A Mansarda Records completa em 2017 cinco anos de batalha sonora e simbólica. Não é fácil tocar um selo de música não-comercial, não-radiofônica, no sentido oposto do que os ouvidos das massas desejam. Gustavo Bode e Diego Dias são os generais dessa luta, com estratégias bem definidas de embate – e a principal delas provavelmente é: faça a música do seu jeito e veja o que acontece.
Pois bem, a Mansarda Records, de Porto Alegre, atingiu o mundo com mais de setenta lançamentos (uma média de quatorze por ano!), tendo como armas sônicas o improviso livre, o jazz, a eletrônica, a experimentação de sons e formatos. Os trios, duos, quartetos e solos proliferam nas criações de Diego Dias, Gustavo Bode, Michel Munhoz, Arthur Lacerda, Cadu Tenório, Guilherme Darisbo, Al Sand, Israel Savaris, Igor Dornelles, Renato Rieger, Nanã Parú, Marcelo Armani, Marcio Gibson, Peter Gossweiler, Rômulo Alexis, Leonardo Estevão, Moisés Rodrigues etc., assinando com seus nomes ou com nomes como Bramir, Máquina Overlock, Vó Sibutra e também coloque-se etecetera aí.
Tudo disponibilizado de maneira profissional e detalhada no site do selo (clique aqui). O Floga-se até tenta acompanhar tudo e publicar na medida que os discos são lançados (há bastante coisa aqui no site). É deliciosamente difícil.
Diego Dias, um dos coordenadores de tudo (com Gustavo Bode), parece estar ciente de que possui um brinquedo precioso em mãos, pra se divertir (isso é evidente) e oferecer ao Brasil um recorte da música que é normalmente renegada ao nada, o que é um impulso pra ele continuar movimentando a brincadeira.
Nessa edição especial de Os Discos Da Vida, também como celebração dos cinco anos do combativo selo porto-alegrense, Dias lista alguns dos discos mais importantes que moldaram sua forma de ver, ouvir e compreender a música. Os textos são deliciosos e dão uma clara ideia de como foi sua evolução como pessoa pra chegar a ser um dos artistas mais aguerridos na movimentação desse estrato da música (torta, experimental, subterrânea) brasileira.
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DIEGO DIAS
“Fazer uma lista de dez discos não é fácil. Começar um texto com um lugar-comum desses também não é, mas ajuda com este pânico inicial da folha em branco. A primeira coisa que devo dizer, então, é que pra fazer esta lista, que deixa quase tudo de fora, eu segui alguns parâmetros que elegi, como segue:
1 – Deve ser um disco que me acompanha até hoje, sendo ouvido com frequência ao longo dos anos. Isto serviu pra poder excluir (sim, são apenas DEZ) aqueles discos que foram marcos na adolescência, mas que hoje estão na prateleira da doce nostalgia;
2 – Deve ser um disco que mudou minha forma de escutar música. Não necessariamente um pontapé inicial, mas algo que alterou minha percepção das coisas como um todo, não apenas em relação à música em si;
3 – Considerando que coleciono discos há vinte e um anos (tenho 34 neste momento), pensei que sete anos de audição é o tempo mínimo que devo considerar pra figurar numa lista de DISCOS DA VIDA, o que excluiu muitos favoritos nem tão recentes mas sem a ‘maioridade’ que estipulei.
A relação segue o critério cronológico, ou seja, obedece a ordem em que fui conhecendo-os, desde a infância até a idade adulta. Tenha o leitor em mente que a lista começa em 1989 e o acesso à Internet é coisa do século XXI, o que justifica alguns desconhecimentos. Só se ouvia o disco se alguém tivesse ou você comprasse, ou ainda, alguma boa rádio – e existiam – tocasse na íntegra.
Muitas coisas ficaram de fora. Discos que fazem parte de minha cosmogonia, como ‘Das Barrancas Do Rio Gavião’ (1999), de Elomar, não estão aqui. O álbum do Quarteto Novo, que é uma pedra de toque também, não apareceu. Discos que esculpiram meu mundo, mas não o criaram. O petardo que é ‘Experience The Magic’ (1993), do Borbetomagus, também não deu as caras. É um mundo novo, mas não é ‘da vida’, pois ouvi somente duas vezes e não retornei mais (embora colecione os registros do grupo). As duas gravações das “Goldberg Variations” de Bach (1956), com Glenn Gould, soaram perfeitas em muitas manhãs, assim como muitos outros discos de música erudita, mas não entraram aqui. A beleza indizível de Vashti Bunyan e seu ‘Just Another Diamond Day’ (1970) e a pujança de ‘Horses’ (1975), da Patti Smtih, são jovens demais pro padrão (sete anos) da lista, assim como aquela perfeição que é o ‘Easter Everywhere’ (1967), do 13th Floor Elevators, que considero o Grande Disco Perdido de minha juventude.
