Tafari Makonnen Woldemikael nasceu em 23 de julho de 1892, em Harar, no nordeste da Etiópia. Era um Lij, que indica em amárico que a criança tem sangue nobre. Tafari, por sua vez, significa algo como “o temido”, ou “o indomável”. Seu pai era o Ras Makonnen (“ras” significa “o chefe”, “o príncipe”), governador de Harar, e foi um importante general na Primeira Gurra Ítalo-Etíope (1895-1896), um personagem muito próximo do Imperador Menelik II.
A Etiópia, à época, era o único país independente da África, e preservar tal estado era essencial ao imperador.
Do outro lado do mundo, numa ilha caribenha de pouco menos de onze mil quilômetros quadrados, Marcus Mosiah Garvey, um voraz e hábil orador, começava a dar seus avanços como líder negro, num mundo em que não se discutia racismo. Garvey, um jornalista jamaicano, tinha certeza que a força de seu povo estava na união. Viajou pelas Américas e pra Inglaterra pra se inteirar sobre a condição dos escravos e ex-escravos. Foi pra Nova Iorque, nos Esteites, e criou em 1914 a UNIA (Universal Negro Improvement Association – ou Associação Universal para o Progresso Negro). Logo, conseguiu amealhar milhões de seguidores.
Em 1921, organizou a convenção internacional da UNIA, no Madison Square Garden. Líderes de muitos países participaram do evento, que buscava uma saída pra criação de um Estado Negro único, que agregasse os vários povos.
Mas os Esteites, a “terra da liberdade”, não são muito chegados em quem fala umas verdades e logo o ativista Garvey estava preso e deportado pra Jamaica. Era 1927.
Famoso, foi recebido por muitos em Kingston como um novo profeta. Fundou um partido, foi eleito e reeleito deputado, lutou de fato pelos direitos trabalhistas, e tinha um olhar esperançoso pra África, a terra de todos.
A Jamaica já era um país religioso, desde um século antes, graças a escravos cristãos que chegavam de lá. As falas de Garvey tinham todo significado a esses ouvintes. E quando ele disse a famosa frase “olhem pra África, quando um rei negro for coroado, a redenção estará próxima”, a esperança se acendeu como nunca.
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Após a vitória sobre a Itália, o imperador Menelik II tinha um problema sobre a sucessão. Ele já havia sido coroado meio na força, em 1889, quando da morte do imperador Joannes. O imperador havia deixado explícito que queria seu filho Mengesha Joannes como sucessor. O argumento de Menelik é que Joannes era da linhagem feminina do Rei Salomão e da Rainha de Sebá e ele, da linhagem masculina direta. Conseguiu a maioria do apoio da nobreza etíope e se tornou “Rei dos Reis”.
Menelik casou-se três vezes e não teve filhos com nenhuma das esposas, mas andou dando seus pulos de imperador por aí e acabou tendo vários filhos. Entre os reconhecidos por ele, havia duas meninas e um menino.
A mais velha, Shoaregga, casou-se duas vezes e foi na segunda que finalmente nasceu um filho homem, eventual sucessor de Menelik, Lij Iyasu. Seu pai era o Ras Mikael, da província de Wollo. A outra filha era Zewditu, que se casou com dez anos com o filho de quinze do imperador Jonnes, chamado Araya Selassie, que morreu cedo, de varíola. Zewditu não teve filhos, bem como seu irmão mais novo, Asfa Wossen Menelik, que faleceu com quinze anos.
Quando Menelik II ficou inválido pra reinar, após um forte infarto, em 1909, sua terceira esposa, Taytul Betul, assumiu o reinado, mas teve que indicar um regente, até a morte de Menelik II, em 1913, quando Lij Iyasu reclamou seus direitos de herdeiro direto.
O problema é que ele não assumiu o trono, porque alegaram que era ligado ao Islã, o que pra católica Etiópia era inaceitável. Com a ajuda de um primo distante, o Ras Tafari Makonnen, de Harar, Zewditu conseguiu tirar o poder de Lij Iyasu e, em 1916, assumiu o trono etíope, se tornando Negiste Negest, ou “Rainha dos Reis”.
Por ser mulher, não lhe era permitido de fato governar, incumbência que coube a Tafari, que virou o regente e foi apontado por ela o herdeiro direto ao trono, já que ela não teve nenhum filho.
Tafari já era Ras, se tornou regente imperial e acabou rei (“negus”), em 1928, autoproclamado. Nesse meio tempo, sua fama internacional se elevou, ao levar a Etiópia à Liga das Nações, uma precursora da ONU. Com a morte da imperadora Zewditu, em 1930, ele foi coroado Nəgusä Nägäst, ou “Rei dos Reis”.
A previsão do jamaicano Garvey, feita em 1927, demorou apenas três anos pra acontecer: um rei negro foi coroado. Estaria a redenção próxima?
