Conheci o trabalho de Rômulo Alexis através do impressionante “Phylum”, disco que ele lançou em 2014, pela sempre atenta Mansarda Records. Espantaram-me os temas levados no trompete, muitas vezes dramáticos, que me transportaram pra filmes em preto e branco da década de 1950 que adoro assistir e que não passam mais na tevê, nem na fechada. Eles estão aí de novo.
Mas Alexis, um improvisador sagaz, é também artista visual, promotor e performer. “Phylum” é mais uma via de expressão. Já foi de bandas como Decidelic (que homenageava um dos discos aqui citados), Experimento Prosótypo, Intifai, Dodecafunk, Mnemosine5 e “o grupo de música de invenção” JazSmetak. É integrante do OgØ, grupo de improvisação e música criativa, e do O.L.E.O. Já participou da banda de apoio de Jards Macalé, em duas oportunidades.
Foi também um dos fundadores do Circuito de Improvisação Livre de São Paulo, “iniciativa que parte dos esforços de um grupo de artistas interessados em viabilizar espaços para a realização de performances musicais em improvisação livre”.
Como se não bastasse, publicou a HQ “Anjo Da Violência”, em 2012.
O currículo é extenso e não importa a porta de entrada pra sua obra, se “Phylum” ou uma das suas várias vertentes. O fato é que sua mente transita livre pela arte, persistente, quebrando as insistentes barreiras da mesmice.
Nessa lista com seus “Discos Da Vida”, Rômulo mostra como se moldou sua faceta músico, em quais bases. Com tais apoios, só poderíamos mesmo ter visto nascer o artista intrigante que ele é.
(foto que abre o post: Mariana Maciel)
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Sarah Vaughn – “Sarah Vaughan With Clifford Brown” (1954)
Este disco de Sarah Vaughan me apresentou aquele que eu considero o trompetista mais inovador dos anos 1950. Clifford Brown, possuía uma dicção tímbrica tão nítida quanto a de Dizzy Gillespie, porém uma inventividade e um senso de improvisação e composição que aos meus ouvidos supera os do Professor Bop, pois foge dos clichês do idioma e tangencia sempre os limites do instrumento em criatividade. O jazz tem como característica principal o tratamento vocal dado aos instrumentos em seu fraseado. Neste disco é encantador a quantidade de diálogos inspirados entre Sarah e o conjunto. As improvisações de scat sing de Sarah com os músicos em “Lullaby Of Birdland”, a introdução atmosférica de Jim, e os contrapontos, a la Lady Day e Press, entre Sarah e Cliff no lindo tema “September Song”, são registros marcantes deste álbum inspirador e apaixonante. É deste tema, “September Song”, o solo de Clifford Brown que eu mais gosto neste disco.
Ouça “September Song”:
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Max Roach – “Percussion Bitter Sweet” (1961)
Líbelo de vanguarda tanto estética quanto comportamental, este álbum literalmente chapou minha cuca e até hoje seus temas me tocam sensivelmente. É um disco no qual arte e política confluem em uma só linguagem. As composições de Max Roach interpretadas por este dream team dos anos 60 são violentamente impactantes. Esta suíte de percussão agridoce é um retrato fiel das lutas dos negros estadunidenses por direitos civis e prenuncia muito dos elementos que o movimento free jazz viria a incorporar, como instrumentos de cultura não ocidental e performances incandescentes de solistas iconoclastas, como os magníficos Eric Dolphy e Booker Little. “Garvey’s Ghost”, em memória do líder negro jamaicano Marcus Garvey, abre imponente o disco. Canção instrumental onde a maravilhosa Abbey Lincoln brada o tema em um arranjo poderoso sustentado pela bateria de Roach e as percussões dos Carlos, Potato Valdez e Totico Eugênio. A entrada de Eric Dolphy e seu clarinete baixo em “Tender Warriors” causa quase uma alucinação sonora. É um timbre e uma dicção musical completamente novos na música popular, que inauguram ferozmente um lugar pra este instrumento na cultura.
