“Que texto!”: essa é a exclamação mais comum ao ler o Bernardo Oliveira no Matéria, o blogue que ele toca junto com colaboradores de peso (Lucio Branco, Thiago Miazzo e J.-P. Caron) desde 2006.
Ao contrário aqui do Floga-se, que trata discos, músicas e shows com a linguagem “de rua”, “de boteco”, algo propositadamente mais leve (talvez por conta da incapacidade e incompetência pra voos mais altos), o Matéria é muito mais profundo, com análises precisas construídas a partir de um intenso conhecimento musical, histórico e social. Faz diferença pra quem quer se debruçar em recortes precisos de cada obra.
Bernardo Oliveira é professor de Filosofia e atualmente cursa pós-doutorado no IFCS/UFRJ. Talvez o leitor possa achar que é isso que faz a diferença. Faz, mas é a bagagem cultural que serve de ignição pra seu poderio teórico funcionar a favor dos seus textos. E, obviamente, o talento pra transpor tudo em letras e linearidade.
Mas Bernardo é ativo em outras frentes também: foi da banda carioca Zumbi do Mato; já escreveu pro blogue Camarilha dos Quatro, pra edição portuguesa da FACT, publicou artigos sobre música, cinema e cultura em revistas (Filme Cultura), jornal (Diário do Nordeste) e blogues (Blog do IMS, Fita Bruta, +Soma); e agora prepara um livro sobre Tom Zé.
Pra essa edição de “Os Discos da Vida”, Bernardo elucida como formou sua estrada do gosto, do prazer musical, e acrescenta nos textos um tanto da habilidade que se encontra no Matéria. No final, é provável que você exclame: “que lista!”.
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BERNARDO OLIVEIRA
“As ausências criminosas ficam por conta de Tim Maia, Os Mutantes e Jorge Ben — sem dúvida, os artistas que mais escutei até hoje —, além dos grandes iconoclastas da música brasileira (Tom Zé, Mautner, Candeia, Itamar, Arrigo), do jazz (Ellington, Miles, Coltrane, Monk, Tristano, Coleman), do metal (Metallica, Slayer), do samba (Elza, Fundo de Quintal), do rock inglês (Beatles, Stones, Who, Bowie), da música africana (Poly-Rythmo, Fela Kuti, Geraldo Pino, Franco, Victor Uwaifo), de todo o rock/folk/soul/funk/punk/nowave norte-americano, Beefheart/Zappa, os minimalistas, a música caribenha, iraniana, mais recentemente a trilha-sonora do filme Latcho Drom… Preferi dividir a lista em dois momentos: primeiro, grandes discos com forte lastro afetivo; depois, discos que remetem à formação de interesses que hoje norteiam meus gostos, pesquisas etc. Cortando todos os dedos possíveis, ficaram dez”.
Led Zeppelin – “Physical Graffiti” (1975)
Em 1983, meu pai foi trabalhar no Museu Histórico Nacional do Rio. Na sala que ocuparia pelos próximos anos, encontrou uma sacola abandonada, abarrotada de discos e levou pra casa. Com a campanha épica do Flamengo e a “tragédia do Sarriá”, esta sacola foi um marco. Eram cerca de dez a doze discos importados, todos comprados na época de lançamento. Os vinis eram grossos, pesados; as capas e encartes exalavam um cheiro forte, como se fossem compostos por uma química alienígena. Me lembro claramente de “Greatest Hits” (Alice Cooper), “Relayer” (Yes), “Smash Hits” (Jimi Hendrix), “No Mistery” (Return To Forever), “Goats Head Soup” (Stones), “Tommy” (The Who, o duplo, de capa preta); discos que, ao longo da vida, vendi, troquei… Paciência. Não sei exatamente o porquê, mas meu primeiro impulso foi agarrar “o disco da janelinha” e colocá-lo na vitrola. A capa de Maurice Tate era intrigante — criada a partir de uma foto tirada de um edifício em Saint Mark’s Place (NY) — e continha um forte apelo pro olhar pré-adolescente. Nas janelinhas vazadas, entreviam-se as figuras engraçadas impressas no encarte. Ao invertê-lo, podia-se ler, cada letra em uma janelinha: “Physical Graffiti”. E, então, “Custard Pie” começa a tocar em alto e bom som. Imagino que pra minha mãe foi como se uma manada em fuga atravessasse a sala. Até aquele momento, os sons que haviam rolado na casa se resumiam basicamente à música popular brasileira (Caetano, Gil, Donato, Milton), samba (Paulinho da Viola, Candeia), música latina (Piazzola, Grupo Água), um pouco de jazz, chorinho. E, então, foi como se rachasse o teto sob nossas cabeças. Epifanias sonoras na sequência formada por “Custard Pie”, “The Rover” e “In My Time Of Dying”, faixas que ouço até hoje com prazer quase patológico. Este não é só um dos “discos da minha vida”, mas o melhor disco do Zepellin. Talvez por reunir de forma mais equilibrada a contribuição dos quatro membros. Todos estão no auge da performance e da criatividade. Até John Paul Jones solta a funkeira em “Trampled Under Foot”. A participação de Ian Stewart em “Boogie With Stu” também é digna de nota. Mas quem dá o tom do disco porém é John Henry Bonham. Abstenho-me de comentar o que ele faz em “In My Time Of Dying”, talvez a performance de bateria mais impressionante da história do rock. Em “Houses Of The Holy”, Plant dá a senha: “Let the music be your master”. Pois este episódio marcou o exato momento em que, pra mim, a música rivalizou definitivamente com o futebol. E, sobretudo, indicou aquilo que na expressão musical constituiu o elemento que mais me chama a atenção: o peso, as variações, a vibração, o vigor do RITMO. É o ritmo, inclusive, que me possibilitará, mais tarde, criar um distanciamento das formas de expressão consagradas da linguagem musical e abraçar o SOM enquanto uma questão mais ampla.
Ouça “Sick Again”:
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Ella Fitzgerald – “Ella Fitzgerald Sings The Cole Porter Songbook” (1956)
Gravado em fevereiro e março de 1956, “Ella Fitzgerald Sings The Cole Porter Songbook” é um divisor de águas em pelo menos alguns aspectos. Representa uma guinada na carreira de Ella Fitzgerald, que almejava ampliar seu trabalho para além do bebop e buscar novos públicos. Marca o advento da Verve Records, uma das gravadoras mais importantes da história do jazz, bem como sua antológica série de songbooks com grandes compositores americanos como Ellington, Gershwin, Berlin, entre outros. Além disso, é um disco magnífico! Da velocidade vertiginosa do bebop pra performance standard dos songbooks, o canto de Ella Fitzgerald se alterou em uma direção apolínea: seu timbre se tornou mais macio, mantendo contudo a força robusta do grave; sua dicção ficou ainda mais clara, apresentando o mais límpida e cristalinamente possível cada articulação das sílabas e da melodia, cada modulação harmônica, cada ideia que brota dos versos precisos de Cole Porter. Pra mim, esse disco representou uma descoberta em muitos sentidos. A descoberta das canções de Cole Porter (a malícia, a sagacidade, a beleza). A percepção do problema da canção a partir do nexo preciso entre palavra e melodia. O jazz orquestral, através dos arranjos old fashioned de Buddy Bregman. Last but not least, Ella Fitzgerald, a grande voz.
Ouça “Love For Sale”:
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Cartola – “Cartola” (1974)
Combinação de retomada e corolário de uma carreira repleta de idas e vindas, o primeiro disco de Cartola foi gravado quando o compositor já tinha 66 anos. Produzido por J. C. Bozelli (o popular “Pelão”), com arranjos de Horondino José da Silva (o popular “Dino 7 Cordas”), “Cartola” é, com o “Songbook” de Cole Porter, minhas duas referências de precisão e excelência quando assunto é “canção”. Fundador do Bloco dos Arengueiros, um dos núcleos que contribuíram pra fundar a Estação Primeira de Mangueira, compositor registrado por grandes nomes da era do rádio (Mario Reis, Chico Alves), Cartola levou pro disco uma combinação magistral de canções antigas — “Quem Me Vê Sorrindo”, parceria com Carlos Cachaça, primeiro registro da voz de Cartola pro disco “Native Brazilian Music”, em 1942 — com outras em parceria com compositores jovens na época, como Dalmo Castello (“Disfarça E Chora” e “Corra E Olhe O Céu”). O time que acompanha o compositor é notável: além do gênio de Dino 7 Cordas, Canhoto no Cavaquinho, Gilberto D’Ávila e Jorginho do Pandeiro nos pandeiros e percussões, Luna no tamborim, Marçal na cuíca e Meira ao violão. Um disco perfeito, simples assim.
