Já são dez anos de carreira. O trio de São José dos Campos, interior de São Paulo, formado por Thiago (guitarra e vocal), Marcelom (bateria) e Rogério (baixo), assumiu um nome que é também reconhecido como um estilo, Lo-Fi. Curiosamente, nada nesses dez anos mostra que a banda é lo-fi, como o Pavement nos ensinou ou como o pessoal da Transfusão Noise Records assumiu como etiqueta. Os três denominam o que fazem de “rock regressivo”.
Nessa lista de quinze discos que mudaram e moldaram a vida dos três, é possível entender com mais acuidade o que “rock regressivo” quer dizer, até mesmo antes de ouvir a música. Uma mistura de “rock puro” (por assim dizer), hard rock, hardcore, punk e… Rolling Stones, muito Rolling Stones.
Pra além disso, a Lo-Fi é uma banda com estrada. O mais recente (até esta data) é o disco “Meddling In Regressive Rock”, de 2017, que dá uma boa ideia do que essa mistura quer dizer.
“A Lo-Fi nasceu em 2008 tocando punk rock“, de acordo com o informe oficial à imprensa. “Os integrantes aprenderam a tocar seus instrumentos juntos, tocando punk e hardcore, inconsequentemente. “We Murder And Rape”, o primeiro disco é um foda-se a arte e ao mundo (ouça aqui)”. De lá pra cá, muita estrada, palco e acúmulo de experiências, pra levar a um outro tipo de “foda-se”:
“Agora estamos com dez anos de banda, quase quarenta anos (de idade), queremos muito tocar, mas estamos tentando escolher melhor os shows. E isso não é desmerecer show podre sem estrutura por aí não, a gente se orgulha muito disso (…) mas quarenta anos, filha, vó pra cuidar, trabalho, conta pra pagar… A gente precisa priorizar algumas coisas hoje em dia que antes não precisava tanto.
Não é desmerecer cena nenhuma, mas está na hora de colher alguns frutos”, eles dizem.
Eis a mistura que faz e fez os dez anos da Lo-Fi:
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THIAGO (GUITARRA E VOCAL)
RPM – “Rádio Pirata” (1986)
A minha sinceridade vai fazer eu passar por essa confissão. O primeiro disco de rock da minha vida não é nenhum clássico do punk, nem do grunge dos anos 80 ou 90. Foda-se os Iggy Pops, Nirvanas e Ramones da vida, eu tinha seis anos de idade, era fã do Michael Jackson e a faxineira que ficava comigo e com minha irmã enquanto meus pais trabalhavam ouvia muita rádio, obviamente. Na época, o RPM bombava na Stereo Vale 103.9FM e talvez por conta disso eu pedi um disco deles e me deram o “Rádio Pirata”. Eu ouvia todo dia e todo dia eu imitava algum integrante da banda, com um cabo de vassoura imitando guitarra ou baixo e a enceradeira como pedestal.
Ouça: “London London”:
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Guns N’ Roses – “Appetite For Destruction” (1987)
Voltando ao assunto de banda improvisada com cabo de vassoura, quando eu tinha meus dez anos a molecada da praça onde minha vó morava formou essa banda, imitando Guns N’ Roses no quarto de um amigo, no esquema guitarra e baixo de vassoura e microfone de escova de cabelo. Tudo com calça de moletom e camisa de caveira da Mesbla achando que era roqueiro. Um pouco depois disso meu cabelo cresceu pela primeira vez.
Ouça “Welcome To The Jungle”:
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Pink Floyd – “The Dark Side Of The Moon” (1973)
1993, treze anos de idade, depois de uma briga feia com meu pai, vou à sala e ele estava com esse disco na vitrola, com as luzes todas apagadas. Coloquei minha viola no saco e fui dormir. Do dia seguinte, sozinho em casa, ouvi o disco, sem saber inglês suficiente, mas tentando absorver tudo que a melodia passava, tentando entender o que o velho sentia na noite anterior. Ouço muito até hoje.
Ouça “Breathe”:
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Vários – 90’s Surf Music (1996)
Em 1996, rolou essa coletânea da Fluir que tinha Nofx, Satanic Surfers, RKL, Down By Law etc. Na época, eu ouvia mas não era muito minha praia. Depois, em 1998 ou 1999, já nem lembro mais, que esse disco influenciou minha procura tardia por bandas de hardcore e depois punk rock.
Ouça Satanic Surfers, “The Treaty And The Bridge”:
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Budgie – “Life In San Antonio” (2002)*
Eu não sou e nunca fui aquele cara sedento por informações de banda, nem fico garimpando coisas em lojas e Internet. Eu sempre deixei as coisas virem até mim e tenho sorte de ter amigos com bom gosto e o Rogério é um deles. Um belo dia e eu já devia ter meus vinte e cinco anos de idade, ele me emprestou um CD do Budgie, ao vivo, que agora eu nem lembro qual é. Mas o importante desse disco é o Budgie. Dizem que a banda é subestimada, pra mim isso é perfeito, eu não aguentaria ver essa turminha que fica imitando o Johnny Thunders e adjacências copiando o Burke Shelley e o Tony Bourge (mesmo porque eles são muito discretos e sem glamour pra essa turma). Pouco depois disso fundamos a Lo-Fi.