Ouça “Garvey’ s Ghost”:
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Ornette Coleman Double Quartet – “Free Jazz: A Collective Improvisation” (1961)
“Free Jazz…” marca uma ruptura não só dentro do jazz, mas em todo panorama de música ocidental popular. No começo dos anos 1960, acontecia uma verdadeira revolução sonora da vanguarda musical negra estadunidense. Entender a música de Ornette e todo seu contexto é uma autêntica aventura estética. O saxofonista reuniu neste registro dois quartetos de jazz no estúdio. Um time de músicos revolucionários, que tinha os trompetistas Don Cherry e Freddie Hubbard, o rebelde Out Eric Dolphy, os baixista Scott La Faro e Charlie Haden, e os bateristas Ed Blackwell e Billy Higgins, pra realizar uma improvisação coletiva dirigida e genial. Àqueles dados a catalogações podem elencar mais de uma duzia de estilos presentes neste fonograma. Música aleatória, improvisação livre, atonalismo, etc. etc. O que se ouve aí remete desde as improvisações coletivas das fanfarras dos portos de Nova Orleans até às experiências das vanguardas, fonte inesgotável de invenção em quase trinta e sete minutos de música. Conheci este disco por volta de 2003, mas fui captar seu conteúdo somente uns três anos depois, e é um disco pra se ouvir alto e com reverência, na mesma linha do “Ascension”, de Coltrane (1966).
Ouça na íntegra:
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James Brown – “Sex Machine” (1970)
Depois da minha frustração infantil com Michael Jackson, que deixou de ser uma figura com a qual eu me identificava enquanto jovem negro, quem salvou minha alma em um mundo cheio de Nirvanas e Guns N’ Roses foi James Brown. Conhecer e me aprofundar na obra de Mister Dynamite teve um impacto intenso sobre mim, no fim da minha adolescência. Vale lembrar que no começo dos anos 1990. a Internet não era essa maravilha que conhecemos hoje, e esse farto contato com as discografias que conhecemos ainda era ficção científica. Pro árduo trabalho de conhecimento discográfico, você dependia de comprar o disco ou que algum conhecido comprasse o disco, ou o CD, pra assim conseguir reproduzi-lo numa fita cassete ou em CD pirata. Só a partir de 2003, com a popularização do MP3, a farta discografia que conhecemos hoje se tornou acessível. Quando por volta de 2006 finalmente comprei meu bolachão duplo de “Sex Machine”, acho que meus vizinhos até decoraram as músicas de tanto que eu ouvia, e no máximo volume. A música que fecha o lado B do disco é um tijolaço tão quente que eu sempre imaginei que se todas as casas de uma mesma rua tocassem esta música em bom volume ao mesmo tempo, abririam um buraco no meio da rua. James Brown literalmente agoniza em “Give Up Turn You Loose”. É um registro com o qual é impossível se manter indiferente. Música de boxeador insano. Jamais houve jamais haverá outro artista tão destruidor quanto James Brown.
Ouça “Give Up Turn You Loose”:
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Funkadelic – “Maggot Brain” (1971)
“Maggot Brain” é um disco ícone que fez minha cabeça e ouvidos por muitos anos. Quem me apresentou foi o ex-rapper e guitarrista p-funk Alexandre Bizzolato. Nos anos 1990, tínhamos uma banda que prestava um verdadeiro tributo ao Funkadelic (inclusive no nome que era Decidelic) e interpretávamos quase todas as faixas deste disco. Assim como o “A Love Supremme”, de Coltrane, este álbum registra o grupo de George Clinton no auge de suas forças criativas. A faixa-título, um réquiem para Jimi Hendrix, carregando uma carga emotiva que chora a morte do guitarrista. O genial em “Maggot Brain” é o uso dos recursos de estúdio e gravação, resultando em mixagens psicodélicas com overdubs oscilando em dança surround e uma miríade de colagens e paisagens sonoras, como em Wars of Armageddon. Fora isso, a performance da banda é arrasa-quarteirão. Bernie Worrel e Eddie Hazel abusam dos ruídos e timbres eletroacústicos, enquanto o “Doctor Funkenstein” George Clinton arregimenta seu coro doo wop de vanguarda nas deliciosas invenções vocais de “You And Your Folks, Me And My Folks”, “Back In Our Minds” e no folk funk “Can You Get To That”, que são chicletantes de grudentas. “Hit It And Quit It” e “Super Stupid” são black rock de primeira, em nada devendo às experiências de papa Hendrix.