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Tafari assumiu o nome de Haile Selassie I (que significa “O Poder da Divina Trinidade”), mas foi seu nome pré-coroação que ganhou o corpo dos jamaicanos: o Ras Tafari virou religião, literalmente, a rastafári.
Sobre a história de Selassie I, vale ver o documentário “Man Of The Millenium” (aqui, com legendas em inglês).
Seu governo foi marcado por mudanças e avanços, mas também por autoritarismo, apego excessivo ao poder e promessas não cumpridas. Em 1931, ele proclama a primeira constituição do país, centralizando o poder em sua figura. Ele começou a construir escolas, formar forças policiais e reformar o sistema tributário, que era bem antigo. Tinha também o dom da oração e cativava todos os súditos.
Seu governo era formado por pessoas simples, sem qualificação, que tinham como habilidade apenas servir e obedecer. Mas ele também estimulou os etíopes a viajar pra fora do país e muitos acabaram se formando na Inglaterra e nos Esteites.
Em 1935, Mussolini invadiu a Etiópia e, embora Selassie I tivesse resistido, acabou fugindo do país em direção à Europa, o que causou a ira de muitos dos seus seguidores e incentivadores, Garvey entre eles. O jamaicano escreveu um artigo, em 1937, que atacava o ser divino pros rastafáris: “todo negro orgulhoso de sua raça deve ter vergonha da maneira como Hailé Selassié se rendeu aos lobos brancos da Europa”.
A Etiópia só voltou às suas mãos em 1941, quando os ingleses libertaram o país dos italianos. Pra amenizar sua fuga, reforçou as reformas sociais, econômicas e educacionais. Em contrapartida, em 1955, promulgou uma nova constituição, que lhe dava ainda mais poder.
Sua figura marcante foi importante pra criação da Organização da Unidade Africana, em 1963, na capital Addis Abeba. A organização começou com trinta e dois países signatários e evoluiu pra União Africana, criada em 2002, nos moldes da União Europeia.
Na década de 1960, a sociedade etíope gozava de liberdades pra criar e a capital fervilhava. Há quem diga que o período foi a “era de ouro” pra música e a criatividade.
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Durante a Primeira Guerra Ítalo-Etíope, o Imperador Menelik II recebeu dos russos não só armas e instrução militar pra seu exército. Foi presenteado também com quarenta instrumentos de sopro, que contribuíram pra formação do banda imperial. Haile Selassie I incrementou e incentivou a banda.
Um dos integrantes era Mulatu Astatke, considerado o pai do Ethio-Jazz. Ele nasceu em 1943, em Jimma, no oeste do país. Ele foi um dos que recebeu o incentivo do imperador pra estudar no estrangeiro. Foi pra Grã-Bretanha e pros Esteites no final da década de 1950, onde teve contato com a efervescência musical dos dois países. Lição pra ambas as partes: Astatke e outros alunos africanos em Londres começaram a apresentar as respectivas músicas e culturas, enquanto absorvia a cultura local.
Astatke mostrou-se amplo ao combinar a pouco usual escala pentatônica da música tradicional etíope com a escala cromática, de doze notas, da música ocidental, criando, assim o que ficou conhecido como “Ethio-Jazz”.
Tocava o vibrafone, a conga e outros instrumentos de percussão, além do piano.
Foi nessa época, em 1966, que o músico formou, em Nova Iorque, o Ethiopian Quintet, gravando três álbuns que são o pontapé inicial do Ethio-Jazz: “Afro-Latin Soul” volumes 1 e 2 (1966) e “Mulatu Of Ethiopia” (1972). Mas o primeiro compacto com seu nome saiu mesmo pela Addis Abeba Records, um selo do próprio Astatke (que só lançou esse registro). Era “Maskaram Setaba”, de 1966, música que também estaria em “Mulatu Of Ethiopia”.
Ouça:
Numa entrevista ao site canadense Exclaim, o músico disse: “depois de muita pesquisa e trabalho pesado, consegui mesclar a música pentatônica com a de doze notas. Como você pode imaginar, não é fácil unir duas culturas e você tem que ter certeza que uma não vai dominar a outra. Mas o Ethio-Jazz tem cores lindas por conta da escala pentatônica ser dominante, com belas harmonia de doze notas”.
Ouça “Chifara”, do “Mulatu Of Ethiopia”:
Astatke hoje tem 71 anos e segue produzindo. Seus dois discos mais recentes são “Mulatu Steps Ahead” (2010) e “Sketches Of Ethiopia” (2013). Ele é considerado o criador, o pai do Ethio-Jazz, mas não é o único a formatar a beleza do estilo.
Getatchew Mekurya, Mahmoud Ahmed e Alemayehu Eshete são outros nomes bem relevantes.
Mekurya nasceu em 1935 e fez sua carreira nos corpos musicais estimulados por Haile Selassie I. Em 1949, entrou na Banda Municipal de Addis Abeba. Anos depois, já estava na banda do Teatro Haile Selassie I e na Orquestra Policial, a mais famosa do país. Começou como um virtuose em kras, uma espécie de lira, e masenqo, uma variação rudimentar do violino misturado com o berimbau. Especializou-se depois no clarinete e no saxofone.
