Andy Cush escreve pra Spin numa velocidade e numa quantidade impressionantes. Das últimas e mais fúteis notícias da música – estranha ou pop – até resenhas e artigos de verdadeiro e simples jornalismo, Cush tenta encaixar seu dom pra escrita nos tempos líquidos modernos. Texto enormes, como esse que reproduzo agora, numa tradução livre não oficialmente autorizada, são primorosos, embora pouca gente leia (o original tá aqui).
O assunto é atraente. Assim como aconteceu com o perfil que John Seabrook fez do sueco Max Martin, “a fábrica sueca de sucessos pop” (leia aqui), Cush aponta mais um personagem nessa incrível engrenagem de criar pérolas populares em venda e diversão. Frank Dukes, um canadense de 33 anos (é de 1983), tem sua própria técnica pra criar sucessos tanto quanto Marin tem – embora ainda sem a mesma fama.
Enquanto o sueco é um compositor de primeira linha, o canadense aprimorou a maneira de usar os samples pra que eles se tornem mais baratos e, consequentemente, mais eficientes pra essa indústria. Cush acompanhou Dukes em casa, no seu estúdio caseiro e em alguns dias de trabalho pra traçar um perfil distante – a ideia é não desvendar o mito, apenas apresentá-lo, fortalecê-lo e cultuá-lo.
Esse longo texto mostra um profissional dedicado e objetivo no que faz. O perfil revela bem pouco da personalidade de Dukes, mas expõe a “esperteza” de quem percebeu a mudança dos tempos, da indústria e a velocidade que a produção carece nos dias atuais.
A “pop music machine” é um organismo vivo, algo como as máquinas de Matrix, indestrutível e sempre se aprimorando, usando cérebros criativos ávidos como de Martin, como o de Dukes e de outros laboriosos que estão por aí.
Dukes não é o primeiro a “reinventar” a “pop music machine”, nem será o último. O desafio pra esses produtores e compositores, assim como os que vieram antes e virão depois, é se reinventar e tentar acompanhar os passos acelerados dos nossos tempos.
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“How Hitmaking Producer Frank Dukes Is Reinventing the Pop Music Machine”
Texto por: Andy Cush
Numa manhã fria de novembro de 2016, um grupo de nerds colecionadores de discos da mais alta estirpe estava ouvindo música e falando besteira no porão da casa de Frank Dukes, nos subúrbios de Toronto, Canadá. Se você for montar uma equipe dos sonhos cujas habilidades incluam os primeiros lançamentos de um pequeno selo de jazz brasileiro e a capacidade de adivinhar qual disco contém determinada batida só olhando a capa, seria difícil não pensar em grupo melhor do que o que esses cinco formam. Ali estava Jacob Dutton, mais conhecido como Jack One, um produtor que se autodenomina “album cut assassin” e trabalhou em discos do Drake, MF DOOM e De La Soul. Também estava Gene Brown, que vende discos de vinil obscuros pra beatmakers como o DJ Premier e Kanye West usarem como samples em suas obras. Lá estava Rana Chaterjee, apresentador de um podcast pra colecionadores e ex-apresentador de um apreciado e já cancelado programa de hip hop numa rádio de Toronto. E havia um sujeito desajeitado, com óculos de vovô, que foi apresentado apenas como Chan Dogg – não é ninguém da indústria, mas um “usuário pesado” no círculo de colecionadores, como foi dito mais tarde.
O anfitrião do encontro foi recentemente alçado à estrela do grupo: Frank Dukes, produtor vencedor do Grammy, que aos 33 anos de idade é ligeiramente mais jovem que o resto da turma que estava se divertindo na sua casa. Com sucessos pra Drake (“Fake Love”, “Right Hand” e “No Tellin”), Kanye West (“Real Friends”), Travis Scott e Young Thug (“Pick Up The Phone”), Rihanna (“Needed Me”, “Sex With Me”), Kendrick Lamar (“untitled 07”) e outros, Dukes tem refinado um estilo de produção que é tanto um tributo quanto uma ruptura dos métodos baseados em samples dos seus amigos e mentores.