Ouça “You And Your Folks, Me And My Folks”:
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Art Ensemble Of Chicago – “Les Stances A Sophie” (1970)
O AEC é uma das minhas bandas preferidas e este disco, considerado pela crítica como seu trabalho mais palatável, é o disco deles que eu levaria pra uma ilha deserta. O “Les Stances Of Sofie” tem a qualidade de ser um trabalho coeso e de perfeição climática surpreendente. Temas marcantes como o pungente “Theme De Yoyo” e o maravilhoso de “Theme De Celine” embalam esta obra cheia de timbres orientais e improvisações coletivas explosivas que são as características mais marcantes do supergrupo. Gosto de muitos registros da banda, mas este tem um valor afetivo. Quem me apresentou este disco foi o Francisco França, em 2008, nos meus primeiros anos de JazSmetak, banda na qual pesquisávamos as confluências entre instrumentos tradicionais e instrumentos construídos (plásticas sonoras) através da improvisação encarada como composição. O nome da banda é um neologismo entre jazz e o nome do multiartista, místico e educador Walter Smetak. O AEC nos interessava pois suas improvisações, além de inspiradas, incorporavam elementos da música do mundo (gongos, xenais, flautas, uma infinidade de percussões etc). Tive a alegria de assistir um concerto solo de Roscoe Mitchel, em 2013, e foi uma das coisas mais intensas que já presenciei.
Ouça: “Theme De Yoyo”:
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Jards Macalé – “Contrastes” (1977)
Jards Anet é um dos maiores compositores e intérpretes da música brasileira e ao mesmo tempo um dos menos conhecidos em um mundo de artistas jabaculados. Sua dicção melódica, o timbre de sua voz e as formas como incorpora sua respiração, seus balbucios ao canto são elementos que o tornam único, inconfundível e inimitável. As qualidades de sua interpretação vocal estão impressionantemente registradas nos sulcos deste disco maravilhoso que é o “Contrastes”, no qual mais do que o compositor, ouvimos o intérprete. O lindo samba “Contrastes”, de Ismael Silva, dá título ao disco. O tema “Black And Blue” tem interpretações que remetem a um mix de Satchmo com Tom Waits. O disco, conceitualmente fino e mutante apresenta com lirismo de arranjo e interpretação o “Poema Da Rosa” de Bertold Bretch, releituras de Moreira da Silva e Jackson do Pandeiro e tem participações ilustres de Dominguinhos, Orquestra Tabajara, Marlui Miranda e Gilberto Gil. A marchinha de Milton de Oliveira, “Relógio Do Cuco Maluco” se transforma em um poema sonoro recheado de efeitos estereoscópicos e experimentações vocais a la Henri Chopin. Estes elementos ampliam o espectro da música popular. Na capa original do disco Jards aparece beijando sua então namorada, a escritora Ana Miranda, que não autorizou a reprodução da capa original na reedição em CD (veja aqui a imagem original). Jards, pra a reedição, queimou a parte na qual o rosto da escritora aparecia. Este acontecimento ampliou o significado de uma das composições de Jards que eu mais gosto, que é a canção “Sem Essa” que tem o verso “…e fazer um álbum de fotografias, pra depois queimar”.