Listas são injustas!”
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Belchior – “Alucinação” (1976)
Minha lembrança mais tenra de música não infantil. Eu devia ter uns seis anos, e estava sempre ouvindo música. E daí tem a fértil e proverbial “pilha de discos da família”. Escutei este a vida inteira e lembro do júbilo quando, aos 15 anos, achei novamente uma cópia numa loja num centro comercial, estabelecimento que deve ter durado uns dois meses. Claro, a edição na qual eu conheci se perdeu nas também proverbiais limpezas de fim de ano e pessoas que vem e vão. Ouvi noite adentro, e cada vez me dizendo mais coisas. Comentar este clássico maior da nossa música é ser redundante. Na infância, lembro que a música era boa de ouvir e que eu estava tendo uma noção de que as canções podem ter letras sérias, existenciais, embora eu não entendesse as coisas muito bem. O que este disco diz pra quem está crescendo (“mas não se preocupe meu amigo / com os pavores que eu lhe digo / isto é somente uma canção / a vida é diferente, quer dizer / a vida é muito pior”) e todo aquele anúncio de uma outra vida possível (“e precisamos todos rejuvenescer”, “como nossos pais”, “suportar o dia-a-dia”, “experiência com coisas reais”, a lista não termina!) e que deve ser construída (“o passado é uma roupa que não nos serve mais”) é algo a ser estudado. Quando adulto, porém nunca concluído, penso que “Sempre é dia de ironia no meu coração” é verso da ordem do tatuável. Todo meu interesse em letras de músicas vem daí, o que ficará patente ao longo desta lista. Disco fundador!
Ouça “Velha Roupa Colorida”:
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Nick Cave & The Bad Seeds – “Tender Prey” (1988)
Sim, ainda a pilha de discos e a tenra infância. Gostava daquela capa preta com letras vermelhas e a pose solene/enfadado (embora não conhecesse esses adjetivos na época) do cara na capa. Ouvi-lo foi um choque. Era diferente! A voz que abria o disco era modificada… Era uma música pulsante, tensa, que se repetia febrilmente ao final. Lembro que o resto do disco não tinha todo este apelo pra mim (na época, notem bem!), mas de qualquer forma hoje tenho todos os discos do Cave e gosto muito do que ele faz. “The Boatman’s Call” e “No More Shall We Part” foram obras muito importantes ao longo desse processo que é viver… Discos que rodaram muito por aqui. Contudo, listo o “Tender Prey” pois foi um álbum que me mostrou pela primeira vez que a música pode ser “estranha”, – claro, além do termo ser controverso, não é tão estranho pra quem gosta de experimentalismo, hoje, mas, entendamos… – que pode romper com o que eu tinha por ideia de “canção”. Hoje, “Slowly Goes The Night” é um hino, assim como “Watching Alice”. Gostei muito quando pude conhecer versões alternativas pra algumas canções deste álbum no box “B-Sides & Rarities” (2005), e agradeço que a faixa que abre o disco tornou-se uma perene no repertório dele ainda hoje. Meu gosto pela escuridão e a melancolia vem daí!
Ouça “Slowly Goes The Night”:
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Pink Floyd – “Atom Heart Mother” (1970)
Aí eu já tinha uns treze anos e ouvia muito rock dos anos 60, principalmente The Doors. O primeiro disco que comprei foi a trilha sonora do filme (de Oliver Stone, você assistiu…). Não preciso dizer sobre o preço de um CD em 1995. Era difícil. Ali estavam as músicas que eu ouvia na rádio, inclusive as mais longas que quase nunca tocavam, como “The End” e “When The Music Is Over”, até que um amigo disse sobre o “Atom Heart Mother” do Pink Floyd. Eu conhecia o “The Wall” e o “The Dark Side Of The Moon”, e também o “Piper At The Gates Of Dawn” (este último, tinha ouvido pela rádio – boa época, concorda?), mas não tinha ideia do que era aquele disco. Lembro até hoje do dia. Pus pra tocar e fiquei ouvindo. Orquestra? Violino? O que está acontecendo? Coral? Ali, nascia – mais uma vez – uma nova dimensão das coisas pra mim. É um disco que volta todo tempo pro player. Admiro muito o “Piper…” e o “Dark Side…”, mas este “Atom…” é o que que mais retorna. E aquele Lado B? Que belas tristezas! E a faixa que fecha o disco? Paremos um minuto! Com a avalanche de coisas novas, tendemos a nos afastar dos clássicos. SEM perdão pra meu trocadilho: ouça esta vaca sagrada novamente!
