos, sem exceção, se prontificaram em assinar.
Terminada a volta olímpica ao redor da mesa, me deparei novamente com o senhor Boogaloo. Estendi a mão, cumprimentei-o e agradeci a cortesia de cada um dos seus companheiros de palco. Porém, antes que saísse da sala, perguntei se havia a possibilidade de completar o meu recém-inaugurado álbum de autógrafos. Ele, mais uma vez, riu e disse: “não, você não pode voltar pra casa sem a assinatura principal” e pediu que o esperasse lá fora, junto ao palco, até que terminassem o jantar. Em menos de um minuto atravessei o espaço e montei guarda, atento como um soldado em tempos de guerra.
Instantes depois, percebi a presença do senhor Boogaloo, caminhando em minha direção. Simpático, como sempre, se aproximou e comentou em voz baixa que deveria segui-lo. Obedeci suas ordens e fomos em busca de uma saída lateral, pouco usada no recinto. No caminho, fomos obstruídos várias vezes por transeuntes alcoolizados que insistiam em fazer perguntas ao trompetista. Enfim, chegamos ao destino planejado, localizado a frente de um trailer onde o senhor Riley se encontrava.
Enquanto conversávamos sobre amenidades, Boogaloo ficou o tempo todo ao meu lado e ao lado da porta do trailer. Havia uma pequena fila no local. Como eu, eram fãs em busca do mesmo objetivo: trocar algumas palavras com o rei do blues. Porém, eu estava acompanhado do seu sobrinho e isso me renderia uma significante vantagem. Boogaloo pediu a minha atenção, abriu outro sorriso e disse em tom efusivo: “você será o próximo a entrar no trailer e acaba de ganhar o título de “bom e velho amigo (“a good ol’ friend”, na sua língua nativa), por isso, seja esse bom e velho amigo, certo?”. Imediatamente codifiquei a mensagem e, após ser anunciado pelo carismático senhor, adentrei o trailer.
Paralisado. Esse era o meu estado psicofísico. Estava cara a cara com ninguém menos que B. B. King, o rei do blues.
Havia alcançado o meu objetivo. Sim, de fato, havia cumprido a minha missão. Porém, em questão de segundos, percebi a urgente demanda de outro objetivo: selecionar assuntos e palavras interessantes o suficiente pra dividir com aquela ilustre e simpática pessoa. Tamanho foi entretenimento nas conversas com o sobrinho, que acabei esquecendo de pensar no que iria falar com o tio. Por sorte, lembrei que havia lido a biografia daquele senhor e resgatei alguns assuntos nas páginas que ficaram gravadas na minha memória.
Enquanto Mr. King se alimentava de um refrescante pedaço de melão, fiz algumas perguntas sobre sua sofrida infância, as primeiras apresentações, a fabulosa história da sua inseparável guitarra e, até mesmo, sobre diabetes. A princípio, perguntas óbvias. Mas, em poucos segundos, a minha paralisia se transformou em comodidade. Sentia como se estivesse na sala da casa do meu avô, trocando informações sobre um passado distante. O ícone B. B. King, o mestre B. B. King, havia se transformado no senhor Riley, no “bom e velho amigo”, Sr. Riley. Um senhor amável, experiente, cativante e extremamente educado. Uma pessoa com quem passaria horas falando sobre qualquer assunto. Horas não, dias. Pelo menos, essa era a sensação. Esse era o “feeling”. Além da vontade, é claro.
Depois de mais algumas perguntas, senti a obrigação de encerrar o bate-papo. Por mais educado que aquele senhor pudesse ser, não pretendia exaustar a sua paciência. Tão pouco, pretendia desrespeitar os objetivos dos outros fãs que aguardavam do lado de fora do trailer. Neguei a oferta de um pedaço de melão, solicitei humildemente um autógrafo na capa do meu recém-comprado CD, agradeci várias vezes a oportunidade de estar ao seu lado e segui em direção a porta. Antes que pudesse abri-la, o senhor Riley me chamou pelo nome e perguntou se gostaria de receber uma foto autografada. Assimilei a pergunta, ainda que surpreso por ter ouvido o meu nome na voz daquele homem. Um verdadeiro exemplo de humildade e educação. Aceitei a oferenda e, mais uma vez, agradeci pela gentileza. E assim, deixei o trailer depois de um último e sincero aperto de mãos.
Hoje, quase duas décadas depois, ainda me sinto abençoado por ter conhecido o mestre B. B. King, tirando notas inatingíveis de sua Lucille. Mais que isso, me sinto abençoado por ter tido a honra de conhecer o senhor Riley B. King, uma pessoa singela e cativante, de quem pude ouvir palavras e pensamentos que vão além das biografias.
Normalmente, as pessoas se referem aos seus quinze minutos de fama quando expõem suas maiores conquistas diante de milhares de outras pessoas. Sentem-se importantes e cheias de glamour. Comigo, não foi dessa forma. Foi diferente. Os meus quinze minutos de fama não tiveram fama. E, com certeza, uma das minhas maiores conquistas não precisou de platéia. Não foi preciso mais do que uma pessoa para validar os meus quinze minutos, apenas a exclusividade e a gentileza do senhor Riley B. King.
Muito obrigado, Mr. King. Descanse em paz.