Ouça “Tive Sim”:
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João Gilberto – “João Gilberto” (1973)
Nítida lembrança musical da infância: eu me perguntando porque o cantor cantava daquela forma engraçada, como se a boca estivesse seca, com uma dicção explicadinha, entoando uma canção de ninar. Mais tarde, munido de uma outra percepção da música, pude perceber aquilo que, volta e meia, já se diz por aí: que não existiu bossa nova propriamente, que, como diz Tom Zé, “a grande gema, a grande joia” foi João Gilberto. O que ele teria feito é motivo de debate. Pra maioria ele teria passado a régua na canção brasileira, atualizando-a pra amoldar-se a uma nova conjuntura, representando, assim, a modernidade da canção brasileira. Esta não é bem a interpretação que mais me agrada — afinal, modernos sempre formos, seja com Villa-Lobos ou Radamés Gnatalli, seja com Jorge Mautner ou Marlene. O que João fez foi criar uma forma singular — e, em certa medida, inexplicável — de interpretar canções. Pouco mais de quinze anos após seu aparecimento, lançou esse disco homônimo que abre com uma versão magistral pra “Águas De Março”, que abraça Gil e Caetano (“Eu Vim Da Bahia” e “Avarandado”, respectivamente), que investe em composições próprias (“Undiú” e “Valsa (Como São Lindos Os Yoguis)”), que retoma clássicos do cancioneiro brasileiro como “Na Baixa Do Sapateiro” (Ary Barroso) e “Izaura” (Roberto Roberti e Herivelto Martins) e transforma “É Preciso Perdoar”, de Alcivando Luz e Carlos Coqueijo, em um mantra sublime. Com produção de Wendy Carlos, e Sonny Carr na bateria, João Gilberto ensina que a aparência e rigor não se excluem.
Ouça “Águas De Março”:
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Novos Baianos – “Novos Baianos FC” (1973)
Isso é samba? Isso é rock? Isso é canção, é bossa? É futebol? É poesia concreta? É poesia-moleque? “Novos Baianos FC” é um alienígena em seu próprio contexto. Alguma canção regravada por João Gilberto ficou melhor na interpretação de outro artista? “Impossível”, eu diria antes de topar com “Novos Baianos FC”. A versão de “O Samba Da Minha Terra”, de Caymmi, é sem dúvida mais arriscada, precisa, desafiante e contundente que a de João. Ainda que este seja um feito notável, o disco está longe de se resumir a ele. As canções são estranhas, assimétricas. Os versos não acabam onde “deveriam”, nem as estrofes. Às vezes, parece que a letra da música sai pra vadiar por aí com a melodia… O instrumental é pesado, composto por uma profusão de cordas: violão, bandolim, guitarra elétrica, cavaquinho. A percussão é efusiva. As letras são dinâmicas, coloquiais e misteriosas ao mesmo tempo, remetendo a uma certa infância das palavras que se dá através do balbucio canábico, do jogo naïve com as sílabas (“qui qui qui qui, não é qui qui qui…”) Se é verdade que João Gilberto trouxe a modernidade, então os Novos Baianos trouxeram o futuro longínquo e além.
Ouça “O Samba Da Minha Terra”:
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Charles Mingus – “Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus” (1963)
Uma outra cena de família: estou na casa de meu tio jazzófilo, em São Paulo, com não mais do que dezessete anos. Ao redor da mesa, amigos jazzófilos aguardam pra exibição do documentário “Charlie Mingus 1968”, dirigido por Thomas Reichman. O filme começa. Logo no início, o trecho em que Mingus improvisa ao contrabaixo é recebido com entusiasmo pela pequena plateia. No entanto, a música não retornará. A série de acontecimentos que se sucedem funciona como um banho de água fria. Mingus apresenta seu apartamento, um loft indescritivelmente entulhado de coisas, um verdadeiro caos. Ele saca uma espingarda, dá um tiro pro teto, parte do reboco desaba. Se não me engano, algo é dito acerca do seu vício em comprimidos ou sobre algumas agulhas hipodérmicas… Depois, Mingus é despejado, a polícia na porta de seu apartamento, chora diante das câmeras. Estamos no emblemático ano de 1968, em plena luta pelos direitos civis. A expectativa pela música se transforma em decepção: como poderia viver o ídolo em meio a tamanha instabilidade? Nesse exato momento, Mingus nasceu como um herói. Escutar “Mingus Mingus Mingus Mingus Mingus” no fone de ouvido foi o complemento que faltava, a polifonia, o swing veloz, o clima de festa, os gritos durante a gravação, a mistura do tradicional com o avant-garde, New Orleans e Debussy. Destaque pra big band que gravou tudo em dois dias, formada por nomes como Charlie Mariano, Eric Dolphy, Dannie Richmond, Jaki Byard, Booker Ervin, entre outros. Um disco que se destaca em uma discografia repleta de obras-primas — tais como “Mingus Ah Um”, “Pithecanthropus Erectus”, “The Black Saint And The Sinner Lady”, “Pre Bird”, “The Clown”, “Oh Yeah”, “Tijuana Moods” e mais.
Ouça “Hora Decubitus”:
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Public Enemy – “Fear Of A Black Planet” (1990)
No Rio de Janeiro da virada dos 80 pros 90, costumava frequentar uma locadora de CDs no bairro carioca da Tijuca. Descobri muita coisa por lá, de Zappa a Lee Perry, de Aphex Twin aos discos do Iggy e dos Ramones dos anos 70, muita música eletrônica… Mas o disco que causou rebuliço nessa leva foi “Fear Of A Black Planet”. Eu gostava de Beastie Boys e Run DMC e via os clipes do Public Enemy com simpatia, mas não era um entusiasta do rap. Tinha acabado de conhecer “Fight The Power” no filme de Spike Lee, “Do The Right Thing”, exibido no Festival do Rio de 89 (se não me engano). Aquilo foi uma revelação. Aluguei o CD e, logo nos primeiros minutos, me surpreendi com um beat agressivamente suingado, ruidoso, sujo: “Brothers Gonna Work It Out”. Conforme o disco rolava, impunha-se o método de composição utilizado pelo The Bomb Squad: uma sonoridade saturada, elaborada através da superposição vertiginosa de camadas e camadas de samplers, ruídos, comerciais televisivos, auto-referências, etc.. As batidas lembravam mais as síncopes de James Brown e do P-Funk, do que a regularidade da levada soul/disco. Chuck D se revelou o maior rapper de todos os tempos, flow impecável, timbre insubstituível e suingue. A filosofia do grupo constitui um capítulo à parte, convocando a comunidade afro-americana a se organizar e tomar o poder, através do sarcasmo estampado em letras como “Burn Hollywood Burn”, “911 Is A Joke”, “Welcome To The Terrordrome”. No mínimo, um disco incômodo.
Ouça: “Brothers Gana Work It Out”:
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Karlheinz Stockhausen – “Gesang Der Jünglinge – Kontakte” (1963)
Criada entre 54 e 56, “Gesang Der Jünglinge” é talvez a primeira grande obra de Stockhausen, responsável por introduzir a música mundial em outro mundo, obscuro e desconhecido. Composta pra fita magnética e cinco autofalantes, foi primeiramente recusada pelo inconveniente de obrigar o transporte a uma igreja de caixas adequadas pra sua emissão. Católico inveterado, Stockhausen a transformou então em uma obra religiosa não-litúrgica. A ideia: fundir e combinar o som da voz humana com sons gerados eletronicamente. Trata-se da primeira ocorrência do “serialismo total” desenvolvido por Stockhausen, através do qual ele pretendia emancipar as séries, prevendo a possibilidade de criar padrões de manipulação de timbre, altura e intensidade, incorporando-os à composição. Não se trata aqui de fazer uma análise da obra — já tentei uma vez aqui — mas de relatar um fato. Na época em que pude escutá-la, ainda na biblioteca do ICBA no Rio de Janeiro, “Gesang Der Jünglinge” me causou espanto e incômodo como até então nenhuma outra música tinha causado. Até experiências consideradas mais radicais que as de Stockhausen — como a “música estocástica” de Xenakis, por exemplo — não me soaram tão radicais e, em um primeiro momento, “gratuitas”. Sim, desprovido de uma escuta capaz de decodificar a estrutura da obra, me sentia mal por não conseguir penetrar no “para quê” daquela sucessão de sons que eu considerava “não-musicais”, como vozes infantis distorcidas, graves tenebrosos, silêncios prolongados. Aos poucos, através de audições que misturavam implicância e fascínio, percebi que a obra de Stockhausen seguia um caminho completamente diverso daquele que eu supunha ser o da “música”. Por vias tortas, Stockhausen ensina que música é uma palavra pretensiosa, um preconceito do corpo, um hábito.