Dukes começou sua carreira como produtor de rap à moda antiga: procurando por discos antigos, isolando os melhores bits, e colando com as melhores batidas. Esse modelo tem produzindo grandes discos, mas exige o pagamento de taxas a quem possui os direitos sobre as gravações e composições originais.
No início de carreira, Dukes produziu algumas faixas assim, pra artistas como 50 Cent e Lloyd Banks. Depois de completar o árduo processo de apuramento de samples e ver seu trabalho conseguir modestos retornos, ele teve uma ideia. Ele gravaria curtos loops de suas próprias músicas e usaria no lugar de samples de músicas dos outros, pra evitar as taxas e atrasos. Ele também licenciaria gravações pra outros produtores, que pagariam a Frank Dukes pra usá-los em seus próprios trabalhos. Surgiu assim um programa, chamado de Kingsway Music Library, que tem batidas e linhas de baixo.
Dukes recebe créditos de produção em músicas pras quais ele mesmo cria música original, mas não em faixas que simplesmente usam samples da Kingsway. Esta distinção pode tornar seu catálogo difícil de rastrear. Uma peça única e jazzística que ele criou pra Kingsway, intitulada “Vibez”, foi usada por vários produtores, de maneira indiscriminada, em uma lista de canções, como se vê abaixo (vale ouvir ao menos o início de cada uma das músicas):
A “Vibez” original:
“0 To 100 / The Catch Up”, do Drake:
“Top Ten”, de Logic (com Big K.R.I.T.):
“On a Wave”, de Tinashe (com Drake):
“Broke Her”, de Yuna:
“Game Tapes”, de Curren$y:
“Eu fui sampleado no disco de Selena Gomez, alguma canção qualquer em seu último álbum,” disse. “Acabei de ser sampleado no álbum do (ator comediante) Kevin Hart. É muito estranho, coisas aleatórias por todo lado”.
Dukes e seus amigos se reuniram no porão de sua casa, depois de uma feira que Chaterjee organizou. Gene Brown viajou da Carolina do Norte pra vender seus produtos, e ele esperava se livrar de mais alguns discos antes do longo caminho de volta pra casa. Dukes, cortês e afável em uma camisa de rugby da Supreme e uma boina do exército, se recusou a comprar a maioria do que estava em oferta, mas ele só tinha elogios pros discos de Brown. Um deles, cuja capa glamorosa bem anos 70 só exibia o título “Waves”, tinha “a quantidade certa de breguice”, disse, num tom de voz canadense que soa quase texano pros ouvidos americanos. “Essa música me faz sentir como se eu devesse estar vestindo calças brancas”, acrescentou, evocando a opulência do yacht rock e do R&B dos anos 90.
Daí, Brown colocou pra rodar “Miniatures”, uma coletânea lançada em 1980, que reunia cinquenta e um minutos de sketches por art rockers como Robert Wyatt e XTC e foi organizada por Morgan Fisher, teclista do Mott The Hoople (a coletânea é essa). A sala quase explodiu em aplausos ao ouvir uma amadora versão de “Cum On Feel the Noize”, gravada pelo comediante britânico Neil Innes, com seu filho pré-puber cantando e se esforçando pacas pra manter o tempo na bateria.
“Isso é loucura!”, alguém gritou – talvez Chan Dog. J Dilla uma vez usou a versão “Noize” de “Miniatures” em uma de suas canções, ao completar um feito heroico de escavar em caixas e caixas de discos, e encontrar um sample digno numa pilha tão bizarra de vinis. Dukes comprou o álbum por quarenta dólares.
Em seguida, Brown colocou uma música que soava israelense e que clareou a memória de Jake One. Cerca de uma década atrás, ele tinha sampleado uma canção israelense pro Boom Bap Project, um relativamente pouco conhecido grupo de rap de Seattle. Os titulares dos direitos foram em busca de uma grana e Jake disse-lhes que ficassem com a porcentagem que quisessem – o álbum do Boom Bap Project não tinha vendido o suficiente pra que valesse a pena brigar financeiramente. Ainda assim, ele jurou que sampleia música israelense desde então. Ele achou que fosse possível samplear de uma obscura fonte internacional sem pagar, e ele estava errado. Aprendeu.
