OS DISCOS DA VIDA: JAIR NAVES

É possível rastrear a personalidade das pessoas pelas músicas que ela ouve? É possível, além disso, identificar o talento de alguém pelo o que passou pelos seu toca-discos?

No caso de Jair Naves, talvez haja como ligar os pontos. Um dos seus maiores talentos são suas letras – além de ser um compositor engenhoso, principalmente na sua carreira solo (ouça seu disco lançado recentemente, “E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas”), e um cara de extensa cultura e bom de papo (leia a recente entrevista que ele deu pro Scream & Yell).

Nessa edição de “Os Discos Da Vida”, Naves explica suas escolhas principalmente por conta das letras que mais o afetaram, e o faz de forma sanguínea, expondo-se como veias cortadas e saltitantes.

Dez discos – que poderiam ser vinte, trinta: uma amostra de suas preferências, com obras que reverenciam o olhar pra depressão, pra análise de vidas atormentadas, pras derrotas (amorosas ou não), pros percalços; e uma amostra de sua perspicaz maneira de tirar o melhor disso tudo, ao usar a explosão artística da melancolia e sagacidade dos seus ídolos como combustível pro seu próprio talento.

Ele poderia estar numa lista dessas.

JAIR NAVES

“Foi uma das escolhas mais difíceis que eu tive que fazer em algum tempo. Pra você ter uma ideia, fiz textos como os que estão abaixo pra dezoito discos. Ainda não consigo deixar de me sentir um pouco ingrato por ter excluído da lista final nomes que foram fundamentais na minha formação, como Buzzcocks, Vzyadoq Moe, Sonic Youth, Beatles, Gang Of Four, Caetano Veloso, Kate Bush, Mission Of Burma, Walter Franco, Nirvana, Mundo Livre S/A, Bruce Springsteen, Hüsker Dü, Joy Division/New Order, Television, Fleetwood Mac, R.E.M… Daí a demora toda pra chegar a esses dez nomes finais. E se um dia você quiser outra lista, me avise, não faltam nomes pra tanto”.

Black Flag – “Damaged” (1981)
Apesar de todo o tempo que se passou desde então, eu me lembro vividamente de quando ouvi o “Damaged” pela primeira vez. Eu tinha dezesseis anos, uma reduzida porém adorada coleção de discos, uma pequena familiaridade com os preceitos do punk rock e uma séria desconfiança de que através daquela história de “faça você mesmo” eu acharia o meu lugar no mundo.

Meu primeiro contato com esse tipo de sonoridade foi na ocasião da explosão de popularidade do “Nevermind”. Por conta do devastador impacto que esse disco (e especialmente o caótico clipe de “Lithium”) teve na minha cabeça de menino de doze anos, desenvolvi uma dedicada obsessão pelo Nirvana. Percorria lojas de discos atrás de bootlegs, ficava horas nas bancas lendo entrevistas em revistas importadas, comprava biografias, anotava mentalmente as indicações que eles faziam de outros músicos, livros e artistas em geral. O que me levou a descobrir uma série de nomes que mais tarde me marcariam profundamente, do William Burroughs ao David Bowie, do Gang Of Four a “Seasons In The Sun”, do Patrick Süskind aos Mutantes, do MDC ao Beat Happening. Ainda assim, a mais importante descoberta que o Nirvana me proporcionaria demorou um pouco para ser realizada.

Embora o Kurt Cobain mencionasse constantemente o Black Flag como influência, por algum motivo que me foge à memória eu sempre esquecia de ir atrás deles. É preciso lembrar que nessa época, 1995, 1996, a Internet ainda não havia sido popularizada no Brasil – ou pelo menos não tinha chegado até a minha família, de forma que o acesso à informação era muito mais demorado e trabalhoso do que é hoje em dia. Até que, numa das minhas idas às lojas de revistas pra folhear publicações estrangeiras, eu me deparei com uma extensa matéria na Keerang! (se não me engano) sobre o legado de Greg Ginn e cia. Lembro de ter ficado particularmente intrigado com o fato de quase todos os entrevistados terem o logo da banda tatuado. Pensei que devia ser algo especial, pra exercer todo esse fascínio sobre as pessoas. Motivado por essa impressão, busquei um disco deles pra ver (e ouvir) do que se tratava. Por sorte, o que veio parar nas minhas mãos foi justamente o “Damaged”, que eu considero não só o melhor da banda, mas talvez o álbum mais importante da história do hardcore.