Ouça “Alan’s Psychedelic Breakfast”:
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Van Morrison – “Astral Weeks” (1968)
Esta vida de “ter-que-ter” o disco pra poder ouvi-lo cria algumas histórias. Lembro que fui a uma clássica loja da cidade trocar um LP duplo que tinha encontrado muito barato num sebo – era do Dire Straits, que nunca ouvi, mas parecia valer alguma coisa – por algo de meu interesse. Peguei o “Master Of Reality”, do Black Sabbath, e propus a troca. O dono da loja, na sua perene posição, bradou: “tu quer me destruir!”. Insisti um pouco e ali deu-se algo de uma beleza ímpar. Ele pegou o “Astral Weeks”, do Van Morrison, e disse: “Leva. Se tu não gostar, eu te entrego o Sabbath”. Acredito que vender discos é isto. Que obra. Que letras! Algumas boas garrafas foram sorvidas em torno dele. Quando penso no termo “transcender”, eu lembro deste álbum em primeiro lugar. Rememoro o prazer que foi ouvir a faixa-título e descobrir que era aquela canção desconhecida que tinha ouvido no rádio há tempos atrás. O dono de loja é meu amigo até hoje, vinte anos depois, e ainda comentamos este momento de verdadeira educação que me proporcionara. Eu não poderia ser mais grato ao seu tino e mau-humor. Discos indeléveis, discos da vida!
Ouça “Astral Weeks”:
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John Coltrane – “A Love Supreme” (1965)
Sim. A ruptura definitiva. Estava mergulhado no rock progressivo e no lado mais jazz do rock (Zappa, progressivos com sopros, como Out Of Focus) e conhecia Coltrane apenas de nome, pois no filme do Doors (já falei dele…) Manzarek o menciona. Havia também numa antiga revista Bizz matéria sobre a caixa “Heavyweight Champion”. Num belo dia (tinha eu quinze anos!), a rádio Unisinos FM, no programa “Lado 1” – especializado em tocar discos na íntegra – imaginem a maravilha, em 1997! – trouxe este álbum. Ouvi de novo. E de novo. E mais. E decidi que era aquilo que queria ouvir pelo resto da vida. Foi como se o mundo finalmente tivesse se tornado visível. Platão sorri. A paixão por Coltrane é vista em minha coleção. Tenho todos em CD e muitos LPS, alguns bem raros. Considero, sempre particular e pessoalmente, a caixa com quatro CDs “Complete Live At The Village Vanguard”, o pico final do jazz. Depois é o free, que é jazz, mas nunca mais o mesmo. Coltrane é monumental. Paro, pois não sei prosseguir!
Ouça “Part 2: Resolution”:
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Blind Gary Davis – “Harlem Street Singer” (1960)
O disco mais difícil de eleger nesta lista. Certamente por isto o texto menciona outros dois. Eu sabia, de forma um tanto difusa, que havia um blues acústico, “mal gravado”, que me atrairia certamente. Aquilo que era uma das bases do Bob Dylan acústico que tanto cultuei durante a vida. Um dia encontrei o “King Of The Delta Blues Singers”, de Robert Johnson (você ouviu…) numa loja e comprei. Lembro do comentário surpreso de meu pai, acostumado com tudo, menos aquilo. Foi um disco que ressoou em muitas noites frias dali em diante. Aquela voz, aquela conexão gélida e real com o desconhecido. Apavorante. Até que… Son House. Sim, Son é minha epítome do blues e a ele todas as honras. As “Rochester Sessions” são parada obrigatória e o duplo de 1965 “Father Of The Delta Blues” são um patrimônio que me levam às lágrimas. Toca fixo, canta direto. Recomendo vivamente. “Death Letter Blues”! Volte a ser o mesmo depois desta canção… Você sabe que não pode! Mas por que, então, “Harlem Street Singer”, de Reverend Gary Davis, neste disco assinando como Blind Gary Davis? Porque ali tem um amálgama. Tem aquilo que é intenso, aquilo que é real e frio, e tem o fervor ao qual só o verdadeiro delírio te leva. E era inesperado! É cantável, é uma música que ri e chora (como é todo blues que estes caras fizeram) e me faz acreditar no que é etéreo, não-físico, pós-físico. Ouvir este disco é um ritual e uma celebração e me faz urrar “Aleluia!” cada vez que Davis também o faz, esquecido eu das implicações disto. Pra ouvir com um coração cheio de bravura e pecados!
