OS DISCOS DA VIDA: FORA DO BEIÇO

Sua identidade foi um mistério até bem pouco tempo. Com seus textos arrasadoramente críticos ao Fora do Eixo e seu guru-mor, Pablo Capilé, no Tumblr Fora do Beiço, Marcelo Marchi, um roteirista freelancer de 35 anos, de Leme, interior de São Paulo, formado em radialismo, fez a alegria dos leitores e se mostrou a coluna mais certeira no ataque à estrutura montada por Capilé.

Mas não só isso. O humor do Fora do Beiço ataca frentes hipsters, os indies-festivos da Rua Augusta e seus novos ídolos de barro, sempre de uma maneira leve, inteligente e irônica, como poucos conseguiram. Fica difícil até mesmo rebater.

“O Fora do Beiço começou em abril de 2012, em Bauru, quando tava fazendo um trabalho por lá”, conta, mostrando que, sim, é um projeto que nasceu sem ambições, a despeito da forma com que os apaixonados defensores do FdE possam compreender. “Criei junto com um amigão meu, Guilherme ‘Led’ Baciotti. Ele logo saiu, e eu continuei”.

Marchi não tem nenhuma ligação com o FdE, nem nunca teve. Nada, “além de ir a algumas festas e shows em Bauru. Claro, tenho (ou tinha) amigos que faziam (fazem) parte. Em Bauru bastante gente era envolvida, especialmente do meio universitário, então inevitavelmente ficava por dentro do assunto. A Laís Bellini, menina que denunciou o regime escravocrata do Capilé, inclusive, é uma dessas amigas. Fizemos Unesp na mesma época, ela era minha vizinha praticamente”.

Antes de revelar sua identidade, com exclusividade ao Zap’n’Roll, Marchi criou um perfil no Facebook do “autor” do Fora do Beiço: um tal de Eddy Tales – um trocadilho, em alusão a “editais”, a ferramenta de levantamento de recursos públicos que virou uma das pedras no sapato de Capilé.

Ninguém sabia que ele era o autor ou que Eddy Tales era seu alter ego, mas tinha gente que “talvez desconfiasse; antes de criar o FDB a gente (ele e Laís Bellini) chegou a ter uns ‘debates’ no Face a respeito do FDE… Alguns, inclusive, pensavam que ELA era o Eddy Tales”.

A brincadeira rendeu elogios de André Barcinski e André Forastieri, citações na Folha de S. Paulo e centenas de retuítes (mesmo que a conta do blogue tenha poucos seguidores – até aqui, menos de 800 -, o que mostra a força da viralização dos seus textos).

O Floga-se, porém, foi mais longe e convidou Eddy Tales/Marcelo Marchi pra participar da seção “Os Discos Da Vida”. Assim, desvenda-se como Marchi formou seu gosto musical – um gosto que certamente o ajuda, em seus textos, a ser ácido com certos ícones da música jovem ou popular brasileira.

MARCELO MARCHI

Scorpions – “Taken By Force” (1977)
AHÁ! Aposto que esse nunca apareceu por aqui, né, seus hipsters? Pois já era hora! Esqueça aquela banda que compete com Aerosmith e Whitesnake pra ver quem cria mais baladas hard rock baba, aquela banda que mora no Brasil e todo ano te convence que vai parar, e ouça sem preconceitos este álbum de 1977. As audições frequentes do vinil de “Taken By Force” da minha irmã – ganhado num amigo secreto do escritório – provavelmente foram as primeiras vezes em que sonhei ser um rock star, regravando “The Riot Of Your Time” e “The Sails Of Charon” com o mesmo nível de excelência do guitarrista Ulrich Roth. Arrisca aí, vai.

Ouça “The Sails Of Charon”:

Pixies – “Death To The Pixies” (1997)
Acho meio sacanagem escolher coletâneas, mas a verdade é que compilações quase sempre te arremessam na cara o universo musical de um artista. Se você conhece apenas algumas músicas, consumir de uma só vez pedaços de vários álbuns de distintas fases é como a injeção de adrenalina no coração da Uma Thurman. Nesta coletânea dupla dos Pixies, o que me ganhou não foi o CD ao vivo, e sim aquele com as versões de estúdio, onde acho que, com algumas exceções, os Pixies se saem melhor, especialmente pelas sutilezas sonoras, pelos detalhezinhos, pela barulheira bem orquestrada. Depois dele, Pixies virou obrigatório.