Foi com esses instrumentos que gravou seu grande disco, o impressionante “Negus Of Ethiopian Sax”, de 1972, como parte da longa série “Éthiopiques” (o disco é o volume 14).
O saxofonista ainda está vivo, mas não tão atuante.
Ouça “Aha Gèdawo”:
Ouça “Shellèla Bèsaxophone”:
Mahmoud Ahmed nasceu em 1941, na capital do país. Desde bem jovem fez parte da banda imperial de Haile Selassie I. Foi integrante dela até o fim da banda – e do governo – em 1974. É considerado o nome mais importante do Ethio-Jazz, depois de Astatke, muito por conta das muitas gravações que deixou pelas maiores gravadoras do país, a Kaifa e a Ahma Records.
Um desses mais importantes registros é “Alèmyé”, de 1974, último ano do regime de Selassie I, antes do golpe comunista que o derrubou e que iria acabar de vez com a pujança criativa e musical do país. O disco é o volume 19 da série “Éthiopiques”.
O disco tem mais influência latina e árabe, como se ouve na faixa-título:
“Erè Mèla Mèla” é o registro seguinte de Ahmed, também bastante conceituado, pela mistura inacreditavelmente harmoniosa entre o jazz ocidental e música árabe e etíope.
Ouça a faixa-titulo:
Mesmo com o regime comunista e a censura, Ahmed continuou na Etiópia – e gravando. Seus instrumentos preferidos eram o krar e a guitarra, mal vista pelo regime. Na década seguinte, conseguiu excursionar pelos Esteites e pela Europa e alcançou enorme respeito da crítica. Chegou a ser chamado de “James Brown africano”.
Já Alemayehu Eshete nasceu em 1941 e foi vocalista da Orquestra Policial. Tinha pinta de galã e conseguiu alguns discos de sucesso, antes do golpe, que o obrigou a partir pro exílio. A série “Éthiopiques” guarda alguns volumes em sua homenagem.
Ouça “Addis Ababa Bété”, com uma levada suingada-quase-rock:
Outros nomes importantes são Mulugèn Mèllèssè, Sèyfu Yohannès, Tèshomé Meteku e Gétatchew Adamassu.
A maioria dos artistas fugiu do país com o golpe de estado comunista de 1974, capitaneado por Mengistu Haile-Mariam. O novo regime considerava o jazz uma aberração cultural, um estrangeirismo. E havia a censura.
Apesar do governo desastroso de Haile Selassie I no que concerne às reformas e avanços econômicos (a distribuição de terras ainda era num regime feudal), da crise externa do petróleo, que elevou o preço da gasolina, dos baixíssimos índices de alfabetização (10%), da miséria exposta e massacrante, e da corrupção estimulada por ele, o povo ainda gostava do seu imperador.
Mas com tanto fracasso, os nervos da população afloraram ano a ano, e uma greve no início de 1974, com estudantes e trabalhadores, foi a deixa pra junta militar, o Derg (“Comitê de Coordenação das Forças Armadas, Polícia e Exército Territorial”), tomar o poder.
Haile Selassie I morreu em 1975, de causas controversas. Os leais a ele acham que foi assassinado na prisão. O governo militar diz que ele teve problemas respiratórios.
Com o novo regime, aquela vivacidade social morreu junto com o imperador. Como muitos artistas tiveram que fugir do país, o Ethio-Jazz simplesmente sumiu do mapa até 1991, quando terminou a ditadura. Durante todo esse tempo, uma geração viveu sem se dar conta da riqueza musical que ali brotara na década anterior.
Astatke, a despeito da situação, ficou no país, como membro da Federação Internacional de Jazz. Ele ajudou a manter no exterior a chama viva do Ethio-Jazz, que foi, enfim, resgatado em todo seu vigor com a já citada série “Éthiopiques”, em 1997, pelo selo francês Buda Musique.
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Pra saber mais da fascinante história do imperador que virou deus pro movimento rastafári e incentivou o nascimento do Ethio-Jazz, vale ler “O Imperador”, livro do polonês Ryszard Kapuscinski, que entrevistou muita gente que conviveu e trabalhou com Haile Selassie I. No Brasil, o livro é editado pela Companhia das Letras. O original é de 1978.
No livro, conhece-se a história curiosa de como Ras Tafari, já chamado de Haile Selassie I, visitou a Jamaica, em 1966, e como ele ficou com medo de desembarcar, diante daquela multidão o saudando como um deus. Também relata como foi sua visita ao Brasil e seu encontro com Juscelino Kubitscheck. E como pensava o homem que ligou várias culturas tão distintas, o reggae, o jazz ocidental, a música etíope, os negros, os brancos, o velho e o novo mundo, as velhas e novas ideias.
(na foto que abre o artigo, a montagem tem, da esquerda pra direita, Mulatu Astatke, Ras Tafari/Haile Selassie I e Bob Marley)