Ouça “Samson And Delilah”:
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Tom Waits – “Small Change” (1976)
Outro artista que coleciono os álbuns. O primeiro disco de Waits que ouvi foi “Blue Valentines” e ali estava muito do que queria escutar. A faixa-título é um marco: a voz mítica, aquela guitarra econômica, quase vazia, e a letra vinda de um coração totalmente despedaçado. Porém, foi com “Small Change” que fiquei boquiaberto. Eu poderia escrever uma crônica sobre cada canção. Porém, serei breve. Além daqueles belíssimos desesperos que esse disco oferece, preciso citar “Step Right Up” (poesia beat instantânea, que depois pude abeberar-me em largos goles no “Nighthawks At The Diner”, disco anterior, de 1975), “Pasties And A G-String” (mais, mais!) e a grande revelação que foi ouvir a faixa-título. Aquele saxofone tenor, a letra se desenvolvendo… E só. Sem qualquer outro elemento musical além do silêncio. Daquelas de dizer: “queria eu ter feito isto!”. Lieder do século XX!
Ouça “Step Right Up”:
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Captain Beefheart – “Trout Mask Replica” (1969)
Mais um chute no estado das coisas. Eu ouvia muito Zappa (os Ratos Quentes deram lugar à Truta nesta lista) e claro que já tinha ouvido o Capitão por lá. Até que, certa feita, pelas lojas, ouço: “tu que gosta de música estranha, leva isso daqui”. De certa forma eu sabia o que viria, mas não que seria daquela forma. Uma implosão. E dos destroços emerge algo feroz, vivo, confuso, caótico, móvel. Como é belo ouvir algo e dali brotar um novo mundo, mais uma vez! Surrealismo, ruído, rock, blues, música livre. Preciso disto. Ainda estou absorvendo o que acontece por ali. É enérgico, denso, nuclear. Um moto perpétuo de música!
Ouça “Moonlight On Vermont”:
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Anthony Braxton – “For Alto” (1969)
Com toda paixão pelo jazz e pelo saxofone, sempre quis ouvir um disco solo deste instrumento. Eu tinha um CD chamado “Music Matador”, do Eric Dolphy, e a última faixa era um solo de sax alto, chamada “Love Me”. Estupendo, mas eu queria um álbum inteiro. Como quem tem amigos com bons ouvidos tem muito, recebi de uma dessas pessoas as quais sou eternamente grato o “For Alto”, do Braxton, que eu conhecia só de nome, pois discos dele por aqui nem pensar. Bem, os segundos iniciais atiçavam a curiosidade, mas, com o atropelamento que foi “To Composer John Cage”, falo de outra supernova. Uma música que resvala, grita, propõe. Wail, honkers! Com cinco minutos de faixa, estava eu num mundo sem volta. Um álbum duplo de saxofone solo em 1968! Qual a medida de minha admiração por Braxton? Sou imensamente feliz por ter visto dois shows dele em São Paulo em 2015 e ter podido trocar algumas palavras com este gênio. Busquei seus álbuns de forma compulsiva por anos, até que a imensidão de uma obra com centenas e centenas de discos me fez parar, além do alto preço que itens mais raros alcançam. Porém, segue de certa forma o colecionismo, pois arrematei dia desses o “Wesleyan (12 Altosolos)”, que fazia muita falta na pesada estante dedicada a ele. E que multiplicidade de projetos! Ópera, música orquestral, solos, duos, trios, projetos de standards, música pra piano… Planejo, em breve, dedicar um ano inteiro a ouvir e reouvir seus álbuns. Nenhuma atenção é excessiva quando se trata da Braxtonia!
Ouça “To Composer John Cage”:
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Evan Parker – “Lines Burnt In Light” (2001)
Considero um belo disco pra fechar esta lista. Meu interesse por música pra saxofone solo é gigantesco e claro que não poderia faltar Evan Parker, outro músico que acompanho há tempos. Queria muito ouvir seus solos até que um dia, em Lyon, eu estava com um amigo esperando uma pequena loja de discos abrir. Adentramos e lá estava o referido. Comprei, levamos, e o que houve dali em diante foi outro momento em que estive pasmo. Parecia música eletrônica! Não sabia que aquilo era possível. Hoje, tenho todos os solos de Parker e considero sua discografia um monumento da música. Também não sei falar muito disto. Um disco que é!
Ouça “Line 1”:
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Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Valciãn Calixto”.