O FIM DO MP3

Foi com um anúncio curto e sem muito alarde que o Fraunhofer-Institut Für Integrierte Schaltungen (Instituto Fraunhofer de Circuitos Integrados, ou Fraunhofer IIS, como é abreviado) determinou o fim do MP3:

“Em 23 de abril de 2017, o programa de licenciamento de MP3 da Fraunhofer IIS foi encerrado. Agradecemos a todos os nossos licenciados por seu grande apoio em fazer do MP3 o codec de áudio base em todo o mundo, durante as últimas duas décadas. O desenvolvimento de MP3 começou no final dos anos 80, no Fraunhofer IIS, baseado em resultados conseguidos anteriormente na Universidade Erlangen-Nuremberg. Embora existam codecs de áudio mais eficientes disponíveis hoje em dia, o MP3 é ainda muito popular entre os consumidores. No entanto, a maioria dos serviços de mídia de última geração, como streaming e radiodifusão de TV e rádio, usa modernos codecs ISO-MPEG, como a família AAC ou, no futuro, o MPEG-H. Eles podem oferecer mais recursos e uma qualidade de áudio superior em bitrates muito menores, em comparação com MP3″.

Foi só o que tiveram a dizer.

Não foi uma decisão fácil. O MP3 gerava em licenças algo em torno de cem milhões de euros por ano ao Fraunhofer IIS (dados até 2006), mas vinha tendo sua receita diminuída consideravelmente nos últimos tempos. Isso porque o YouTube, o iTunes e os serviços de streaming usam o Advanced Audio Coding (AAC), que já é considerado o compressor padrão de áudio no mundo. Mas o instituto não vai perder dinheiro, ao contrário: entre os detentores das patentes do AAC também está o Fraunhofer IIS.

A história de como Karlheinz Brandenburg inventou e conseguiu fazer do MP3 o formato de compressão que mudaria a história da música pra sempre é deliciosamente contada no livro “Como A Música Ficou Grátis – O Fim De Uma Indústria, A Virada Do Século E O Paciente Zero Da Pirataria”, de Stephen Witt, publicado em 2015. O reinado durou efetivamente vinte anos e ganhou a batalha inclusive da Apple de Steve Jobs, que logo apostou no AAC. A Apple estava certa, mas o usuário comum já havia abraçado o MP3.

A razão pra esse sucesso é que o MP3 conseguia comprimir grandes quantidades de dados sem uma deterioração perceptível da qualidade, numa época em que a pirataria estava explodindo e as conexões de alta velocidade eram como notas de euro: simplesmente não existiam. Nos anos 1990, época das conexões discadas e ainda sem o avanço dos players portáteis de música e dos smartphones, que fariam o formato se massificar nos anos 2000, o MP3 foi a solução ideal pra juntar em HDs de minúsculas capacidades de armazenamento (por maior capacidade que tivessem à época) o máximo possível de música que o usuário caseiro pudesse captar pela Internet. Em termos práticos, significava que muitas canções – às vezes milhares – podiam ser salvas em um espaço muito pequeno.

O impacto do MP3 na música digital não será esquecido tão cedo. O formato introduziu a indústria da música na era digital, alimentou a pirataria e, consequentemente, pra combater o avanço massacrante da pirataria, estimulou a criação dos serviços de streaming que pipocaram nos anos 2010. Foi o estopim de tudo. Rasgou a página das mídias físicas, determinou a inutilidade do CD, que era aclamado como o “futuro do som”, e gerou todo o efeito dominó que determinará como será a música nas próximas décadas. Na arqueologia da era da música digital está o MPEG-1 Audio Layer 3, o MP3.

Em 1989, o Moving Picture Expert Group (MPEG), uma organização internacional de normatização, planejava introduzir um padrão de áudio que pudesse unificar toda a indústria de aparelhos e foi aí que estabeleceu-se o OCF. O criador do MP3, Brandenburg, lembra que “o desenvolvimento do OCF (“optimum coding in the frequency domain”) foi importante porque fez real a ideia vinda lá dos anos 1970 de que a música podia ser transmitida por conexões telefônicas. Pela primeira vez, fomos capazes de codificar música de boa qualidade a 64 kbit por segundo com um sinal mono. OCF foi o começo da estrada da padronização MPEG”.

Nessa época, a MPEG recebeu um total de quatorze propostas de codificação de áudio, e os participantes foram encorajados a combinar suas contribuições. Isso resultou em um total de quatro candidatos potenciais, dois dos quais eram o MUSICAM, do Instituto de Tecnologia de Radiodifusão IRT e da Philips, e o ASPEC (“adaptive spectral perceptual entropy coding”, nome pomposo – codificação de entropia perceptiva espectral adaptativa). O ASPEC foi o resultado de novas melhorias da OCF feitas pelo Fraunhofer IIS, além de contribuições da Universidade de Hanover, AT&T e Thomson. Após testes exaustivos, o MPEG propôs a combinação de MUSICAM e ASPEC no estabelecimento de uma família de três técnicas de codificação: a camada 1 seria uma variante de baixa complexidade do MUSICAM; Camada 2 seria um codificador MUSICAM; E camada 3 (mais tarde chamado MP3) seria baseado no ASPEC. O desenvolvimento técnico do padrão MPEG-1 foi concluído em dezembro de 1991.

Um projeto reagente à pesquisa de Brandenburg foi relatado pelo Floga-se aqui: “The Modernist Project”, ou “O Fantasma Do MP3” (os sons daquilo que o MP3 desperdiça), a partir da música “Tom’s Diner”, de Suzanne Vega, que Brandenburg usou pra desenvolver seu revolucionário codec.

Em seu livro, Witt mostra que curiosamente o MP3 nunca foi oficialmente determinada pela MPEG como codec padrão de som. Interesses comerciais falaram mais alto. Mas a equipe de Brandenburg não se deu por vencida e começou a soltar a codificação gratuitamente até que foi parar no Windows da Microsoft e hackers e piratas adoraram sua capacidade de compressão. O resto é história.

Apesar de oficialmente o MP3 parar de evoluir aqui, será muito difícil que ele seja imediatamente relegado à lata do lixo. Por um longo tempo, as comunidades de trocas de arquivo ainda vão existir e os arquivos também. Os tocadores de MP3 continuam aos milhões por aí e até mesmo os novos aparelhos ainda suportam e vão suportar o formato.

Mas com a tecnologia não se brinca. O tempo passa rápido e tudo pode acontecer. MP3 pode virar “coisa de velho”, e a aposta é que, ao contrário de mídias como o vinil e o cassete, que ganharam status de cult e renasceram o suficiente pra suas vendas sustentarem uma boa produção, o MP3 talvez não tenha tanta sorte: não há, a princípio, motivos pra sonhar com tal culto num futuro qualquer. De qualquer forma, o formato já tem seu lugar de honra na história.

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