Há muito, samplear tem sido o componente central do hip hop. Os primeiros produtores embarcaram no corte-e-cola por conta da necessidade. Era mais fácil e mais barato comprar um MPC e alguns discos baratos do que formar um conjunto completo de instrumentos e equipamentos de gravação. Esta solução deu ao hip hop a capacidade de transcender o tempo e o estilo, numa espécie de magia tecnológica pós-moderna. Algum menino em 1989, com um walkman em seu bolso traseiro ouviu “Eye Know”, do De La Soul, pela primeira vez e perdeu-se em um devaneio digno de Proust: era a canção de rap mais alegre com um cara branco cantando o refrão; veio do mundo adulto das casas noturnas e filmes estrangeiros, com seus sopros e acordes de guitarra tirados de Steely Dan (especialmente o refrão – “I know I love you better”); um álbum velho e empoeirado que ele ouvira uma ou duas vezes, através das paredes do quarto do seu irmão mais velho e nerd, transformado em algo novo.
Discos clássicos, como “3 Feet High And Rising”, do De La Soul (1989), e “Paul’s Boutique”, do Bestie Boys (1989), foram criados quase que inteirinhos a partir de samples, oferecendo aos ouvintes uma panóplia de sons e associações diferentes de qualquer coisa gravada antes deles (além de Steely Dan, o De La Soul sampleou Otis Redding, Sly & The Family Stone, Lee Dorsey e The Mad Lads apenas em “Eye Know”). Naquela época, disputas sobre direitos autorais e pagamento aos artistas sampleados eram resolvidas fora do tribunal, se é que se resolvia alguma coisa, e a atenção limitada prestada ao ato de samplear significou que produtores e DJs podiam criar colagens vívidas de som sem se preocupar com os custos. “Vinte e cinco anos atrás, nos disseram que o hip hop e o rap eram uma fase, que essa música não iria durar”, disse Deborah Mannis-Gardner, perita em sampleagem, que fundou sua própria empresa em 1996, e que inclui clientes como J. Cole e Kendrick Lamar. “O quão tosco foi tal raciocínio? Um sample de James Brown nós podíamos conseguir a partir de quinhentos dólares. Naquele tempo, a mentalidade era completamente diferente”.
As coisas mudaram rapidamente. Em um acordo extrajudicial em 1991, De La Soul pagou aos membros de The Turtles US$ 1,7 milhão pelo trecho da música “You Showed Me”, no interlúdio de “3 Feet High And Rising”, “Transmission From Mars” (é a oitava faixa). No mesmo ano, Biz Markie foi considerado culpado de violação de direitos autorais e condenado a desembolsar US$ 250 mil em danos por usar sem autorização um trecho de “Alone Again (Naturally)”, de Gilbert O’Sullivan – nessa época, os artistas nem disfarçavam (não tinham motivos), tanto que a canção de Biz Markie se intitulava “Alone Again”, do seu terceiro disco, “I Need a Haircut”, de 1991; foi exatamente esse julgamento numa corte de Nova Iorque que, ao dar ganho de causa a O’Sullivan, mudou a história do hip hop dali em diante, já que o tribunal julgou que samplear sem autorização é infligir as leis de direitos autorais. Aqui, ainda vale uma pequena e rápida nota sobre a eficiência da Justiça estadunidense. O caso em questão foi julgado ainda em 1991, ano de lançamento do disco de Markie. Se a Justiça não age rapidamente, não há jurisprudência pra orientar os casos correlatos e a indústria da música poderia viver num limbo jurídico-financeiro até a solução derradeira do problema. O julgamento norteou artistas, produtores e selos sobre como agir nas criações futuras; ou seja, sampleou, pagou.
A era do Oeste Selvagem da sampleagem tinha terminado. Ainda assim, pros artistas que estavam dispostos a passar pelos canais legais, a sampleagem permaneceu acessível por um tempo. “Eu ainda fiz música da mesma maneira depois disso. Passei por todo o protocolo que eu sempre faço pra tratar meus samples, é só que a minha gravadora largou mão”, Markie disse à Spin por telefone. “Depende de quem tem a publicação, e de quem tem os direitos. Um monte de gente é legal com relação a isso, e algumas pessoas não”.
