ORNETTE COLEMAN, O JAZZ E A MÚSICA LIVRES

Sempre me disseram que Ornette Coleman era genitor do free jazz por não ter educação musical formal. Mas não lembro de ter lido isso em algum lugar de fato. Foram, talvez, amigos do meu pai em conversas animadas por uísque barato (naquela época, arrumar uísque bom era bem difícil e custoso, coisa de altas rodas apenas). Afinal, educação formal é necessária pra todos os fins?

Bom, se a discussão não levar em conta que existe o talento… sim.

Coleman de fato não teve educação formal. Pra nada. Muito pobre, nasceu no interior do Texas, Esteites, em 9 de março de 1930, e perdeu o pai muito cedo, quando Ornette tinha sete anos. Sua mãe até tentou educá-lo com a firmeza que um pai parecia ser obrigado a ter. Ela era costureira e bastante disciplinadora, forçando os estudos do garoto. Mas não tinha jeito. Coleman se mostrou rebelde, contestador desde cedo.

Ele gazeteava a escola e sumia por semanas. Quando sua mãe descobria, sentava o couro no moleque. Assim foi por anos, pela adolescência.

Coleman, por outro lado, tinha certeza do que queria, desde que viu uma banda tocando em sua escola: ser músico – sem ser dar conta, claro, do quão importante são os estudos pra quem quer levar a profissão a sério.

Mas o menino que não tinha estudo, nem queria estudar, tinha talento. Um baita talento. Faltava um instrumento que despertasse tal virtude.

Ele contou em várias entrevistas como conseguiu seu primeiro saxofone: foi engraxando sapatos por “três ou quatro anos”.

Como a mãe não tinha grana pra aulas de sax, Coleman aprendeu sozinho o instrumento, só de ouvir as músicas do rádio.

É por isso que ele mesmo aponta seu autodidatismo como a peça-chave pra que pudesse, logo a frente, ser um dos expoentes do jazz experimental e livre: “eu podia tocar e soar como Charlie Parker, nota a nota, mas era só pelo aprendizado, porque a partir daí eu tentava descobrir pra onde podia ir”. Era exatamente a base da teoria dos amigos do meu pai.

E resumia sua lógica: “eu nunca soube que era preciso saber música pra tocar, eu achava que todo mundo só ia lá e tocava; ninguém precisa aprender a soletrar pra falar, certo? Você vê um garotinho tendo uma conversa com um adulto, e ele provavelmente não conhece as palavras que está dizendo, mas ele sabe como e quando usá-las, de modo que tenha lógica o que está dizendo. Mas ele não aprendeu necessariamente a ler e escrever. Música é assim. Se você quer tocar ou escrever, então você precisa de informação, mas no fim o resultado é que você está tocando música. Mesmo quando você escreve, é alguém que vai simplesmente tocar. Então, se você quer tocar e esquecer todo o resto, você está tocando tão bem quanto alguém que gastou quatro anos descobrindo como tocar”.

Por um tempo, Coleman tocou com uma banda de RnB nos bares da cidade, o que lhe dava uma grana (que ia toda pra mãe). Mas ele queria inserir nas músicas algo mais moderno e foi mandado embora. Acabou indo pra Los Angeles tentar a sorte e ficou à miséria, passou fome.

Nesse trecho da história é que a porca torce o rabo e embaralha qualquer teoria boba. Coleman arrumou um emprego como ascensorista e durante o trabalho leu muito sobre teoria musical. Ele, de certa forma, estudou. Não de maneira formal, mas estudou sim, e bastante. Ninguém destrói a teoria sem conhecer a teoria.

Enquanto isso, tentava ser ouvido.

Foi pela insistência e pelo talento que mostrava em diversas jams, que conseguiu sua primeira gravação como líder de uma banda, o clássico “Something Else!!!”, de 1958.

Um crítico do New York Times falou sobre o impacto que Coleman deu ao jazz: “antes dele, as pessoas solavam em cima da melodia; se a melodia tivesse ‘x’ compassos, a improvisação duraria ‘x’ compassos e se encaixaria ali, daí Ornette veio nos dizer que não precisávamos fazer daquela forma, nós podíamos fazer de outro jeito, de forma livre; e ele praticamente mostrou uma nova forma de liberdade, libertou os músicos do labirinto da harmonia”.

O crítico do Chicago Tribune, Howard Reich, disse: “com a possível exceção de Miles Davis, Coleman fez mais do que qualquer outra personalidade do jazz no século passado pra mudar o curso da música. Seu conceito de ‘harmolodics’ – que renunciou aos conceitos tradicionais de estrutura musical ocidental – abriu novas perspectivas pro jazz”.

“Harmolodics” é sua teoria que consiste basicamente “na forma científica do som baseada na expressão da emoção humana”. Por isso ele acreditava que pessoas que nunca se viram antes são capazes de tocar música de imediato, sem ensaio, só na base da expressão, do improviso, da emoção. Sua experiência com dois quartetos tocando simultaneamente foi chamada de “free jazz”.

A grande virada de Coleman se deu quando John Lewis, líder do Modern Jazz Quartet, ouviu e se impressionou com sua música “caótica”. Lewis recomendou pra uma série de concertos na Lenox Schoolk Of Jazz, em Massachusetts, em 1959, e dali pra Nova Iorque, onde tudo acontece e onde ele tocou com o baixista Charlie Hadem, o trompetista Don Cherry e o baterista Billy Higgs uma longa e retumbante temporada. Os olhos e ouvidos se voltaram pra aqueles “loucos”, que rasgavam teorias musicais livremente.

“Coleman parecia ignorar as melodias convencionais, com harmonias dissonantes, gritos e grunidos”, diz o artigo sobre seu nome na “Encyclopedia”. “A seção rítmica de Coleman não oferece uma batida convencional, mas opera com tanta liberdade quanto o resto da banda. Assim, Coleman retoma a música afro-americana de raiz, redefinindo o jazz como um esquema musical onde indivíduos têm suas próprias vozes no todo. Pra alguns ouvidos, o resultado soava um caos atonal, mas muitos críticos perceberam que não importa o quão avançado o idioma musical avançado que Coleman usava, sua música sempre evocava aquele blues de cabaré que ele tocava no início da carreira”. Era gênio, mas era visto como fraude por ouvidos preguiçosos.

Mas as experimentações de Coleman não tinham mais freio na importância que adquiriram no meio musical. Ele gravou e lançou e colaborou em dezenas de discos, em mais variadas formas de expressão derivadas do jazz.

Morreu nesse dia 11 de junho de 2015, de parada cardíaca.

A educação musical formal hoje exige aprender com ele, nos livros, nas partituras, nos sons. O improviso e a emoção são significativos, essenciais. Essa é a maior lição. Fim da aula.

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Comentários

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3 comentários

  1. Vale lembrar também que Ornette começou tocando sax-tenor, mas teve o instrumento roubado. As consequências o levaram ao sax-alto, instrumento que melhor desenvolveu desde Charlie Parker. No meio do caminho, também aprendeu violino e trompete, além de dedicar um disco só pro tenor (‘Ornette on Tenor’, de 1962).

    Pouco se menciona, mas além do free-jazz, Ornette também criou uma vertente que ficou conhecida como free-funk, com a banda Prime Time. Discos pancada como Dancing in Your Head (1977) e Of Human Feelings (1979) dão ideia dessa busca bem-sucedida, que antecipou o caminho qualquer só anos depois caras como Miles Davis e Marcus Miller trilharam.

    Enfim, o cara era foda. Foda pra caralho!

    Belo artigo, Fernando.

    Abraço

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