* Nota: o músico não citou especificamente este disco; como diz no texto, ele nem lembra qual disco ao vivo era, “mas o importante desse disco é o Budgie”; por isso, pra efeito de indicação ao leitor, escolhemos este.
Ouça “Zoom Club”:
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ROGÉRIO (BAIXO)
The Rolling Stones – “Beggars Banquet” (1968)
Anita Pallenberg, sinônimo do disco. Isso já basta. A desgraça da minha vida. Depois disso, não tive mais expectativa de ter uma vida feliz digna como nos venderam no inicio de nossas vidas, nenhum médico, xamã ou droga poderia me incluir em tal atmosfera de inteligencia e energia vital abstrata. Passando a ser um gato perdido em uma terra onde fracos não tem vez, o diabo é desmerecido, e ficarei aqui esperando por algum produto ainda não fabricado e lançado.
Ouça “Street Fighting Man”:
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The Rolling Stones – “Exile On Main Street” (1972)
Lá vamos nós inflacionar o mercado de discos usados mais ainda de forma irracional e fazer com que outras pessoas sintam que tenham tido toda nossa experiencia de vida lendo essa merda de poucas palavras. A vida de uma pessoa começa com o momento maravilhoso do nascimento, uma religião se inicia com uma obra-prima de literatura e minha vida se inicia com o o “Exile On Main Street”, do Rolling Stones. Bíblia, fonte maior de inspiração em todos os aspectos das artes. Não gostou? Tá fazendo hora extra no mundo, diga adeus a um mundo melhor e a uma vida digna, de novo.
Ouça “Tumbling Dice”:
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The Rolling Stones – “Black And Blue” (1976)
Aula de batera e baixo, aula de dança, aula de letra de música inteligente, aula de como recepcionar novos músicos pra sua casa, principalmente músicos com personalidade bem diferente da sua, aula de troca de visual, Bob Dylan pela primeira vez ficou pra trás nesse quesito.
Ouça “Hot Stuff”:
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The Rolling Stones – “Some Girls” (1978)
Sabe quando você contrata uma empresa pra fazer um projeto, uma obra, algo grande que envolva várias pessoas, e todo mundo vai trabalhar demais, em tudo, e só assim o projeto fica pronto? Então, mas tem aquela única pessoa, uma só, que vai assinar embaixo, e quando ela terminar de assinar você vai olhar pra obra e dizer, “foi ele”, “foi ele que fez tudo, sozinho, sem exagero”. Então, esse é o disco que Ron Wood assina embaixo.
Ouça “Beast Of Burden”:
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The Rolling Stones – “Bridges To Babylon” (1997)
Todo mundo acha que eu fiz faculdade, passei anos dentro daquele prédio e tive que passar em tudo e no final receber um diploma. tTudo mentira, a realidade acha que aconteceu, mas na verdade minha faculdade foi esse disco. Na época, muito músico brasileiro famoso na MTV falando mal do disco, mas é magnifico, prova que tá difícil até hoje a rapaziada sacar qual que é a parada de um grupo de músicos tocando junto, não importa o estilo. Dica: volte pra escola, leia Machado de Assis, sinta palavras bonitas fluindo na sua veia, depois então estará livre de um mundo de julgamentos vazios.
Ouça “Anybody Seen My Baby?”:
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MARCELO (BATERIA)
Black Sabbath – “Live At Last” (1980)
Quando os amigos da quarta série do primário começam a desbravar o mundo do rock que já lhes fora introduzido muitas vezes pela família, eu me identifiquei muito com o Black Sabbath e assim que juntei alguns trocos lavando carro pros tios, comprei meu primeiro CD, que era o único com o Ossie nos vocais na prateleira naquele momento. Não fazia ideia que era um álbum ao vivo e muito menos não oficial, não tínhamos muitas informações. A única coisa que sei é que este CD consumiu muitas pilhas do meu discman, pois não saía dos meus ouvidos. Eu escutava literalmente até as pilhas acabarem, foram as primeiras imagens que me vieram tocando bateria na minha cabeça. Acho que de tanto ouvir este disco consigo tocar aquela versão de “Wicked World” cheia de músicas no meio sem me esforçar muito pra lembrar. Uma coisa interessante desse disco é ver que nenhuma banda é perfeita em palco: vozes do Ozzy desafinadas, varias erros, porém muita energia, isso me fez construir o conceito de banda de qualidade pra mim. Posso dizer que foi um dos álbuns mais importantes pra mim por tudo isso.
