O Na Mira Do Groove é um site bom por dois motivos básicos (que fazem os sites serem bons pra mim): tem textos muito bem escritos e é diversificado na medida do bom senso.
Quem está à frente da empreitada é Tiago Ferreira, um jovem jornalista que não tem receio de passear pelos muitos estilos musicais, sempre garimpando o inusitado desses estilos, com base nos clássicos desses estilos. O bom gosto das escolhas dá ao leitor uma ampla visão do que de melhor o espectro musical, comercial ou alternativo, pode oferecer.
Quem acompanha o site dele, percebe essa polivalência bem trabalhada, uma virtude que está bem sintetizada nessa seção de “Os Discos Da Vida”, mostrando que Ferreira soube tirar da música, nas várias fases da vida, um apoio e uma diretriz pra se formar como pessoa e como profissional.
A lista tem boas escolhas de vários estilos – e, claro, textos deliciosos sobre cada escolha. Ela reflete o Ferreira que se lê no Na Mira Do Groove. E é uma amostra de que o novo jornalismo musical, o online, descentralizado, independente, é muito bem servido e muito bem formado.
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TIAGO FERREIRA
Racionais MC’s – “Sobrevivendo No Inferno ” (1997)
Sempre que você pergunta pra alguém qual a maior conexão musical da sua adolescência com os anos 1990 costumam responder Teenage Fanclub, Nirvana, Pearl Jam. Bom, minha iniciação musical não foi com o rock. Só muito mais tarde que fui começar a gostar – e a MTV não tem contribuição alguma com isso. Em 1997, eu era um zé mané que vivia no fliperama e sonhava em ganhar um Nintendo 64. Quando meu irmão mais velho por parte de pai veio morar comigo, nasceu a experiência de ter uma pessoa próxima que iria me influenciar bastante. A primeira aquisição musical dele quando veio morar de fato com meus pais foi este “Sobrevivendo No Inferno” e o impacto que este disco veio a causar seria irreversível. Aí a minha fala começou a mudar, comecei a analisar a favela onde morava com um olhar de pertencimento mesmo – algo que viria a crescer exponencialmente uns dois anos depois, quando não perdia um Yo! MTV (agora a emissora entra) e comecei a comprar CDs de Sabotage, RZO, Realidade Cruel…
Ouça “Fórmula Mágica Da Paz”:
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Chico Science & Nação Zumbi – “Afrociberdelia” (1996)
Do nada, achei um CD de “Da Lama Ao Caos”, de 1994, perdido em casa. Eu estava no colegial e alguns trouxas me enchiam o saco pra ouvir algumas desgraças como Los Hermanos e Charlie Brown Jr. Se não caí no gosto desses trastes, tenho muito a agradecer a Chico Science. Não entendi nada no início, mas a insistência me fez gostar de músicas como “Rio, Pontes E Overdrives” e “Risoflora”. Coincidentemente, pouco tempo depois, ganhei de um vizinho meu o CD “Afrociberdelia”, e o impacto foi ainda maior. Eu achava o Planet Hemp legal, mas “Afrociberdelia” mostrou que não era necessário apelo panfletário algum (ainda mais de uma droga que só fui experimentar alguns anos depois) pra me fazer gostar de música pulsante. “Etnia” até hoje é uma das músicas nacionais que mais gosto. “Sobremesa” é mais lisérgica que qualquer apologia feita por Marcelo D2. “Sangue De Bairro”, acredite, foi a minha primeira conexão com o punk rock. De todos os álbuns, “Afrociberdelia” foi o que mais expandiu minha mente pra gêneros diferentes dos que eu costumava ouvir.