Ouça “Gigantic”:

Black Sabbath – “Greatest Hits” (1977)
Outra coletânea, desta vez bem mais obscura (nem aparece em discografias oficiais). Desde que passei a me interessar por música sempre ouvi falar muito do Black Sabbath. Conhecia uma ou outra. Na época, tinha acabado de comprar meu primeiro radião toca-CDs, e estava ávido pra estreá-lo com o hype do momento, “Dookie”, do Green Day. Toda semana ia à loja de discos mais rock da minha sempre antenada cidade e perguntava pelo CD do Green Day, que sempre chegaria na semana que vem (lembrem-se, era hype, mas não em Leme, interior de São Paulo). Voltei frustrado pra casa vezes suficientes pra certo dia desencanar e escolher esta coletânea preguiçosa, que me mostrou como o Sabbath era diferente de tudo o que eu conhecia, mesmo dentro do metal. A sonoridade lá no fundão, abafadona, dos primeiros álbuns até hoje não foi igualada. E, embora a coletânea seja meio mequetrefe, o que dizer dessa capa lindaça?

Ouça “War Pigs”:

Raimundos – “Raimundos” (1994)
Fodam-se os entusiastas de Heitor Villa-Lobos, Paulo Leminski e Pífanos de Caruaru: nunca antes na História deste país produziu-se tão acachapante mistura de música regional vanguardista e fina poesia como na estreia dos Raimundos! Pra mim, este é e provavelmente sempre vai ser o melhor disco brasileiro de todos os tempos, e não me venha com “Tábua De Esmeralda” e afins. Virulento, esporrento, de dar vergonha de tão criativo, com letras geniais, “Raimundos” é um moleque que não cresceu, graças a tudo que é profano. Já fui fã obsessivo da banda, e hoje em dia ainda ouço coisas como “MM’s” e “Cintura Fina” como se não houvesse amanhã. Deus te abençoe, Rodolfo.

Ouça “Cintura Fina”:

Bad Religion – “Recipe For Hate” (1993)
1995. Eu vivia aquela fase que todo adolescente vive, de descobrir o punk rock e se livrar de todos os seus discos que não são de punk ou hardcore (fui só eu?). Era o tempo de explorar Pistols, Clash, Offspring, Green Day, Shelter, Ramones… Mas o álbum que mais mexeu comigo nesse período foi mesmo esse do Bad Religion, com músicas que conheci no “Lado B”. Então, no ano seguinte, a notícia fatídica: teria que prestar o serviço militar, o detestável e estapafúrdio Tiro de Guerra. Nunca o punk rock me caiu tão bem. Era revolta em cima de revolta, mas, no caso de “Recipe For Hate”, não cuspidas, e sim cantadas com um apuro melódico que estremecia aquele soldado improvável. Nesse ano, Brett Gurewitz virou meu guitar hero, principalmente por faixas como “Man With A Mission”, “Skyscraper” e “Struck A Nerve”. Com muito orgulho (e cagaço), quase fui expulso do Tiro de Guerra. Culpa do Bad Religion e outros punks maravilhosos.

Ouça “Man With A Mission”:

U2 – “Achtung Baby” (1991)
Tendo crescido nos anos 80 com duas irmãs mais velhas que possuíam a cultura das FMs, é claro que o U2 sempre entrou pelos meus ouvidos, e eu gostava sem saber quem eram. Ao cair de vez na vida de fã de música, fui pinçando um hit aqui, outro ali. Mas foi só quando o videoclipe de “Even Better Than The Real Thing” começou a rodar sem parar na MTV que a coisa mudou de figura. Literalmente. “Achtung Baby” era o U2 brincando com a própria imagem, mostrando que podiam ser cínicos e engraçados. Eles introduziram batidas dançantes no seu som ao mesmo tempo em que tomaram as atitudes mais rrrrock da carreira. A turnê “Zoo TV” foi o show pop mais genial já imaginado. Tudo ali fazia sentido e era necessário. Ouço “Achtung Baby” muito, até hoje. “The Fly” é uma das minhas preferidas, já que sintetiza todo o espírito do álbum e ainda tem as melhores guitarras que The Edge já gravou. Então, PAREM DE TER PRECONCEITO COM O U2, SEUS RACISTAS BÁRBAROS!