Durante a década seguinte, à medida que o hip hop foi crescendo cada vez mais, as gravadoras e os editores viam nos samples uma lucrativa fonte de receita e começaram a cobrar mais dinheiro pelos direitos. Hoje, usar o mesmo trecho de James Brown que Mannis-Gardner conseguiu por quinhentas pratas no início dos anos 1990 seria muitas vezes mais caro. Samplear uma simples batida de bateria, por exemplo, pode exigir a concessão de 7,5% a 10% de royalties a quem possuir os direitos da música original – os direitos sobre a melodia e as palavras. Uma porcentagem adicional da vendas do disco é devida a qualquer selo que possua os direitos da gravação original. Um efeito colateral deste pagamento duplo – direitos sobre composição e direitos sobre gravação – é o aumento do uso da “interpolação”, um processo meticuloso pelo qual os produtores regravam um sample com seus próprios instrumentos, pra soar o mais próximo do original. As músicas que usam essa técnica exigem que os artistas paguem pelos direitos de publicação (sobre composição, caso contrário seriam acusados de plágio), mas não pelas gravações originais (aos selos/gravadoras que lançaram o disco com a original), e o custo adicional de gravar uma nova versão é compensado pelo dinheiro economizado nos royalties.
Samplear já não é uma maneira barata de fazer música, mas também foram os dias em que os produtores precisavam comprar instrumentos e contratar uma banda. Softwares como o Ableton ou o FL Studio custam apenas algumas centenas de dólares e permitem aos produtores fazer música em seus laptops usando sintetizadores e baterias eletrônicas, sem precisar tratar samples. A consequência é que o som que prevaleceu no rap mudou de batidas quebradas e loops sujos pra teclados cristalinos e percussão digital.
O jeito de samplear da velha guarda está em declínio, as ações por violação de direitos autorais parecem mais comuns do que nunca, e os hits pop são cada vez mais formados por comitês de compositores e produtores que enviam arquivos digitais de um lado pra outro pelo mundo (experimente ver os créditos dos discos que mais estouram de vendas – de Kanye West e Beyoncé a Rihanna e qualquer rapper de alta rotação). Contra tudo isso, Frank Dukes, com sua biblioteca de sons caseiros, parece ser o produtor ideal pra nossa era. Se você não reconhece o nome dele, é porque suas canções são quase sempre formadas por fragmentos; a música de Dukes é feita sem quase nada que venha de outro produtor, geralmente mais famoso, que recebe o faturamento superior (em “No Needed Me”, de Rhianna, por exemplo, ele trabalhou com DJ Mustard, cuja assinatura “Mustard on the beat, hoe”, é a única tag que adorna a faixa). O canadense é um dos seis compositores creditados em “Attention”, uma faixa no “Starboy”, do The Weeknd (de 2016 – na verdade, Dukes assina com seu verdadeiro nome a composição, Adam Feeney, e como Dukes a produção). Jordan Sargent resumiu o estado de coisas na sua resenha na Spin (leia aqui), escrevendo que “Starboy” contém “dois punhados das melhores canções pop que a grande e vibrante Song Machine tem pra oferecer em 2016.”
Com a liberdade do seus fragmentos de música, Dukes pode ser levando em conta como apenas uma outra engrenagem na grande “máquina de fazer música pop”. Mas sua abordagem em duas frentes pra disseminar seu trabalho e seu método de criar “samples” a partir do zero o diferenciam de seus pares da indústria. O trabalho de Dukes com The Weeknd cai no lado original da produção de sua obra: a música que ele criou no “Starboy” é exclusiva do álbum, e ele mostrou como sua música foi criada e usada. Seu material na Kingsway Music Library, por outro lado, está disponível pra qualquer pessoa fazer o que quiser, desde do mais anônimo produtor do Soundcloud até Kanye ou Mike Will. Kingsway oferece pouco mais de uma dúzia de coleções de música, com nomes como “Baked Goods” e “Lap Of Luxury”, compráveis por algo entre quarenta e oitenta dólares – preços de janeiro de 2017. Uma vez que os produtores baixem uma coleção, eles são livres pra usar e manipular a música como quiserem.