Ouça “Gigantic”:
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Rage Against The Machine – “Rage Against The Machine” (1992)
Uma coisa liga o rap ao som agressivo do RATM: as letras sociais e o peso sonoro. Portanto, não haveria outro disco pra me fazer transitar tranquilamente entre os dois gêneros – ainda mais em uma época em que eu era cabeça-dura em relação a outros sons. Meu irmão comprou o CD, mas quem sugou aquele encarte e o fez arranhar em faixas como “Killing In The Name” e “Fistful Of Steel” foi eu, rará. Eu escutei tanto, mas tanto este disco, que pouco tempo depois meu irmão mais velho me comprou de presente um DVD que mostrava apresentações da banda até pouco depois de “Evil Empire”, de 1996. Ele iniciava com o cover de “The Ghost Of Tom Joad”, de Bruce Springsteen e, o melhor de tudo, tinha as legendas das letras! Boa parte das doideiras da minha vida teve RATM como trilha sonora: beber vinho Sangue de Boi em frente ao colégio perto de casa, festinhas regadas a psicotrópicos nas casas de meus amigos que tinham os pais mais liberais, ressacas horríveis após misturar um número sem fim de vodca barata, barrigudinha (como chamavam aquela desgraceira do Corote) e outras podreiras etílicas… Vê-los no SWU em 2011 foi um compromisso que tive que cumprir com a minha adolescência. O show pode não ter sido excepcional, mas aquele momento de me esbaldar, pular e apanhar nos bate-cabeças ficará cravado naquele neuroniozinho escondido que mantém a nostalgia adolescente sempre viva.
Ouça “Killing In The Name”:
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The Prodigy – “Music For The Jilted Generation” (1994)
Eu devia ter uns 12 ou 13 anos e lembro que, depois do sucesso de “As Panteras” (2000), houve um revival de ouvir The Prodigy – também por conta de sua “quase” vinda ao Close-Up Planet dois anos antes (tem uma história legal sobre o ocorrido aqui). Eu já morava em outro bairro e comecei a me acostumar com outras turmas e, como todo adolescente, queria me sentir “incluído”. Meu gosto desenfreado por rap meio que me afastava disso. Depois de ver os clipes de “Smack My Bitch Up” e “Breathe”, falei: “porra, isso é legal pra caralho”. Passou uns dias e quando dei fé, estava no Shopping Ibirapuera passeando por lá com a minha mãe. Entrei numa loja de CDs, como todo garoto normal fã de música faria, e me deparei com o tal CD do caranguejo (“Fat Of The Land”, no caso). Era uma fortuna: devia custar uns quarenta reais, mas aconteceu de a minha mãe estar bem generosa nesse dia. Acho que era meu aniversário, portanto, não podia desperdiçar a oportunidade. Logo ao lado, vi o CD que trouxe como plus na bagagem: este “Music For the Jilted Generation”. Lembro de ter gostado do clipe de “Voodoo People”, mas quando a introdução de “Break & Enter” e os loops de “Their Law” começaram a rodar, eu percebi: “PORRA, isso é eletrônico!”. Não era porcaria de poperô ou músicas da Energia 97 FM, que tanto me aborreciam. Anos depois, comecei a ir mais a fundo no som do Prodigy e fiquei igualmente satisfeito ao ouvir “Experience” de 1992. Mas, não adianta: o CD que me fez expandir os horizontes em relação à eletrônica foi este aqui. Sem me prolongar, só vale deixar registrado uma coisa: a única coisa que o encarte trazia era uma ilustração de um garoto barbudo cortando a ponte que separava os ravers e as gigantescas caixas de som das viaturas policiais. Cresci com essa imagem fincada na cabeça, cara – apesar de hoje não frequentar e nem curtir mais rave.