A reação que eu tive ao finalmente ouvir o Black Flag nunca mais se repetiu com nenhuma outra obra de arte à qual eu fui exposto desde então. Eu sabia que aquilo era muito, muito bom, mas me sentia como se eu não estivesse preparado pro que estava ouvindo. Parecia muito mais agressivo, real e confrontador do que as coisas que eu estava acostumado a ouvir – fosse o Nirvana, fossem as bandas da primeira geração do punk rock britânico, fossem as bandas de heavy metal de que eu gostava… Enfim, aquilo era outra história. Muito mais brutal, combativo, ensandecido, emocional e niilista. Eles me pareciam verdadeiros anti-heróis, e era justamente esse o modelo a ser seguido que eu buscava – não a velha história de rock stars intocáveis, mimados, alheios à realidade do mundo etc. Soava como um tipo de angústia crua, uma desesperada e intimidante confissão de vulnerabilidade, coisa de pessoas com quem eu verdadeiramente podia me identificar sem fazer qualquer esforço.

Tudo no disco era de uma urgência contagiante. A capa, os timbres, a interpretação do Henry Rollins – sem contar que, pra um adolescente como o que eu fui, as letras ofereciam um conforto que ia muito além do conformismo ou de um estímulo à auto-comiseração. Pelo contrário: “Damaged” me enchia de forças pra enfrentar um mundo em que eu parecia não ter lugar naquela época. Ao mesmo tempo em que um niilismo quase palpável percorria as músicas (trechos como “there’s no relief for a person like me/ depression is gonna kill me”, em “Depression”), havia algo de verdadeiramente motivador em músicas como “Spray Paint The Walls”, “Gimme Gimme Gimme” e mesmo “Thursty And Miserable”. Nem é necessário falar de “Rise Above” e o mantra “we are born wih a chance/ I’m gonna have my chance”. Era exatamente o que eu precisava ouvir, dito da forma mais direta e contagiante possível.

Devo muito ao Black Flag. Não só o fato de ter conseguido atravessar a adolescência são e salvo, mas a coragem pra escrever minhas próprias músicas, pra tocar priorizando o sentimento, mesmo sem muito domínio técnico, sem ter medo de ser verdadeiro, de expor coisas dolorosas ou de qualquer comentário negativo que pudessem soltar a meu respeito. Quanto mais eu descobria sobre eles, mais eu me sentia inspirado a me arriscar artisticamente. Se houve uma banda que verdadeiramente mudou o rumo da minha vida, foi essa.

Ouça “Rise Above”:

Bob Dylan – “The Bootleg Series Vol. 4: Bob Dylan Live 1966, The ‘Royal Albert Hall’ Concert” (1998)
Meu artista preferido. O melhor de todos os tempos, se você quiser mesmo saber a minha opinião. Se existe alguém que faz jus à expressão “inalcançável”, é ele. Não consigo me lembrar de outro compositor com um catálogo tão vasto de títulos absolutamente geniais.

Quando eu recebi o convite pra escrever essa coluna, a primeira dúvida que me veio à cabeça foi: “qual disco do Bob Dylan eu vou escolher?”. A bem da verdade, eu poderia fazer um texto só sobre os meus prediletos dele: “Blonde On Blonde”, “Modern Times”, “Another Side Of Bob Dylan”, “Desire”, “The Freewhelin…”, “Blood On The Tracks”, “Empire Burlesque”, “Bringing It All Back Home”… Enfim, são muitos, mais de uma dezena. Resolvi escolher um que é pouco falado, mas mitológico: o registro do show no Royal Albert Hall em 1966.