Kingsway também cobra uma porcentagem de royalties por samples tratados, tal como uma gravadora ou compositor faria. Dukes geralmente divide a publicação meio-a-meio com o produtor da canção que sampleia sua música, e a Kingsway oferece gratuidade às masters de projetos de artistas independentes, mas leva uma porcentagem naqueles lançados em gravadoras maiores ou selos independentes. Em geral, Dukes diz, trabalhar com a Kingsway é significativamente mais acessível do que samplear de álbuns, e também causa menos aborrecimentos. “Eu conheço pessoas que têm sampleado música gospel, e então elas vão tratar o sample, e é como… ‘você não pode pegar a música do Senhor e fazer isso'”, disse ele. Dukes não tá nem aí pro que vão fazer com seu sample.
Ele atribui sua disposição de deixar a música limpa, em parte, pela frustração que sentia quando não conseguia tratar samples pra suas próprias músicas. Ajuda também o fato de que as ideias musicais que ele empacota na coleção da Kingsway são geralmente aquelas pras quais não encontrou um uso em seu próprio trabalho da produção. “Eu realmente não gero material especificamente pra Kingsway Music Library”, disse ele. “É apenas um produto da maneira como trabalho. Crio tanto que é impossível terminar cada uma dessas ideias. Se eu tiver ideias que são realmente preciosas pra mim, que eu estou trabalhando e se transformando em músicas, eu vou acabar produzindo essas músicas. Uma vez que eu publiquei na Kingsway, vejo como não sendo diferente de alguém pegar um álbum e samplear”. Às vezes, essa abordagem laissez-faire produz boas gravações de produtores que ouvem algo naquele trecho que Dukes não se ligou, como em “0 To 100 / The Catch Up”, de Drake, ou “Diamonds Dancing”, de Future e Drake, outra música baseada em uma peça da Kingsway. Às vezes, como dito, isso significa que a música de Dukes pode parar num álbum do comediante Kevin Hart.
Pode-se esperar que a colaboração em uma escala tão ampla seria maçante, mas a estética de Dukes é fácil de ouvir. Ele foi inspirado pelo brilho e pelo anseio de Phil Spector e pelo companheiro de improviso de Toronto Noah “40” Shebib. Dukes gosta de experimentar. Os ritmos lânguidos de “Pick Up The Phone”, disse ele, foram inspirados por “toneladas de samba e música brasileira – realmente refrescante”.
Os simulacros de sample de Dukes estão repletos de nostalgia de um lugar e uma era não-específicos na história do pop, onde algum conjunto há muito esquecido está tocando funk suave no som de uma cobertura de solteiro e Ray J e Frank Sinatra estão no bar atrás de seus coquetéis. Dukes criou seu estilo parcialmente em resposta às preferências do mercado, mas assim como os nova-iorquinos com samplers inventaram o som do hip hop dos anos 90, ele conseguiu algo original com sua aposta.
O verdadeiro nome de Dukes é Adam King Feeney, nascido em 12 de setembro de 1983, em Toronto; seu apelido veio de Frank Dux, o personagem de Jean-Claude Van Damme em “Bloodsport” (no Brasil, “O Grande Dragão Branco”, de 1988) e nome do mestre de artes marciais da vida real que inspirou o filme (e que na pré-produção treinou Van Damme por três meses pra entrar em forma pro papel). Embora gaste cerca de uma semana por mês viajando pra estúdios longínquos pro trabalhar, ele mantém horas normais quando está em Toronto, passando tempo com sua esposa e dois filhos pequenos. Ele é amigável e modesto, brincando que pegou muito do que sabe sobre composição e sobre compartilhar um estúdio com o quarteto de jazz BADBADNOTGOOD.
A residência da família Feeney fica num subúrbio, com parques e campos de golfe. Pra chegar lá, você dirige por uma estrada arterial de quatro pistas, passando por uma pré-escola. No porão, há teclados vintage empilhados e prêmios ASCAP por suas contribuições em “0 To 100 / The Catch-Up” e “Planes”, de Jeremih. Em vez de uma mesa de café, há um conjunto de trem de criança. É o tipo de casa onde você é convidado a tirar os sapatos ao entrar, e quando lhe oferecem uma bebida, não é licor, cerveja ou mesmo café, mas uma caneca de cerâmica com água filtrada.