Ouça “Voodoo People”:
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Bob Marley & The Wailers – “Survival” (1979)
Bob Marley esteve sempre na trilha da minha infância, adolescência e início da fase adulta. Meu primeiro contato foi com o “Legend”, de 1984, sim, e apesar de gostar bastante de “Three Little Birds”, “Redemption Song” e “I Shot The Sheriff”, foi em “Survival” que aprendi que Bob era ainda maior do que eu imaginava. Na faculdade, eu era (e ainda sou) muito amigo de um rapaz chamado Renato Lavdovsky: japonês de descendência russa com mais de um metro e oitenta de altura. Que voz que ele tem! Ele tirava “One Drop” e “Zimbabwe” com um vigor do cacete, e lembro que a gente costumava conversar bastante sobre reggae. Foi com ele que aprendi a gostar de grupos como Steel Pulse, The Upsetters e Skatalites, mas “Survival”, pra mim, é e sempre será o melhor álbum de Bob Marley – e olha que gosto demais de “Burnin'”, de 1973, e de “Natty Dread”, de 1974. Foi aí que conheci o Bob combativo, o Bob em sua fase mais afiada de preocupação social. Todos gostam de manter uma imagem de Bob Marley e, apesar de ter plena ciência de seus defeitos como pai, marido, religioso e até gangsta, a imagem que gosto de manter é a do Bob Marley líder de uma legião que sofreu demais com o massacre do apartheid e do preconceito.
Ouça “Zimbabwe”:
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The Who – “Who’s Next” (1971)
Eis o disco que me faz lembrar os tempos da faculdade. Tempos em que meros dez reais eram desculpa pra uma chapação sem fim. Olha só: eu estudei de manhã, das 7:30h às 11:00h, de segunda a quinta-feira (sexta era dia de aula online). Às quartas-feiras, já batia a vontade de passar no boteco depois da aula pra “passar a matéria”. Começava com aquele papo besta: “bora tomar só uma”. Quando ia ver, já eram 14:00h, 15:00h, e eu estava trêmulo de bêbado (vale lembrar que eu não costumava tomar café de manhã e, muitas vezes, bebia com o estômago vazio mesmo. Ainda permaneço jovem, mas hoje é impossível realizar tal façanha novamente). Da faculdade pra casa, de busão, o trajeto era de mais ou menos uma hora e, depois de bater uma pratada justa dos almoços tardios, a primeira coisa a fazer era curtir a brisa dentro do meu quarto com “Who’s Next” no talo. Aqueles arranjos de “Baba O’Riley”, a voz enérgica de Roger Daltrey em “Won’t Get Fooled Again”, a melancolia pós-bebedeira que casava bem com “The Song Is Over”… Que audição perfeita! Quando eu tinha alcance a alguma outra bebida em casa, mandava goela adentro novamente até capotar. Claro que não fiz isso durante todo o tempo de faculdade – apenas nos primeiros anos, quando ainda era vagabundo e não tinha que trabalhar ou fazer estágio. Foi um período curto, mas tão intenso, que sempre que ouço “Who’s Next” lembro o quanto aproveitei bem este período de descobertas intelectuais e emocionais na universidade.
Ouça “Won’t Get Fooled Again”:
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Paulinho Da Viola – “Acústico MTV” (2007)
Já gostei muito de pagode. Quando morava no conjunto Cingapura, da Vila da Paz, costumava me reunir com os amigos pra gravar em fitas-cassete as músicas mais impactantes de rádios como a Sucesso FM 96.9. Ouvi muito Zeca Pagodinho, Jorge Aragão e Fundo de Quintal. Pra paquerar algumas garotas, entrei na onda do pagode de Exaltasamba e Revelação, o que pelo menos me rendeu algumas bitoquinhas no colégio e na rua de casa (e uma coleção de momentos vergonhosos, claro). Isso era em 2000. Corta pra 2007, momento em que o rock, o rap e a música eletrônica compuseram boa parte de minha base discográfica. Nunca fui muito fã de MTV, mas bateu simplesmente de eu deixar no canal quando estava rolando o Acústico MTV de Paulinho da Viola. Aquilo mexeu com o meu cérebro: eu já gostava de “Timoneiro” e fiquei pasmo quando descobri que era dele “Pecado Capital”. Eu cantava aquilo no chuveiro uns seis anos antes e não sabia! Até hoje não tive vergonha na cara pra comprar o DVD desta belíssima apresentação, mas foi a música de Paulinho da Viola que me introduziu à obra de Cartola, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento, Clara Nunes, Paulo César Pinheiro…