Ouça “Gesang Der Jünglinge”:
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The Congos – “Heart Of The Congos” (1977)
Por que esta e não alguma outra obra-prima de Sylvan Morris, King Tubby, Philip Smart, entre outros tantos engenheiros geniais na seara do dub? Por que logo este disco, aclamado e sobre o qual muitos já escreveram? Por que não outro do mesmo Lee Perry? Porque além de flagrar o produtor em grande fase, ainda conta com a contribuição das canções compostas por Cedric Myton e Roy “Ashanti” Johnson, responsáveis pelo maior grupo vocal da Jamaica, The Congos. Revestida por uma grossa camada de efeitos (phase-shifting), as dez faixas de “Heart Of The Congos” já foram classificadas como “aquáticas”, e demonstram uma visão particular do dub. Ao invés de operar por subtração, Perry trabalha por justaposição e sobreposição de elementos os mais diversos, conferindo a cada um deles uma timbragem específica através da manipulação da mesa de som. Seu método de produção inclui estratégias que trabalham diretamente com o acaso, de modo a impregnar as gravações de uma forte instabilidade. Este aspecto já estranho por si só, é realçado pela onipresença silenciosa do ruído de fita ao fundo. A instrumentação é conduzida pela cozinha pesada das lendas Boris Gardiner e Sly Dunbar, pelo piano de Keith Stewart, o backing vocals do The Meditations. A música é original, produto da mistura de cantos Rasta, nyabinghi, hinos protestantes, soul music etc. “Heart Of The Congos” marca um segundo momento do Black Ark, após um período em que o estúdio editou sucessos pela Island Records, fazendo de Lee Perry um artista seguro o suficiente pra continuar desenvolvendo sua própria sonoridade.
Ouça “Open Up the Gate”:
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Hermano Vianna, Beto Villares (org.) – “Música Do Brasil” (2000)
Entre maio de 98 e janeiro de 99, uma equipe liderada por Hermano Vianna e Beto Villares viajou por todo país elaborando um novo mapa musical. O resultado foram horas de filmagem, inúmeras fotos e oitenta e dois registros sonoros, entre carimbós, cocos, marujadas, maracatus, tambor de crioula e outros ritmos, festas e cerimônias. Ainda que inspiradas nos trabalhos de Mario de Andrade, Marcus Pereira e dos “Documentos Sonoros do Folclore Brasileiro” (Funarte), as gravações de “Música Do Brasil” inverteram a premissa cara aos estudos folclóricos brasileiros. Em substituição à preocupação de salvaguardar culturas em supostas vias de extinção, Vianna e sua equipe flagraram o retrato complexo de uma abundância, registrando a graça imprevisível das diversas manifestações musicais do país. Em “Música Do Brasil”, o registro de campo já não opera a cristalização do fenômeno, mas descreve a rota de um acontecimento em pleno movimento. Antes de perseguir uma unidade possível dentro da diversidade, “Música Do Brasil” expõe uma intensa mobilidade criativa, a pré-disposição pra brincadeira, pra festa, o bom humor etc. Isto fica evidente na energia espontânea de faixas como “Lourinha Americana”, do Mestre Laurentino; no samba de roda eletrificado do Grupo Raízes do Samba de São Brás; na levada cativante das Baianas Mensageiras de Santa Luzia; no samba batucado da Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto; na Zambiapunga do Taperoá (e sua percussão de enxadas); nas Brincantes do Siriri de Varginha; etc. Silenciosamente revolucionário.
Ouça “Boa Tarde Povo” (Baianas Mensageiras de Santa Luzia):
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Na edição anterior, “Os Discos da Vida: All Folks Fest”.
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