Ouça “The Fly”:

The Smashing Pumpkins – “Siamese Dream” (1993)
Eu odiava quando o videoclipe de “Today”, dos Smashing Pumpkins, passava na MTV! Imediatamente mudava de canal! Que porra era aquela, aquele visual nada a ver, um vocal delicado, estridente, uma guitarra dedilhada chaaaata… Não sei por que resolvi um dia vê-lo até o fim. Talvez porque tivesse curtido “Disarm”… Não me lembro… Mas gostei da experiência, porque lá pelas tantas o negócio começava a ficar interessante. Como assim, aquelas guitarras pesadonas? Então fiz o que qualquer fã de música pré-internet faria: aluguei (sim, tal prática existia) o CD numa locadora perto de casa e gravei-o em uma fita K7. Eu simplesmente não conseguia entender como os caras tinham a pachorra de colocar aquelas guitarras quase heavy metal sob um vocal tão suave e melancólico! A combinação de peso e singeleza me conquistou de cara! “Mayonaise” é um dos exemplos mais lindos do som dos Pumpkins nessa fase. E, por mais que eu adore os dois álbuns seguintes, é “Siamese Dream” que tem a fórmula perfeita e inigualável.

Ouça: “Mayonaise”:

Pearl Jam – “Vs.” (1993)
A essa altura já deu pra perceber que sou cria dos anos 90. Quando era permitido ser mais emocional, mais angustiado, mais revoltado, mais barulhento, sofrer com o sucesso e/ou morrer de overdose. O segundo álbum do Pearl Jam – provavelmente já nessa época e até hoje a banda da vida – foi, pra mim, o marco definitivo desse momento. No período de tempo entre “Ten” e o lançamento de “Vs.” existia uma eletricidade no ar que me dizia que nada mais seria o mesmo. O que poderia vir depois de um álbum de estreia que parecia o auge? Enquanto me preparava, comprei minha primeira “peita” de banda – deles, claro – e esperei aquele que seria o álbum mais vendido de todos os tempos na semana de lançamento. Esse recorde amplificou a má vontade dos caras com a mídia, os videoclipes, a superexposição, e, claro, eu achava essa postura do caralho! Torcer pelo Pearl Jam na sua guerra contra o mundo era instigante. O Pearl Jam era meu time de futebol! E as músicas? Dos megahits não preciso nem falar. Mas pérolas obscuras como “Glorified G”, “Leash” e “Rats” estão até hoje entre os meus tesouros sentimento-musicais (pra usar um tipo de termo que os leitores do Fora do Beiço conhecem bem!).

Ouça “Glorified G”:

Nirvana – “In Utero” (1993)
Em 1992, uma das melhores épocas da História pra se começar a gostar de rock, e quando eu começava a aprender que Erasure não era rock e que Guns N’ Roses é que era, a molecada na escola começou a falar o tempo todo do tal Nirvana. MTV ainda não pegava na minha cidade. Certo dia, abro uma revista de rock de um colega e vejo um anúncio de página inteira com o slogan “Smells Like Nirvana” em uma foto de três caras sem cabelos impossíveis e vestidos feito uns quaisquer. Eu não queria acreditar que “só” aquilo era o Nirvana! Onde estavam as roupas coloridas e exóticas, as botas de couro de zebra… os… os cabelos? Mas quando finalmente vi o videoclipe de “Lithium” entendi tudo sobre o Erasure, o Guns N’ Roses, o barulho, o grunge, minha vida, minha ideologia. Minha mãe tinha uma loja que vendia fitas K7, e, logo, o recém-lançado “In Utero” acabou se tornando o primeiro item na minha coleção musical, seguido por “Bleach”. Com as distorções mais maravilhosas do mundo (em “Radio Friendly Unit Shifter”) nos ouvidos, acho que eu não podia ter começado melhor.

Ouça “Radio Friendly Unit Shifter”:

Jeff Buckley – “Grace” (1994)
Nunca a dor foi tão linda e sublime. Poucas vezes ouvi um artista tão sincero, frágil e apaixonado quanto esse cara que considero uma perda do calibre de Kurt Cobain – com o agravante de que Buckley só teve tempo de lançar um álbum de verdade. E, apesar de tudo, não precisava mais do que este. Conheço pessoalmente umas cinco pessoas que gostam de “Grace”. Sim, é melancólico, não é rock o tempo todo, pode ser até difícil de escutar, mas é provavelmente o álbum que mais ouvi na vida, meu preferido, e, sabe-se lá como, me deixava mais feliz quando eu estava pra baixo. Cuidado: se “Lover, You Should’ve Come Over” não rasgar sua alma ao meio é porque você não tem uma.

Ouça “Lover, You Should’ve Come Over”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Thiago Ney”.

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