OS DISCOS DA VIDA: DUELECTRUM

Se a Duelectrum tivesse surgido na década de 1990, junto com o Pin Ups, o Second Come, o brincando de deus e afins, talvez tivesse hoje um lugar entre essas grandes bandas na história da música feita no Brasil/por brasileiros. Mas o tempo (a banda surgiu mal-e-mal em 1999) aliou-se à vagarosidade com que Filipe Albuquerque (guitarra e voz) e Franklin Weise (baixo e voz) criam e gravam suas criações: apenas quatro EPs em quinze anos de existência.

O tempo passa. E ele é cruel.

Mesmo assim, sem essa necessidade urgente de produzir (e, infelizmente, sem demanda que justifique colocar a banda como prioridade), a Duelectrum fez de sua escassa discografia algo suficiente pra se sustentar a hipótese de seu impacto no momento certo da história.

Vide o econômico e maravilhoso novo EP, “She Doesn’t Feel The Sun”, lançado em 2014: uma música cuja sonoridade jamais envelhece aos ouvidos dos amantes do gênero e das boas melodias. A Duelectrum preenche com poucos grãos, mas grãos brilhantes, aquela areia monocromática da música tupiniquim do novo século.

E olhando pra trás no tempo, a metade criadora da banda, Franklin e Filipe (completada pela dupla Herod, Elson Barbosa, bateria, e Lucas Lippaus, guitarra), analisa como chegou a fazer a Duelectrum ser o que é, musicalmente. Cada um selecionou dez discos que acreditam moldaram sua forma de entender a música. São os discos que formaram sua identidade musical. Ou alguns deles, porque uma sonoridade tão complexa quanto a da Duelectrum não se limita a isso. Nem ao tempo.

FRANKLIN WEISE (voz, baixo)

RPM – “Rádio Pirata Ao Vivo” (1986)
Sim, admito. O auge do sucesso deles coincidiu com minha entrada na adolescência, e de alguma forma as músicas deles se encaixavam no meu (restrito) universo. Só não gostava da “Flores Astrais” (Secos E Molhados), cuja inclusão, agora eu vejo, foi bastante ousada.

Ouça “Alvorada Voraz”:

Kraftwerk – “Radio-Activity” (1975)
Lembro que meu tio já havia comentado deles (já que ele, por ser mais velho, os havia conhecido quando do lançamento dos seus grandes álbuns da década de 70). Não me interessei em ouvir na hora, mas alguns anos depois, comprei o CD e não pude crer: aquele álbum inteiro falava direto à minha alma (deixo transparecer aí minha natureza nerd e minhas raízes germânicas). A faixa-título possivelmente estaria no meu top 3 de todos os tempos.

Ouça “Antenna”:

Cocteau Twins – “Heaven Or Las Vegas” (1990)
Reproduzo o que pensei na época, que mostra bem como era a difusão de informação na era pré-internet: “que mundo injusto é este, que me privou de ouvir a melhor banda do mundo até esta data?”. É difícil descrever hoje, mas o estilo deles, pop com camadas infinitas de vocais e guitarras, era considerado muito estranho nos anos pré-domínio do indie nas paradas. Acabou se tornando um das prediletas da casa. Na verdade, acho que é a única banda que gosto que tem uma discografia impecável.

Ouça “Iceblink Lunk”:

Jesus & Mary Chain – “Automatic” (1989)
Na época, eu ainda estava definindo meu gosto musical, não sabia ao certo do que eu gostava. Comprar este álbum foi como achar minha cara-metade. Um álbum perfeito do início ao fim. As melodias pop e as guitarras… ah, as guitarras! Foi o início da minha paixão pelo barulho.

Ouça “Blues From A Gun”:

Low – “The Curtain Hits The Cast” (1996)
Comprei pelo nome e pela capa, sem ouvir na loja. Chegando em casa, minha primeira reação foi de aversão – como gostar de algo tão absurdamente lento? Quando consegui desacelerar, passei a considerá-los o maior achado musical em muitos anos. E eles abriram uma categoria nova de música na minha cabeça e na minha biblioteca de música: o slowcore.