Ouça “Sweet Leaf”:
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Helloween – “Keeper Of The Seven Keys II” (1988)
Após o descobrimento do rock, as crianças começaram a descobrir a energia do metal. Começamos a descobrir diversas bandas do gênero e já tínhamos mais facilidades ao encontrar CDs piratas no mercado e descobrir mais bandas. Foi onde encontrei este CD do Helloween, em um destes camelôs de pirataria. Na época, tínhamos Internet discada já, eu como já era bem nerd a ponto de começar a programar sites aos doze anos (1998), já conseguia fuçar mais sobre bandas e letras, foi então que encontrei uma bela relação entre o rock e assuntos políticos, principalmente neste disco. Letras como “I Want Out”, que colocavam o inconformismo de um país dividido, uma crítica ao Tio Sam, me fez desenhar a capa do single e sua letra no meu caderno. Letras motivadoras como “March Of Time” (“life’s too short to cry, long enough to try”) me fizeram sair deste espectro do metal, onde se falava de mitologias, espadas e deuses nórdicos, que seduziu muitos, e me levou pra um lado mais político, humano e real da coisa.
Ouça “March Of Time”:
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NOFX – “White Trash, Two Heebs And A Bean” (1992)
Com o tempo, mesmo ainda crianças, as amizades vão se acabando, pessoas vão tomando novos direcionamentos e não foi diferente pra mim. Como disse anteriormente, fui muito nerd na época em que a Internet ainda tudo era mato: não existia Google, YouTube, Fotolog, Twitter, enfim, o que tínhamos? mIRC. Foi aí que fiz algumas amizades fora da minha cidade e encontrei canais de música, principalmente música punk, onde eram distribuídos clipes e MP3 de bandas. A partir daí, descobri todo o universo do punk/hardcore. Nesta época, eu fazia mixtapes que gravava do computador (MP3), em fita K7, pois não tinha MP3 player ainda, o tape consumia menos pilha que o CD e você reaproveitavam a fita. Poderia citar muitos discos da Fat Wreck Chords nessa fase, porém opto por este disco do NOFX, que foi o primeiro que comprei e adorava ver o clipe do “Stickin In My Eye”, que na época levei uma madrugada pra baixar em algum canal do mIRC, talvez o #lbvidz. Também cheguei a tocar “Bob” com a primeira banda que tive na vida.
Ouça “Stickin In My Eye”:
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Descendents – “Milo Goes To College” (1982)
Apesar de ter se tornado um grande clichê (o que pode ser uma coisa boa), o “Milo Goes To College” foi um divisor de águas pra ir mais a fundo no hardcore e entender que tudo aquilo que vivi, durante esse tempo todo que passou, fazia sentido. Após ter entrado na minha atual banda, a Lo-Fi, eu que vim de uma escola do hardcore anos 90, comecei a conhecer as suas raízes, e o Descendents foi o que fez a ponte entre tudo isso pra mim. Na época, a banda tinha uma skateshop que vendia marcas consagradas do skate californiano (Dog Town, Z Boys, Real, Alva, Thrasher, Zorlac etc.) e tinha toda essa associação do hardcore e o skate – passávamos vídeos da Bones Brigade, tínhamos uma geladeira cheia de cerveja e uma vitrola com muitos discos de hardcore. Eu que ficava na loja trabalhando o dia inteiro, era o disco que eu mais ouvia, isso também me reaproximou do contato de infância que eu tive com os discos de vinil dos meus pais e comecei a colecionar novamente.
Ouça “I’m Not A Loser”:
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The Allman Brothers Band – “Brothers And Sisters” (1973)
E o tempo vai passando, vamos ficando velhos, percebendo outros gostos, diferentes prazeres e uma visão mais madura de muitas coisas, resgatando muitas vezes aquilo que sempre esteve ali na infância, mas muitas vezes não damos o devido valor. Mesmo gostando de ouvir e tocar hardcore e punk por muitos anos, comecei a procurar novas sonoridades e influencias e isso me levou a coisas mais velhas, bandas que eu não tive oportunidade de conhecer e que acabei me identificando muito. Uma delas foi o The Allman Brothers Band, uma banda de qualidade musical inexplicável por ter uma sinergia única. Creio que só quem teve uma banda de verdade consegue entender um pouco o que esses caras fizeram, tanto em estúdio quanto em palco. Uma coisa que me aproximou também foi o estilo de vida, a banda comprou uma fazenda no interior, onde ficavam e faziam churrasco, com família e amigos. Tive uma grande vivencia em fazenda no interior por grande parte da minha infância e sei a importância que isso tem, ainda mais no mundo de hoje. Ver uma banda fazendo isso é uma especie de realização suprema, conseguir se livrar de todos os problemas externos, políticos, sociais por um pouco e se conectar com a verdadeira natureza e a música, o que mais aproxima os seres humanos de sua essência. Esse álbum me remete a isso, uma ideia mais próxima do que quero de um futuro pra mim.
Ouça “Ramblin’ Man”: