A versatilidade de Ânderson Oliveira é invejável. Ele é editor de um dos sites mais completos e diversos da web musical brasileira, o Passagem De Som (corre pra lá agora!), com entrevistas, notas, artigos e pensatas intrigantes, e ainda encontra tempo pra editar a revista musical e virtual “Som”, que está no número 25, com um trabalho editorial e visual maravilhoso (veja tudo aqui).
Corintiano, carnavalesco, roqueiro, curte música eletrônica, jazz, blues, é rato de shows, Ânderson (o @mundodeandy no Twitter) é o que os jornalistas musicais deveriam ser: inquieto, sem amarras de estilo, disposto a ouvir e ver todo tipo de som, obra e artista.
Nesta edição de “Os Discos Da Vida”, Ânderson mostra quais discos construíram sua personalidade e que sons fizeram a passagem de um fã pra um produtor de conteúdo da mais alta qualidade e relevância.
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Jeff Beck – “There & Back” (1980)
Esse é definitivamente o disco da minha vida. Penso que se Deus tiver uma voz, ela certamente terá a afinação da guitarra desse álbum. É talvez o disco menos badalado da fase fusion da carreira do guitarrista inglês, mas o álbum da discografia que mais profundo bate e mim. Nunca me permiti ouvir esse disco em vão e acredito que toda obra mais profunda tenha uma conotação de refúgio em seu ouvinte. E dentro desse álbum os problemas se afastam, existe uma noite perfeita, olhando os prédios por entre as janelas. “The Pump” segue sendo a música que eu gostaria de verdade que as pessoas ouvissem e lembrassem de mim.
Ouça “The Pump”:
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Grateful Dead – “Blues For Allah” (1975)
Pra quem é um Deadhead, escolher um disco da carreira da banda americana que não faça parte de sua primeira fase é quase um sacrilégio, mas “Blues For Allah” foi meu primeiro contato com Jerry Garcia e foi quando eu entendi o verdadeiro significado da palavra psicodelia. O início do disco, com “Help On The Way”, segue sendo arrebatador até hoje. Dentro desse álbum existe muita coisa perdida que até hoje vou descobrindo, especialmente em sua segunda metade, além da mensagem que devia permear a mente de todos, a de que não importa o que aconteça, a música nunca vai parar.
Ouça “Help On The Way”:
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DJ Patife – “Cool Steps – Drum’n’Bass Grooves” (2001)
Amo música eletrônica e a importância desse disco na minha vida é a mesma pra quem assistiu “Quase Famosos” e viu aquela cena em que o “Bold As Love” do Hendrix é apresentado ao protagonista do filme. Um universo se abriu na minha vida quando ouvi esse disco pela primeira vez. Era o auge do drum and bass no Brasil e caras como Patife e Marky faziam algo realmente único, misturando música brasileira com batidas que pareciam tão díspares. Depois disso se tornou impossível não mergulhar nesse mundo. Mais do que amor por esse disco, eu tenho gratidão. Sem ele eu nunca teria entrado nesse mundo.
Ouça “81 Is The Number”:
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Dimitri From Paris – “After The Playboy Mansion” (2002)
Tenho uma paixão quase doentia por disco music e por quem sabe manipular aquela música tão emotiva com cara de pista de dança. E nisso o francês Dimitri From Paris é, de longe, meu favorito. “After The Playboy Mansion” é a segunda parte de uma trinca de discos gravados na mansão de Hugh Hefner (o dono da marca Playboy) e com um tracklist que vai de Originals a Cerrone, passando por nomes como Imagination e tantos outros mais desconhecidos e que a partir desse disco comecei a pesquisar e aprender. Ouvir música eletrônica é também imaginar e acho que essa foi uma daquelas noites perfeitas de contos de fadas, por isso a segunda metade desse álbum apelidei de “Disco da Ressaca”, já que seu andamento tem um BPM inferior justamente pra justificar a intensidade do primeiro álbum. É um disco que ainda me comove bastante e ainda tenho como sonho ver esse lazarento tocando clássicos como Chic e Ashford & Simpson na pista. E sempre ter a sensação do grande hit do Indeep, de que “Last Night A DJ Saved My Life”.
Ouça “Don’t Leave Me This Way”:
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Edgard Scandurra – “Amigos Invisíveis” (1989)
Eu amo Ira!, de verdade, amo. Edgard Scandurra sempre foi um herói da guitarra pra mim e não há quem mude isso. Aprendi a gostar deles com meu tio, que sempre deu a maior força pra banda, lá apoiando quando ainda tocavam em porões da cidade. E aí entendi meu papel como fã. De estar lá e fazer acontecer. Às vezes, nossa presença, nosso elogio e nosso aplauso podem fazer a diferença pra uma banda. Esse álbum caiu na minha mão pouco tempo depois de seu lançamento. Nele, Edgard toca todos os instrumentos e destoa do repertório da banda, sendo absolutamente mais intimista, mesmo quando não deseja, caso de faixas como “Minha Mente Ainda É A Mesma”. Talvez por isso seja tão importante pra mim, já que tenho sempre a sensação de que é um álbum pra se ouvir sozinho. Ter o LP autografado pelo Edgard e um quadro dele em casa é um dos grandes orgulhos da minha vida. Faixas como “1978” e “Culto De Amor” ainda têm um impacto muito grande em mim, especialmente pelo fato do disco ter sido executado ao vivo pelo Edgard exatamente no dia do meu aniversário, anos e anos depois de seu lançamento. Foi um presente. Quase tive um troço quando ouvi isso ao vivo.
Ouça “Minha Mente Ainda É A Mesma”:
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Pink Floyd – “Animals” (1977)
Existem milhares de motivos pro Pink Floyd ser uma das maiores bandas da minha vida e existem tantos clássicos pra justificar isso que eu perderia a conta, mas as quatro faixas de “Animals” são o ápice disso. Conversam entre si e dizem muito mais do que as letras engajadas do álbum, talvez mais que em “The Wall”. Depois de anos lendo sobre a banda, saber que esse foi provavelmente o único disco que o grupo fez sem maiores atritos também justifica – pra mim – o auge criativo dela. E ter visto esse repertório ao vivo me deixou em choque, especialmente por tudo o que significou a última turnê de Roger Waters aqui. Se alguém conseguiu passar a vida ouvindo isso e nunca entendeu a posição política da banda, recomendo apertar o reset e começar de novo.
Ouça “Dogs”:
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The Manhattan Project – “The Manhattan Project” (1990)
Jazz é outro ponto fraco comigo, mas jazz é diferente. Gerar uma conexão com um disco é um desafio muito maior por sua complexidade e se ater somente aos clássicos de Miles Davis ou John Coltrane é desperdiçar um universo grande demais. Tenho centenas de discos favoritos de jazz, mas esse é diferente. Sempre fui fã de Stanley Clarke e nem sei se ele me perdoaria por não colocar um disco dele aqui entre os dez, mas ele está aqui, ainda que como coadjuvante, já que o supergrupo liderado por Wayne Shorter ainda tem gente como o maravilhoso pianista francês Michel Petrucianni e o batera do Return To Forever, Lenny White. Outro disco que sempre imaginei sendo tocado na madrugada de uma grande metrópole em meio a um grande silêncio. O repertório ainda tem uma versão de “Goodbye Pork Pie Hat”, de Charles Mingus, simplesmente arrebatadora. Anos depois, milagrosamente, consegui o DVD desse show em um mercado de Bauru (!!!) e até hoje assisto nas noites em claro. E, sim, ele foi gravado em um estúdio no topo de um prédio, com apenas as luzes dos outros prédios atrás dos músicos. Eu acredito piamente que escolher esse disco seria prepotência minha, ele me escolheu muito antes.
Ouça “Goodbye Pork Pie Hat”:
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Rory Gallagher – “Photo Finish” (1978)
Gente como a gente. Uma besta incontrolável no palco. O guitarrista do povo! Acho que poderia escolher qualquer álbum de Rory Gallagher pra entrar entre os discos da vida, mas “Photo Finish” foi o primeiro dele que comprei e lembro até hoje de quando ouvi “Shadow Play” pela primeira vez. Ficava me perguntando como um cara desses nunca apareceu em lista dos melhores da história. Mas talvez nem fosse esse seu objetivo, já que sempre ficou claro que a sua música fazia sentindo enquanto tivesse alguém pra ficar olho no olho. Diferente daquela ideia de um blues solitário, Rory Gallagher primava pela intensidade e sempre exerceu na minha vida um papel de “botar o diabo pra correr” quando necessário, tal qual um disco de metal. É barulhento, feito pra se ouvir alto e com rifes matadores em todas as faixas. Não é um disco normal.
Ouça “Shadow Play”:
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Marvin Gaye – “What’s Going On” (1971)
O sonho hippie havia entrado em colapso no início dos anos 1970 e, de repente, surge um álbum que viria a abordar praticamente todos os dramas diários de um ser humano normal. Mesmo sendo um disco da minha vida, do qual conheço cada segundo de sua execução e me emociono muito (do tipo “não consigo terminar a faixa-título sem chorar”), me limito bastante nas audições dele e ouço pouco hoje. Acho a carga emocional desse disco tão angustiante que me sinto aliviado quando termina. Em pouco mais de meia hora de disco você se pergunta o porquê do mundo ser assim. E, infelizmente, soa extremamente atual.
Ouça “What’s Going On”:
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Frank Zappa – “One Size Fits All” (1975)
Provavelmente, houve um dia em que os deuses da música pensaram no artista perfeito e mais insano e de repente Zappa pegou e saiu correndo. Amo Zappa, odeio Zappa. Tudo está ali. “Hot Rats” é outro álbum que me impressiona bastante, mas “One Size Fits All” me assusta, sem exagero. Na época, George Duke, Johnny Watson e Chester Thompson faziam parte da banda, o que é um time de primeira grandeza, do nível All Star Band do Ringo, então praticamente tudo o que Zappa imaginou pra esse disco foi realizado. Até hoje tenho a impressão de que ouvir cada faixa é como entrar em uma máquina de lavar, tamanha intensidade e versatilidade que ele mostra. Não há nada absoluto na carreira de Frank Zappa, inclusive a preferência por esse disco, afinal, a máquina de lavar nunca lava a roupa do mesmo jeito.
Ouça “Inca Road”:
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Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Lo-Fi”.