Ouça “Over The Ocean”:

The Charlatans – “Some Friendly” (1990)
Minha introdução à onda Madchester, que coincidiu com minha chegada a São Paulo e com o início da MTV. As cenas do clipe de “The Only One I Know”, com a banda tocando em câmera lenta ressoaram forte em meu cérebro de dezessete anos. Todo o álbum era impecável nas composições e na produção, que tinha uma mixagem pouco usual e que considero insuperável até hoje. Na época, eu praticamente só conseguia pensar o mundo em termos de dance-rock inglês por culpa deles.

Ouça: “The Only One I Know”:

Spacemen 3 – “Recurring” (1991)
Seduzido inicialmente pelo single “Big City” (que tinha muito a ver com o Kraftwerk do início), o restante do álbum me introduziu ao mundo dos drones e da psicodelia, totalmente novo pra mim. Não conhecia nada igual, mas mesmo assim, tudo aquilo soava estranhamente familiar, tinha tudo a ver comigo. Bateu tão forte que, a partir daí, me vi impossibilitado improvisar melodias sem tentar emulá-los.

Ouça “Big City (Everybody I Know Can Be Found Here)”:

Pato Fu – “Gol De Quem?” (1995)
Antes de se tornar uma banda-chatinha-de-MTV, nas palavras do Filipe, o Pato Fu era um bicho exótico na música nacional. Depois do irregular álbum de estréia, neste álbum eles conseguiram equilibrar as experimentações, o humor, o peso, o pop, o belo vocal suave de Fernanda Takai e a técnica de guitarra do John. O resultado foi um álbum que causava estranheza e atração (uma das minhas constantes nos álbuns que eu mais gosto). Dei de presente de aniversário para minha irmã e ela, depois de também estranhar, ficou ouvindo em loop por dois dias seguidos.

Ouça “Vida Imbecil”:

The Stone Roses – “The Stone Roses” (1989)
Novamente apresentado pelo meu colega de república Rogério Kato. Ao contrário de outros álbuns desta lista, este eu não estranhei de cara – na verdade, achei ele incrivelmente fácil de gostar. “Elephant Stone”, “She Bangs The Drums”, “Made Of Stone” e “This Is The One” eram hinos pop assobiáveis, mas com uma “grandeza” e “epicidade” que poucas canções pop tinham. E tinha a mais complexa e experimental “Fools Gold”, que, na verdade foi um single de uma fase um pouco posterior e já numa nova linha musical, que finalizava de maneira brilhante.

Ouça “This Is The One”:

U2 – “Achtung Baby” (1991)
Um dos raros álbuns divisores de águas na música. Há o antes e o depois. Estranhamente, o ponto de partido foi “God part II”, do “Rattle And Hum”, ótima (e obscura música do exagerado “Rattle And Hum”). E funcionou. Conseguiram o impensável: fazer um disco mais rock, mais eletrônico, mais experimental e mais pop que tudo o que veio antes. Foi ousado, irreconhecível. Muitos fãs tradicionais odiaram. Ninguém na época imaginava que eles poderiam colocar um refrão bobinho como “baby, baby, baby, light my way”. E “The Fly” possivelmente estaria no meu all-time Top 3. O apogeu da discografia deles.

Ouça “The Fly”:

FILIPE ALBUQUERQUE (voz, guitarra)

The Stone Roses – “The Stone Roses” (1989)
Uma vez o Jair Naves me perguntou que banda virou a chave pra um tipo de som que fugia dos padrões FMs etc, e de bate pronto eu respondi que foi o Jesus And Mary Chain. Mas sendo mais preciso, foi o Stone Roses com o disco de estreia. Mudou completamente minha ideia do que era música, sobretudo porque em 1991, quando tive acesso ao álbum, o que eu ouvia basicamente era punk rock, ainda que o JAMC já estivesse entre as bandas que eu escutava. Não tem uma música ruim no álbum todo.

Ouça “She Bangs The Drums”:

The Jesus & Mary Chain – “Honey’s Dead” (1992)
Foi por causa de uma matéria da Bizz sobre o álbum, assinada pela Anamaria G Lemos, que entrevistou os Reid, que eu decidi fazer jornalismo. Era aquilo que eu queria fazer. Me ferrei. Mas a soma das dancebeats com as guitarras-motosserra talvez não encontre parâmetros no pop mundial.

Ouça “Rollercoaster”:

The Velvet Underground & Nico – “The Velvet Underground & Nico” (1967)
Acho que eu gosto mais do “White Ligh/White Heat”, mas no início dos anos 90 eu passei tanto tempo procurando esse disco (eu tinha lido uma mini-bio da banda num daqueles especiais da Bizz, que tinha também as histórias do Doors, Bob Marley e Mutantes – e não existia Internet pra baixar ou ouvir em streaming) que, quando achei e ouvi, foi como se uma outra porta da vida se abrisse.

Ouça “Femme Fatale”:

Pin Ups – “Time Will Burn” (1991)
Eu tinha colocado nessa lista o “Loveless”, que, assim como o “The Velvet Underground & Nico”, passei anos tentando encontrar, indo às grandes galerias e ouvindo dos lojistas que estava pra chegar, já tinha acabado etc.. Mas era demais saber que havia uma banda paulista alguns passos à frente do que os grupos dos anos 80 haviam produzido. Por isso, na relação com o “Loveless”, ele não ganha, obviamente em qualidade, até porque são coisas diferentes, mas leva no impacto por vir de um lugar que a gente não esperava que pudesse produzir aquilo, diferentemente do Reino Unido, de onde a gente tinha certeza que viria algo como o My Bloody Valentine. Além de ser uma banda que a gente podia ver a qualquer momento, tanto no Retrô e no Aeroanta, quanto às três da tarde ao vivo no programa “Mulheres Em Desfile”, da TV Gazeta, fazendo micagem num playback de uma das faixas do álbum.

Ouça “Bright”:

Ira! – “Vivendo E Não Aprendendo” (1986)
Esse rivaliza com o “Cabeça Dinossauro”, dos Titãs, na categoria disco que mais ouvi na infância. Em 1986, com dez anos, eu achava “Polícia” a coisa mais punk que eu já tinha ouvido (fui ouvir Ratos, Inocentes, Olho Seco, Cólera, Grinders e outros punks nacionais mais pra frente). Mas aí o “Vivendo…” trazia “Gritos Na Multidão”, “Nas Ruas”, “Dias De Luta”, “Pobre Paulista”, que obviamente não são punks, mas a pedrada parecia mais forte. O melhor do Ira! é o “Psicoacústica”, mas o “Vivendo…” tem um apelo afetivo mais intenso. Ouvi muito em fita k-7, (mal) gravada por um vizinho, que era o cara da minha rua que comprava os discos e que a meninada fazia plantão na casa dele pra gravar. “Casa De Papel” é bastante o retrato de um adolescente paulistano entre a segunda metade dos 80 e o início dos 90, morador de bairro tradicional, o Butantã no meu caso. E tinha “Flores Em Você” que tocava todo dia na abertura da novela das oito (“O Outro”).

Ouça “Flores Em Você”:

Starflyer 59 – “Silver” (1994)
A primeira referência que eu tive do Starflyer 59 foi uma foto num catálogo da Tooth And Nail Records, que imitava um encarte de CD. Cheio de bandas cristãs que eu nunca tinha escutado, e que achava que não iria gostar de nenhuma. Fui ouvir a banda alguns meses depois e, Jesus Todo-Poderoso, que pedrada! Ouvi esse disco até gastar o cdplayer. Alguns geeks da crítica dos EUA classificaram o disco como a resposta americana ao “Loveless”, o que eu não concordo. O mais engraçado foi saber, anos depois, que um líder evangélico norte-americano conservador achou um absurdo, quase uma blasfêmia, uma banda cristã apresentar uma letra que diz “Counts the sands Jesus in your hands”, em “2nd Space Song”, porque pra ele a frase não fazia sentido nenhum sendo cantada por um cristão.

Ouça ” 2nd Space Song”:

strong>Ramones – “Rocket To Russia” (1977)
O Ramones veio junto com o Jesus And Mary Chain, o Echo And The Bunnymen, o Sisters Of Mercy, o Cure, o Siouxie And The Banshees, os Smiths e o The Mission, ali por 84, 85, 86, nos programas de clipes da TV, “Som Pop”, com o Kid Vinil, na Cultura, e o “Realce”, na TV Gazeta, com o Mr Sam (descobridor da Gretchen) e o boneco Capivara (o programa depois virou o “Clip Trip”). Mas como eu era muito moleque, botava tudo no mesmo saco e confundia Ramones com o The Cars, por exemplo, ou o Jesus And Mary Chain com o Echo, basicamente pelo corte de cabelo dos Reid e do Ian McCulloch (ri). Foi na época do skate, em 1987, que veio a compreensão do que era punk, pós-punk, new wave etc., e o aprofundamento nas discografias, sobretudo no punk. A escolha parece óbvia, mas foi um disco que eu ouvi demais na adolescência. Botava o toca-discos em rotação mais lenta pra pegar os acordes de ouvido. E embalou muitas pretensas festas punk juvenis feitas em garagem de amigos do skate.

Ouça: “Here Today, Gone Tomorrow”:

Flávio Venturini – “Noites Com Sol” (1994)
Ouvi rock a vida toda, desde pequeno. Mas esse disco me abriu um pouco a cabeça, pelas melodias incríveis e pelas letras meio incertas, meio devaneios (“e basta contar compasso/e bastar contar consigo/que a chama não tem pavio?” É maconha?) Principalmente por ser de 94, quando eu tinha dezoito anos, e estava obcecado por My Bloody Valentine, Jesus And Mary Chain, Slowdive, Flying Saucer Attack, Pin Ups, Second Come e as primeiras coisas do Oasis, Suede, Blur e semelhantes. Acho que foi com esse disco, de 94, que eu entendi que MPB não precisava ser intelectualmente pretensiosa nem melodicamente pobre. O ponto negativo do disco são os arranjos de música de motel. Faltou um bom produtor pra dar uma limpada nisso.

Ouça “Clube Da Esquina II”:

Morrissey – “Vauxhall & I” (1994)
Fiquei entre esse e o “Hatful of Hallow”, dos Smiths. Mas acho que acabei ouvindo mais o do Morrissey, sem necessariamente achar um melhor do que o outro. É o auge da carreira solo dele, com a melhor formação da banda de apoio, responsável pelos arranjos impressionantes, além das letras, algumas das melhores já escritas por ele. Não acho que o Morrissey tenha se tornado irrelevante, mas ele hoje me parece uma espécie de Frank Sinatra menor, mais pop, meio decadente, mas ainda é um dos últimos a chamar a família real britânica pro pau sempre que pode (coisa que essas bandecas de quermesse tipo Arctic Monkeys e outros branquelos ingleses não fazem). E traz com ele o legado dos Smiths, que não é pouca coisa.

Ouça “The More You Ignore Me, The Closer I Get”:

Som Maior – “Mais De Cristo” (1980)
Diferente de muita gente, que herdou discos do Led Zeppelin, Rolling Stones, Beatles, Jefferson Airplane, Frank Zappa e outros clássicos da coleção dos pais, dos meus eu tenho de herança alguns discos de música cristã. Esse, do Som Maior, era um dos que meu pai mais botava pra rodar em casa e acompanhou boa parte da minha infância. Havia uma lenda em casa, sustentada pelo meu pai, de que a agulha do toca-discos era de diamante, caríssima, e que por isso só ele e a minha mãe poderiam ligar o equipamento. Então a gente normalmente ouvia os discos que ele escutava, ou ouvia os meus de os do meu irmão quando ele atendia aos nossos pedidos. É um álbum psicodélico involuntário, porque os músicos à época, excelentes por sinal, certamente não tinham a intenção de lançar um álbum lisérgico. O Som Maior é de uma geração de grupos cristãos influenciados de alguma maneira pelo Jesus Culture americano, quando jovens de lá decidiram usar a música pop pra falar do evangelho pros freaks na virada dos anos 60 pros 70. A terceira música do LP, “Confirmação”, sustenta a “tese”.

Ouça “Confirmação”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: As Amigas De Plástico”.

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