Um promotor belga teve a ideia de organizar um show da recém-criada nova banda de John Lydon, ex-Johnny Rotten, o maluco que dava voz às músicas do Sex Pistols e que deu ao punk uma cara de estilo e ruptura conceitual. A Public Image Limited, ou PIL, havia surgido menos de um ano depois do agora icônico “Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols” chegar ao mercado, único disco oficial da banda em estúdio.
O furacão Sex Pistols ainda não havia passado. Os escombros ainda voavam pelos ares. A fumaça escura da destruição podia ser vista ao longe. Só que Lydon já tava em outra e quando “Public Image: First Issue” saiu, em 8 de dezembro de 1978, o tal promotor belga já havia ligado pra Lisa Robinson, da Virgin, solicitando o show da banda em Bruxelas. Seria o primeiro show da carreira do PIL.
O espaço escolhido foi o Le 140, ou Thêàtre 140, localizado na avenida Eugene Plasky, bem próximo do Parc du Cinquantenaire. Tão logo a notícia se espalhou, os ingressos de duzentos e vinte francos cada se esgotaram rapidamente, provocando um novo e inusitado pedido do promotor à Virgin pra mais um show naquela mesma noite!
Ficou acertado, então, que o PIL se apresentaria em Bruxelas no dia 20 de dezembro de 1978, em dois horários, às seis da noite e às sete e meia, uma hora e meia depois de iniciada a primeira apresentação, sendo que o grupo punk local Mad Virgins faria a abertura dos shows. Não se sabe como tanta gente conseguiu achar essa uma boa ideia.
O fato é que se uma coisa pode dar errado e fugir da programação, com uma figura como John Lydon envolvida ela de fato vai dar errado e fugir do controle.
Além de Lydon, o PIL naqueles primórdios era Keith Levene na guitarra (um dos fundadores do Clash), Jah Wobble no baixo (amigo de Lydon na fase pré-Pistols) e Jim Walker na bateria (um canadense que estudou na conceituada Berklee College of Music e que depois do PIL se retirou do meio musical).
Durante a passagem de som, no dia das apresentações, a banda se empolgou demais e estourou todo o sistema de PA. O promotor saiu em desespero atrás do técnico pra consertar tudo, o que demorou um bocado. A banda ficou extremamente agressiva com a equipe de produção, que percebeu então que os quatro não estavam com muita vontade de tocar.
A demora resultou numa fila imensa do lado de fora, com o frio cruel de dezembro. O público da primeira apresentação ainda não havia entrado quando o público da segunda começou a chegar e se acumular. Quando finalmente o show começou, com uma hora de atraso, o PIL tocou por apenas vinte e cinco minutos, se é que se pode chamar de “tocar”. Os relatos são de que a banda ficou o tempo inteiro insultando a plateia e nada mais, mesmo que a maioria das pessoas não estivesse entendendo absolutamente nada do Lydon e seus asseclas gritavam ao microfone.
A paciência da plateia, aliás, é algo a se destacar. Quando a Mad Virgins começou a tocar, por volta das oito e meia (ou seja, com uma hora de atraso), antecipando o segundo ato, o público até se divertiu um pouco. Mas o PIL demorou outros sessenta minutos pra ir ao palco, depois do fim do Mad Virgins, e foi tudo muito confuso, com os dois seguranças brutamontes de Lydon empurrando gente da plateia e até usando uma baqueta pra bater num fã mais exaltado.
O show durou uma hora, mas nesse tempo contam as muitas interrupções com a banda deixando o palco. Em algumas músicas, Lydon sequer voltou ao palco, “cantando” do backstage (ou insultando a audiência). “Public Image”, inclusive, a música que fechou a apresentação e era o carro-chefe do disco recém-lançado, não teve vocais. Levene e Wobble, visivelmente entediados e alterados (por alguma substância), tocaram quase o tempo todo de costas pra plateia.
Michael Trei, jornalista da revista Muziekkrant Oor, esteve lá pra reportar a estreia mundial do primeiro passo de Lydon pós-Sex Pistols. Não era pouca coisa. Ele conta que era um dos poucos que compreendiam o inglês, de modo que conforme Lydon xingava todo mundo, ele xingava de volta e tentava traduzir pro francês e fazer as pessoas ao seu redor entenderem o que estava acontecendo. “Durante ‘Annalisa’ (que não estava no setlist, mas definitivamente foi tocada), Lydon me entregou o microfone na audiência e foi pros bastidores. Consegui cantar um refrão antes que o microfone fosse arrebatado, passasse de mão em mão e sumisse”, escreveu.
O jornalista tinha uma entrevista marcada com a banda logo após o show e não foi um encontro muito amigável. Trei tentou arrancar uma declaração ou desculpa qualquer sobre a “apresentação inferior” que a banda tinha acabado de entregar. Levene respondeu: “Inferior? Quer apanhar? O que teve de inferior ali, cara? Inferior comparado a quê? Com outros shows de rock? Bem, então eu passo, não temos nada a ver com rock’n’roll”. E Lydon: “Public Image Ltd não tem nada a ver com rock’n’roll porque o rock’n’roll é a coisa mais doentia e chata que este século já produziu”.
O PIL tentava se descolar do Sex Pistols, mas a plateia não tinha a menor ideia disso. Ninguém tinha, na verdade. Afinal, essa foi a primeira apresentação do grupo e não havia referência. A única música dos Pistols que foi apresentada foi “Belsen Was A Gas”. De resto, “First Issue” foi tocado quase na íntegra, com exceção de “Fodderstompf” e “Annalisa”, que apareceu só num trecho, instrumental. Teve também “The Cowboy Song”, lado B do single “Public Image”.
Algum alma bondosa gravou da plateia o segundo show da noite, com um equipamento amador. Surpreendentemente, a qualidade de áudio é boa o suficiente a ponto de esse ser um dos bootlegs mais disputados da história – tem inclusive a passagem de som. Ele se tornou um CD bem interessante, cuja capa e contracapa você vê abaixo:
O setlist do segundo show, que o bootleg apresenta, é esse:
01. Soundcheck
02. Still Soundchecking
03. Theme
04. Belsen Was A Gas
05. Low Life
06. Religion
07. Attack (começo abortado)
08. Attack
09. The Cowboy Song (1)
10. The Cowboy Song (2)
11. Public Image (Instrumental)
Você pode baixar o áudio na íntegra, clicando aqui (é preciso se cadastrar).
Trei lembra a Lydon que o começo do PIL foi um tanto contraditório. Enquanto ele gritava no palco que “não queria ser um popstar“, que “se recusa a ser um herói”, ao mesmo tempo ficou fulo da vida quando a plateia não fez a menor questão de um bis. E Lydon respondeu, sem ter sacado: “Não é bem isso. Fiquei muito feliz em ver esta onda de ódio que veio até nós. Foi a prova de que as pessoas estão pelo menos pensando nisso. Que eles não engolem qualquer coisa. Repito novamente: espero que esta noite as pessoas voltem para casa em outro estado, diferente de quando vieram pra cá. Espero que elas pensem duas vezes na próxima vez, antes de gastar seu dinheiro em um concerto pop. Porque esta noite eles vieram pra ver Johnny Rotten, que uma vez tocou com os Sex Pistols. Eles queriam assistir seu herói, uma estrela, e eu não quero ser nada disso”.
História muito interessante. Já vou atrás desse bootleg para dar uma conferida.
muito legal seu conteudo parabens pelo seu site 🙂
Valeu!