Ouça: “Pecado Capital”:
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Captain Beefheart & The Magic Band – “Lick My Decals Off, Baby” (1970)
Antes de Don Van Vliet falecer, no final de 2010, a única coisa que sabia era que “Trout Mask Replica”, de 1969, significou uma quebra abrupta na música pop. Alguns anos antes eu tentei escutar aquilo com afinco, mas não entendia as dissonâncias de “Frownloand” e “Pachuco Cadaver” ou a bizarrice de “Hobo Chang Ba”. Depois de muito tempo “namorando” a biografia escrita por Mike Barnes, finalmente consegui comprar e me dediquei a decifrar as composições enigmáticas e o cérebro torto de um dos artistas mais geniais do século passado. Ouvi “Trout Mask Replica” de novo, de novo e de novo e pude entender um pouco daquilo. Mas a verdadeira assertiva do que representava a obra de Van Vliet veio com as sucessivas audições deste aqui: “Lick My Decals Off, Baby”. Além de ser o meu preferido dele (também gosto muito de “The Spotlight Kid”, de 1972), foi onde vi o perfeito encaixe de seus experimentos. O blues aqui está ainda mais subvertido que no disco anterior e músicas, como “I Love You, You Big Dummy” e “Japan In A Dishpan”, que colocam no mesmo eixo Sun-Ra e Howlin’ Wolf, continuam a mexer com os meus sentidos. Foi a partir da obra de Captain Beefheart que entendi o quanto a arte pode ser instigante ao confrontar suas percepções e a sua base de entendimento. Foi depois de tanto insistir aqui que, tempos depois, me senti apto a insistir na genialidade de um “Loveless”, de 1991, encontrar alguma pista sobre o significado de” The Shape Of Jazz To Come”, de 1959, ou “Horse Rotorvator”, de 1986… Obrigado, Van Vliet!
Ouça “I Love You, You Big Dummy”:
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Portishead – “Live In Roseland NYC” (1999)
“Mezzanine”, de 1998, sempre será pra mim o disco-maior do trip hop. Nada se compara àquela beleza do Massive Attack em questão melódica, emocional e, por que não, sexual. Mas só cheguei a ele graças ao Portishead. O Portishead de “All Mine”, de “Only You”, de “Glory Box”, em sua versão mais orquestradamente sedutora. Trip hop pra mim é puro libido, e não poderia imaginar outra coisa quando me deparei pela primeira vez com Beth Gibbons cantando a abertura “Humming”. Os arranjos dessa apresentação ainda hoje soam esplêndidos aos meus ouvidos. Se fosse pra indicar este disco a alguém, diria o seguinte: escolha uma faixa dele antes de gozar. E você vai querer gozar sempre.
Ouça “Glory Box”:
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Miles Davis – “Sketches Of Spain” (1960)
Existiram muitos Miles Davis. O Miles de “Kind Of Blue”, de 1959, o Miles da fase elétrica, o Miles funky de “The Man With The Horn”, de 1981, o Miles influenciado por Charlie Parker antes da era modal… Mas o Miles que mais me emociona é o Miles Davis orquestral. O trompetista sempre foi milimétrico em relação às suas composições e acho que isso ele aprendeu e desenvolveu melhor depois de trabalhar com o gênio Gil Evans. Foram as partituras deste gênio que moldaram a forma de Miles compor, e o exemplo mais bem-sucedido é esta beleza: “Sketches Of Spain”. Aqui, a meticulosidade da música europeia dialoga com a música instrumental norte-americana, gerando momentos fabulosos, como a lindíssima “Concierto De Aranjuez”, a desértica “Saeta” e a aventureira “Will O’ The Wisp”, que me remete a passagens humorísticas de um filme imaginário centrado na inteligência emocional. É um disco que me coloca e tira dos eixos de uma forma que não sei explicar.
Ouça “Will O’ The Wisp”:
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Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Elma”.
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