O repertório se divide em uma parte acústica, em que ele toca sozinho, e outra elétrica, com a companhia de uma banda. Meu registro preferido de clássicos como “Just Like A Woman”, “Fourth Time Around” e “Desolation Row” estão nesse disco. A parte acústica me impressiona pela forma como ele conduz a platéia sem esforço. Não se ouve um barulhinho sequer além dos aplausos no fim de cada música. E pros que o acusam de ser um péssimo cantor, aqui temos um excelente prova pra argumentar o contrário.

Ouça “Baby, Let Me Follow You Down”:

Velvet Underground – “Velvet Underground” (1969)
Tarefa das mais difíceis escolher entre o primeiro e o terceiro disco do VU (com o “Transformer”, da carreira solo do principal compositor do grupo, correndo por fora). Embora o álbum de estreia tenha uma importância histórica maior, seja mais influente e contenha a maior parte das músicas mais conhecidas da banda (“Heroin”, “I’ll Be Your Mirror”, “Venus In Furs”, “Femme Fatale”), o terceiro sempre me comoveu mais. Tudo nesse disco beira a perfeição: a gravação, os timbres, o jeito como o Lou Reed e a Maureen Tucker cantam… Tudo tão quieto e delicado, em oposição ao esporro do famigerado “disco da banana”. É o título mais profundo da discografia deles, liricamente mais maduro, de uma sensibilidade fora do comum. Talvez o auge da produção do Lou Reed (o que, se tratando dele, um dos maiores artistas de todos os tempos, não é pouca coisa).

Mesmo já tendo escutado esse álbum em milhões de oportunidades nos últimos dez ou quinze anos, existem trechos que ainda acabam comigo toda vez. Por exemplo, “what do you think I’d see if I could walk away from me?”, de “Candy Says”; “Thought of you as my mountain top, thought of you as my peak/ Thought of you as everything I’ve had, but couldn’t keep”, de “Pale Blue Eyes” (uma das canções mais lindas, mais arrasadoras da história); “Help me in my weakness, ‘cause I’m falling out of grace”, de “Jesus”. Sem mencionar “After Hours” e a esperançosa confissão de que “someday I know someone will look into my eyes and say/ ‘hello, you are my very special one'”. Mesmo o experimentalismo todo de “Murder Mistery”, em que uma história é contada em cada uma das caixas de som, esconde versos inspiradíssimos, de um dos mais talentosos letristas da história. Em suma, não há um momento sequer que não seja brilhante.

Assim como quase tudo citado por aqui, esse também me ajudou a atravessar momentos difíceis. E ainda ajuda, pra ser sincero. Um disco de cabeceira, literalmente.

Ouça “After Hours”:

The Smiths – “The Smiths” (1984)
Eu tive verdadeira ojeriza ao Morrissey e aos Smiths durante certo tempo. Não lembro exatamente quais eram as minhas impressões sobre eles na época em que os conheci, ainda muito novo, mas me recordo de não gostar da forma com que o cara cantava e de ter achado o clipe de “The Boy With The Thorn in His Side” de uma afetação insuportável – opiniões que mudariam muito em breve, como você há de perceber.

Comecei a ter outra visão dos Smiths quando eu encontrei uma cifra de “Hand In Glove” no estúdio em que eu ensaiava com a minha bandinha do colégio – eu devia ter uns 17 ou 18 anos, carregava comigo todo o radicalismo dos adolescentes que se julgam os donos da verdade. Ainda assim, dei uma olhada no papel com a letra e fiquei atordoado. Eu ainda não conhecia um letrista capaz de escrever tão bem daquele jeito. O texto todo era inacreditável. Os trechos “no, it’s not like any other love/ This one is different because it’s us” e “I know my luck too well and I’ll probably never see you again” eram exagerados e passionais na medida certa pra pessoa que eu era na época. Me deixaram com a certeza de que eu tinha feito um julgamento terrivelmente equivocado sobre eles até então, e que eu deveria corrigir isso o mais rápido possível. Comprei uma daquelas coletâneas de singles e pronto: mais uma reviravolta na minha vida.

Embora muitos dos fãs desdenhem desse álbum de estreia por causa da produção um pouco mais crua em comparação com os seguintes, sempre foi o meu preferido. Muitas das minhas composições preferidas estão lá: além de “Hand In Glove”, “Still Ill”, “What Difference Does It Make?”, “You’ve Got Everything Now”… Eu costumo dizer que os Smiths são a única banda de quem eu gosto de absolutamente todas as músicas. Sendo assim, chega a ser doloroso escolher um só item da discografia. Mas tudo bem, que seja esse.

Ouça “Hand In Glove”:

Patti Smith – “Horses” (1975)
Assim como aconteceu com o Nirvana, eu também criei uma relação obsessiva com os Smiths quando os conheci. Estudava a fundo a trajetória da banda, os artistas de quem eles diziam gostar, as biografias… Foi assim que eu descobri que o Morrissey tinha transcrito em seu caderno de escola uma cópia da gigantesca letra de “Piss Factory”, lado B do primeiro single da Patti Smith. E que “The Hand That Rocks The Cradle”, do primeiro disco deles, tinha o instrumental declaradamente chupinhado de “Kimberly”, a quinta faixa de “Horses” – uma espécie de homenagem, segundo o Johnny Marr. Com essas informações em mente, sabendo que essa era uma referência tão determinante pra minha banda do coração na época, fui atrás para ver do que se tratava.

Pra não me estender tanto quanto fiz nos tópicos anteriores, vou apenas dizer que é meu disco de rock favorito. Aliás, de rock não, porque seria muito reducionista limitar “Horses” a uma só categoria. Não conheço nada tão poderoso, tão forte na sua simplicidade, tão envolvente… Chega a ser difícil crer que, na segunda vez em que ela entrou em estúdio na vida, já tenha conseguido criar algo tão gigantesco. Me sinto até mal em destacar uma ou outra faixa, mas não posso deixar de mencionar o quanto “Birdland” foi importante pra mim. Toda a história das alucinações do menino que perde o pai e herda uma fazenda em New England… E “Free Money”, a descrição de sonhos com o fim dos problemas com dinheiro. E o refrão libertador de “Break It Up”, assim como a história da morte de uma menina que era “small, an angel, with apple blond hair” em “Redondo Beach”. Enfim, é preciso que eu me contenha ao falar de “Horses”. O disco da minha vida, sem sombra de dúvidas.

Ouça “Birdland”:

Rufus Wainwright – “Rufus Wainwright” (1998)
Tem um caso de que sempre lembro com carinho quando ouço esse disco. Na ocasião em que eu o adquiri, comprei esse e o “Tommy”. O caixa da loja, meio ranzinza, de uns cinquenta anos e com toda a pinta de roqueiro dono da verdade, analisou as minhas escolhas e disse meio que pra si mesmo: “tá aí um belo disco”. Sem olhar pro álbum que ele segurava, julguei que ele estava se referindo à famosa ópera-rock do Who. Mas não, ele falava do outro, o primeiro do Rufus Wainwright.

Um dos músicos mais assustadoramente talentosos que eu conheço. A versatilidade, a destreza musical e o poder da voz dele ainda me deixam boquiaberto. É incrível também como já em seu primeiro trabalho ele demonstrava ser um compositor bem acima da média: “Danny Boy”, “Beauty Mark”, a suavidade de “Baby” (“nothing so bright, nothing so pure, nothing so smooth as my baby” um dos muitos belos momentos espalhados pelo álbum – esse e “crazy me don’t think there is pain in Barcelona”, de “Barcelona”, então entre meus prediletos). As mudanças climáticas e de andamento em “Foolish Love” causaram uma enorme impressão em mim também. As melodias dele são tão ricas que acabaram me influenciando bastante numa época em que eu busquei começar a escrever linhas de voz um pouco mais melódicas pras minhas músicas. Nunca consegui chegar perto dele, obviamente, mas ainda assim foi uma descoberta muito importante e que expandiu razoavelmente meu leque de referências.

Fiquei bem indeciso entre esse disco e o sucessor, “Poses”. Fiz minha opção puramente por memória afetiva, qualquer um dos dois cairia muito bem na lista.

Ah, ainda sobre o Rufus Wainwright, só mais uma coisa: eu realmente acredito que a versão dele pra “Hallelujah”, do Leonard Cohen, é melhor que a do Jeff Buckley. Só que até hoje não encontrei uma só pessoa que concorde comigo, de forma que sempre fico em minoria quando surge tal discussão. Se houver alguém aí que compartilhe da minha opinião, ponha-me a par.

Ouça “Foolish Love”:

Maysa – “Maysa” (1964)
Descobri esse disco completamente por acaso. No fim dos anos 90, se não me engano, houve uma reedição em CD de considerável parte do catálogo da Elenco. Lembro da minha mãe ter comprado vários deles, e nessa aquisição estava o “Ao vivo” da Maysa. Como eu sempre costumava dar uma olhada na coleção dela, acabei p descobrindo. E na primeira audição já deu para perceber o quanto ela era diferente da típica imagem que se faz de “cantoras de MPB”.

Embora eu tenha citado anteriormente nessa lista o bootleg do Bob Dylan, não sou um grande apreciador de discos ao vivo. A bem da verdade, consigo pensar em poucos de que realmente gosto: o “Live At Leeds”, do Who, o “At Fillmore East” do Allman Brothers Band… Não são muitos. Mas esse é uma obra de arte. Se esse mesmo repertório tivesse sido gravado em estúdio, não teria um décimo da mesma força.

Pelo que eu me lembro da biografia dela escrita pelo Lira Neto, o show no Canecão que deu origem a esse registro aconteceu num momento bem problemático da carreira da cantora (N.E.: segundo a Wikipedia, “o álbum foi gravado ao vivo em 1963 no show na boate carioca Au Bon Gourmet e dirigido por Aloysio de Oliveira”). Foi uma tentativa de ressurgimento, de retomada da carreira ou algo do gênero. E você pode sentir essa gana em cada nota que ela canta. Poucas vezes ouvi alguém cantando com tanto sentimento, de maneira tão devastadora, colocando tanto de si nas músicas. E a banda que a acompanha faz a sua parte com maestria, tudo na medida certa, de uma delicadeza e bom gosto fora do comum.

“Maysa”, o disco, foi um dos responsáveis por me aproximar da música brasileira mais antiga, que precedeu as bandas nacionais de rock. “Por Causa de Você”, “Dindi”, “Bom Dia, Tristeza” ganharam aqui releituras matadoras. A interpretação de “Demais” que abre o repertório não é nada menos que perfeita. A versão definitiva, uma das músicas da minha vida. Eu conservo o sonho de um dia poder fazer uma apresentação baseada unicamente nesse álbum. Tocar todas as músicas, na ordem, respeitando os arranjos originais. Ainda conseguirei realizar essa vontade.

O disco tem menos de trinta minutos de duração. É um soco. Não fosse a erudição musical toda e as performances irreparáveis, eu cometeria a heresia de dizer que temos aqui algo tão violento quanto um bom disco de punk rock. Mas não o farei, até porque o impacto emocional do negócio vai muito além disso. Ainda que não seja apropriado pra todos os momentos (uma dica: evite ouvi-lo se estiver passando por problemas afetivos – a não ser que a ideia seja realmente se afundar na fossa), temos aqui uma incontestável obra-prima.

Ouça: “Fim Da Noite”:

Joni Mitchell – “Blue” (1971)
“Go to him, stay with him if you can, but be prepared to bleed”. Esses versos de “A Case Of You” foram a minha iniciação no universo de “Blue”. Alguém me fez essa citação numa carta (no saudoso tempo em que as pessoas ainda costumavam trocar cartas) e, antes mesmo de ouvir a inacreditável voz que os canta, eu já sabia que se tratava de algo especial. Porém, só fui dar a devida atenção a essa obra-prima alguns anos depois, quando um amigo me recomendou com tanta convicção que eu simplesmente não pude mais ignorar.

Como em outros casos citados anteriormente, “Blue” me apareceu na hora certa. Sem dúvidas, foi um dos discos que mais influenciaram a mudança de sonoridade pela qual eu passei no decorrer da minha trajetória. Faltam palavras pra descrever o que a Joni Mitchell conseguiu nesse disco.

Além da unidade musical da coisa toda e das letras maravilhosas (“I’m so hard to handle/ I’m selfish and I’m sad/ Now I have gone and lost the best baby that I ever had/ Oh, I wish I had a river I could skate away on”, pra citar apenas um curto trecho de “River”), o disco traz a melhor performance de uma cantora de que eu consigo me lembrar. Vai além do que é humanamente possível, chega a ser revoltante que alguém consiga mesmo fazer aquilo tudo e ainda soar tão natural. Além disso, é um álbum recheado de verdadeiros clássicos: além das já citadas “A Case of You” e “River”, temos também nada menos que “Blue”, “Little Green” e “The Last Time I Saw Richard”. Resumindo uma longa história, não existe nada comparável a “Blue”.

Ouça “A Case of You”:

Bright Eyes – “I’m Wide Awake, It’s Morning” (2005)
Enfim, um representante do atual milênio entre os meus preferidos. Me senti na obrigação de mencionar pelo menos um título com menos de dez anos desde o seu lançamento pra que essa lista não tivesse um ar “classic rock” demais. Fiquei na dúvida entre o “Father, Son, Holy Ghost”, do Girls, o “The 59′ Sound”, do Gaslight Anthem, o “Bows and Arrows”, do Walkmen, a estreia do Fleet Foxes, o “Funeral”, do Arcade Fire… Todos excelentes trabalhos, que reforçaram minha fé na inventividade das bandas de rock de hoje em dia e na longevidade do gênero. Porém, nenhum dos citados teve tanto significado para mim quanto “I’m Wide Awake, It’s Morning”.

Sinceramente, eu invejo qualquer jovem que ainda desconheça a obra do Conor Oberst. O choque do primeiro contato com músicas como “Lua”, “First Day Of My Life”, “At The Bottom of Everything” e “Land Locked Blues”, pra citar apenas faixas desse disco, é desses acontecimentos capazes de devolver a qualquer um o amor pela música. Se você tem entre 18 e 30 anos e gosta dos artistas citados anteriormente (especialmente dos Smiths), corra atrás de qualquer um dos discos do Bright Eyes ou de outro dos projetos do rapaz. Muito já se falou sobre ele ser a voz da sua geração, sobre ele ser um possível novo Dylan e coisas assim – o que o torna uma figura no mínimo controversa, sem dúvida, mas que também demonstra a imensidão do seu poder com as palavras.

Há um quê de caseiro na produção que dá um charme todo especial à gravação. Mais do que isso, esse aparente desleixo legitimiza as geniais letras que Conor Oberst canta com sua voz oscilante e trêmula, como a de alguém fazendo dolorosas confissões momentos antes de ceder ao choro.

Não é fácil pinçar um ou outro verso para demonstrar o quão bom letrista é Oberst. Para ilustrar esses elogios com dois exemplos menos óbvios, fico com “in the ear of every anarchist that sleeps but doesn’t dream/ we must sing, we must sing, we must sing”, da faixa de abertura, e “I could have been a famous singer/ if I had someone else’s voice”, de “Road To Joy”. Um pequeno grande disco.

Ouça “Road To Joy”:

The Replacements – “Let It Be” (1984)
Deixei para o fim o item mais complicado de ser comentado. Meu fascínio pelo “Let It Be” é tão grande que eu nem sei por onde começar. Na época do Ludovic, minha antiga banda, eu costumava me concentrar pros shows ouvindo “I Will Dare” incontáveis vezes seguidas antes de subir ao palco. Talvez aí esteja um bom jeito de iniciar a conversa.

“Let it Be” possui uma mística própria. A icônica imagem da capa, as inúmeras histórias envolvendo as gravações, o inexplicável elo entre músicas de sonoridades e registros tão diferentes, o fato de eles terem escolhido esse título apenas pra provocar o empresário beatlemaníaco da banda, sob o argumento de que eles conseguiriam fazer um disco melhor do que o homônimo dos Beatles… Assim como tudo que envolve os Replacements, há uma série de lendas em volta desse álbum.

Ainda assim, o disco não precisaria de nada além das suas onze faixas pra entrar para a história. Me recordo de uma resenha que saiu na ocasião do lançamento das edições de luxo da discografia do Replacements, em que o cara argumentava que a perfeição de “Let It Be” se constrói mesmo nos seus pontos fracos e nas escolhas questionáveis de seu repertório. Faz muito sentido. É como se, pra balancear os vários momentos tocantes do disco, era preciso ter outros puramente provocativos como “Gary’s Got A Boner” e o ébrio cover de “Black Diamond”, do Kiss – afinal, estamos falando de uma banda que era conhecida por seguir um caminho de auto-sabotagem, pela reputação de bêbados inconsequentes e metidos a machões. Seria de se estranhar um disco totalmente “maduro”, apenas de baladas e confissões de fragilidade.

O fato é que, quando o Paul Westerberg acerta, não dá pra ficar imune. E ele acerta a mão em quase todo o disco. Além da poderosíssima “I Will Dare” (com direito a solo de Peter Buck, do R.E.M., e a ironia perturbadora de “How smart Are You? How Dumb Am I?”), temos aqui outras composições fora de série. “Sixteen Blue”, pra mim, é a melhor produção entre tudo que se convencionou chamar de “alt-country” (as frases de guitarra do Bob Stinson são simplesmente fenomenais); “Unsatisfied” é de uma beleza desesperadora; o piano tocado de maneira genialmente displicente em “Androgynous” é capaz de conquistar qualquer um com sua doçura e espontaneidade. Isso sem mencionar a esquizofrênica mudança de tempo em “We’re Comin’ Out”, que transforma a base de um hardcore violentíssimo em uma espécie de improviso jazzístico, e o espetacular riff da segunda metade de “Seen Your Video”.

“Let It Be” termina com “Answering Machine”, em que Westerberg ilustra perfeitamente o isolamento descrito na letra ao tocar a música por conta própria. Só ele, sua guitarra distorcida, uma discreta percussão, alguns efeitos e toda a solidão do mundo na sua voz. “How do you say I miss you to an answering machine? How do you say ‘I’m lonely’ to an answering machine?”, ele pergunta pela última vez depois de ilustrar sua frustração em “try to free a slave from ignorance/ try and teach a whore about romance”, frases típicas de um bêbado angustiado e desiludido.

Está pra nascer uma banda mais encantadora do que os Replacements. E “Let It Be” é o auge dessa história tão rica, tão misteriosa, tão paradoxalmente divertida e triste.

Ouça “I Will Dare”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Lupe De Lupe”.

Leia mais:

Comentários

comentários

5 comentários

  1. Tô contigo no “Hallelujah”. Também gosto mais da versão do Rufus. Bela lista. Vou pesquisar o Bright Eyes e o The Replacements, únicos que não conheço.

  2. bah, minha maior surpresa foi ver o Rufus W. na lista do Jair! Sei q o Jair é bem versátil nos seus gostos, mas esse me surpreendeu. Admiro o Rufus p caralho, mas como ele é muito afetado, normalmente quem gosta de sons mais crus, tende a achar ele enfadonho, até entendo.
    Mas já q o Jair pediu p alguem avisar caso concordasse com ele sobre a versão de Halelujah do Cohen, faço aqui minha parte, pq concordo com ele. hallelujah na voz do Rufuz é sublime!
    Grande jair, cada vez mais gosto desse cara!

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