Apesar da natureza noturna de sua música, Dukes começou uma sessão de gravação no mês passado bem antes do pôr-do-sol. Ele estava em seu estúdio caseiro, com Kaan Gunesberk, um compositor e multi-instrumentista com uma voz maleável e estilosa. “Quando você está produzindo, você está realmente apenas tomando uma série de decisões”, disse Dukes. Essas decisões podem ser tão simples como onde colocar o microfone num bumbo ou, como no trabalho de Phil Spector, elas podem ser tão envolvidas como escolher manualmente os membros de uma “orquestra de rock’n’roll”. O correto som do bumbo pode fazer uma gravação meramente boa transcender – pergunte a Spector sobre isso (link sugerido no texto original) -, mas o tédio de todas essas decisões também pode sufocar a criatividade. O objetivo da sessão com Gunesberk era gravar um fluxo musical sem travas ou amarras, capturando seus instintos sonoros sem vernizes pra gerar tanto material quanto possível em um período de tempo limitado. Só depois Dukes ia ver o que fazer com esse material.
Dukes colocou um disco de rock progressivo que tinha comprado de Gene Brown, movendo a agulha aparentemente ao acaso, até que um solo de sintetizador o pegou de jeito. Frenética no ritmo e jorrando entusiasmo falso do tecladista que a tocou há décadas, a música não tinha nada do encanto frio do trabalho de Dukes. “Essa melodia, mas com vocal, poderia ser muito legal”, ele disse, cantando sozinho num falsete trêmulo até Gunesberk se juntar. “Você quer foder com isso?”.
Gunesberk aproximou-se do microfone e começou a cantar, adicionando floreios melódicos que não estavam presentes no original. Dukes tocava acordes em seu teclado, uns fraseados obscuros de jazz, sem preocupação com as harmonias que a banda de rock prog estava usando. Ele instruiu Gunesberk a combinar os acordes com sua voz, adicionando camadas de harmonia. Eles trabalharam com vertiginosa eficácia e calma invejável, fugindo a toda velocidade daquela fonte brega.
“Você sabe quando, num disco de Jodeci, as pessoas estão sempre tocando alguma linha louca e completa de sintetizador?”, perguntou Duques, e logo cantou uma imitação de alguns sons mais atraentes de teclado. Gunesberk pegou um pequeno brinquedo Casio que provavelmente tinha sido comprado em uma liquidação de quintal, ignorando os vários sintetizadores caros e poderosos do estúdio. Enquanto Gunesberk tocava, Dukes inclinou-se pra frente, sorriu e deu um rumo no que eles deveriam fazer. Mesmo as brincadeiras de estúdio de Dukes têm um aspecto pós-moderno.
Gunesberk terminou de tocar, e Dukes preencheu com efeitos de áudio, subindo a voz de Gunesberk uma oitava e enchendo-a com um reverb luxuriante. De repente, soou como uma produção de Frank Dukes. Os efeitos deram à voz de Gunesberk uma qualidade etérea e os novos acordes transmitiram a melodia com lenta majestade. Em menos de uma hora, o que começou com um esquecível solo de sintetizador sem precedentes tornou-se algo cristalino. As batidas ainda não estavam no lugar, e provavelmente seriam adicionadas por outro produtor, um dos colaboradores de Dukes ou por seus clientes do Kingsway, dependendo do que ele decidir: se usa a ideia ou se a coloca na biblioteca. Ainda assim, era fácil imaginar a versão final.
Ele delineou outra ideia. Inspirado pelos jogos musicais do iPad de seu filho de três anos, Dukes queria gravar dezenas de loops instrumentais curtos, todos na mesma nota e tempo, mas sem relação alguma. Em teoria, esses loops poderiam ser colocados em qualquer arranjo e ainda ter sentido rítmico e harmônico, produzindo um fluxo quase infinito de combinações que poderiam ser encaixadas em canções. “Quando meu filho entra no estúdio e pergunta o que estou fazendo, eu sempre digo a ele, ‘estou trabalhando'”, disse ele dando uma risada. “Agora, quando ele está jogando estes jogos no iPad, ele está tipo, ‘eu estou trabalhando, pai'”.
Dukes e Gunesberk começaram a gravar loops, usando teclados, percussão de brinquedo, uma garrafa de vinho, uma cadeira reclinável – qualquer coisa e qualquer pessoa ao alcance deles. Gunesberk, cuja voz adorna produções de Duke como “Right Hand”, de Drake, e “Deja Vu”, de Post Malone, fez improvisos imitando Sade, Ray J, Janet Jackson e Thom Yorke, cantando quaisquer sons ao invés de palavras.
Então, Dukes virou-se pra mim: “você sabe um pouco de teoria musical, certo?”. Um pouco surpreso, aproximei-me do teclado e toquei a primeira coisa que me veio à mente, algo pesado e sinistro, com uma linha de baixo descendente, em sol menor. Dukes seguiu, com algumas direções amigáveis mas firmes. Ele gostou da primeira parte, mas o final precisava melhorar. Vacilei um pouco, então Gunesberk entrou e gravou uma versão mais bem acabada da minha ideia, incorporando ajustes de Dukes. “Eu gosto de ter ele por perto, porque ele pode terminar minhas frases musicais”, disse Dukes.
Tirei o time de campo, pra deixar a dupla trabalhar. Juntos, criaram algo que soou como uma colaboração perdida entre Destiny’s Child e o Tangerine Dream. “Isso pode acabar em um disco de Drake”, disse Dukes, enquanto eu reunia minhas coisas. – “Ou pode acabar como nada”.
Na noite seguinte, Dukes saiu da rotina pra assistir a uma sessão de gravação com Safe, um rapper de Toronto de 20 anos de idade, em cujo álbum de estreia Dukes é produtor-executivo. Safe deve seu sucesso em parte a Drake, que o levou a um acordo com a Epic Records. Safe estava trabalhando em um estúdio escasso, no subúrbio de Etobicoke (um dos seis distritos de Toronto), cercado por companheiros da Halal Gang, uma turma na maior parte formada por somalis locais. Eles contavam piadas sobre garotas e o novo filme de Harry Potter, comendo pizza e bebendo Pepsi que ocasionalmente era calibrada com conhaque. Dukes veio armado com duas batidas que evidentemente começaram como jam sessions, como o da noite anterior; cada uma apresentava um trecho do canto alto e afetuoso de Gunesberk. Ele tocou a primeira. Parecia uma versão mais difícil e menos leve do trabalho de Dukes em “Pick Up The Phone”. Os jovens acenaram com a cabeça furiosamente. “Era insano”, Safe disse, teclando ideias em seu telefone.
Dukes assumiu um papel de mentor na Halal Gang, e até por volta das duas e meia da manhã ele ofereceu orientação melódica e lírica pras aquelas músicas em andamento. Ele cantou algumas linhas de rap pra Safe, que incorporou um pouco de gíria de Toronto. Safe entrou na cabine e começou a brincar com a ideia: “Heavy with the wrist motion, working all week / Young nigga, feel like an OG!”.
Dukes e o resto da turma assistiram a Safe da sala de controle, seguindo o rapper. Embora Safe estivesse na sala ao lado, você não podia ouvir sua voz natural, apenas a versão que tinha sido captada pelo microfone, transmitida como eletricidade através de um cabo embutido nas paredes, convertido em um fluxo digital de uns e zeros, recebido por um computador com o Pro Tools, analisado e processado pelo Autotune, e convertido de volta em eletricidade – o som sobrenatural que estava explodindo dos alto-falantes do estúdio junto com a batida, perfeito compasso com os movimentos da boca de Safe. A cena, com suas camadas de mediação tecnológica invisível, seria incrível se não fosse tão comum.
Enquanto eu assistia e escutava, pensei no pintor Chuck Close, que cria retratos em detalhes estranhos, foto-realistas, baseados em imagens capturadas com uma câmera especializada. O retrofotografia começou como uma alternativa barata e acessível à pintura, assim como samplear começou como uma alternativa pra gravar música original. Ao pintar fotografias e gravar samples originais, Close e Dukes criam fac-símiles de fac-símiles. Suas obras são tão abstraídas de uma ideia original que elas se tornam originais novamente. Assim como aquelas batidas hipnóticas que Kool Herc e Grandmaster Flash criaram com duas pickups e um mixer nas suadas pistas de dança do Bronx na década de 1970, ambos, Close e Dukes, trabalham em um loop eterno.