Ouça “Sem Essa”:
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Michael Jackson – “Off The Wall” (1979)
Michael Jackson era uma figura muito presente no meu lar durante toda minha infância. Era quase como um parente. Meu irmão mais velho teve de comprar um segundo disco do “Thriller” pois estragamos o primeiro de tanto que ouvíamos. Não lembro se o “Off The Wall” já estava em casa antes, mas é um disco que eu gosto muito mais do que o badalado “Thriller”. É a primeira parceria entre Quincy Jones e Michael. Temas como “Rock With You”, “Working Day And Night”, “Get On The Floor” estão no meu DNA sonoro. Tal qual várias crianças da minha geração eu amava a música de Michael Jackson, imitava seus passos de dança, assistia aos desenhos dos Jackson Five. Michael Jackson era um modelo de comportamento e referência artística pras crianças negras no mundo todo. Assistir sua transformação em branco causou um impacto profundo na minha identificação com o artista, tanto que até hoje nunca ouvi os discos “Bad” (1987), nem “Dangerous” (1991) inteiros. Só mais velho é que fui me recuperar, com a ajuda do Tio James Brown, e pude compreender melhor o peso da questão racial nas Américas e o que a transformação de Michael Jackson significou na história da indústria cultural.
Ouça “Get On The Floor”:
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Itamar Assumpção – “Às Próprias Custas S/A” (1983)
Itamar é um daqueles grandes compositores de música popular menos populares do Brasil. Ele criou na sua carreira uma séries de “eus líricos” que eram mezzo fictícios mezzo autobiográficos: o homem negro dito maldito. Pecha esta que a crítica despreparada adora colocar em músicos que escapam aos padrões médios de assimilação e consumo, ou dos padrões hegemônicos de valores. Itamar era um bendito de um inventor de canções populares. Conheci este disco no saudoso Jardim Elétrico, bar no bairro do Butantã que eu frequentava e eventualmente me apresentava. Emerson Negão, dono do recinto extinto, tinha como costume colocar a faixa “Noite De Terror” em um volume bem alto quando o clima estava intimista. Depois de vários minutos de “toc, toc, toc… toque”, quando Itamar dava seu berro assustador na música, não havia quem deixasse de pular na cadeira. Neste disco gravado ao vivo na Funarte de SP, Itamar tem a banda afiada pra destilar temas como “Batuque”, “Fico Louco”, “Peço Perdão”, e como um Machado de Assis do Black Rock tupiniquim, o artista narra a própria morte já acontecida, onde o coração, de amor, morreu primeiro. Igual a Simonal, Itamar era negro demais pro meio do pop rock dos anos 80, 90, 2000. O artista reunia as melhores qualidades do spoken word, canto falado e invenções vocais, tão caras às vanguardas, registradas nas suas intervenções a capela no disco e nos arranjos vocais de seu coro de musas, com Vânia Bastos, Virgínia Rosa, Suzana Salles e Denise Assumpção. A banda com Gigante Brasil, Paulo Lepetit, Luís Chagas e Rondó, completa o time que torna esta uma obra fundamental da música brasileira nestes estranhos anos 1980.
Ouça “Noite De Terror / Oh Maldição”:
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Lily Greenham – “Lingual Music” (2007)
A dinamarquesa Lily Greenham foi uma multiartista atuante em várias frentes da vanguarda européia nos anos 1960 e 70. Destaca-se sua produção como performer de poesia concreta e arte sonora. “Lingual Music” é o disco que eu conheci a menos tempo de todos da lista – creio que em 2012. Descobri o trabalho dela em uma coletânea de poesia sonora fundamental na biblioteca dos interessados: “Futura Poesia Sonora”. Este gênero vasculha os mistérios do som sem se ocupar da sintaxe musical inerente aos estilos. Mistura performances vocais às possibilidades tecnológicas dos estúdios de música eletroacústica. A artista nunca lançou um disco oficialmente, sendo este disco duplo uma coletânea de trabalhos realizados ao longo de décadas, apresentando quase quarenta peças que em sua maioria tiveram veiculações radiofônicas ou acusmáticas. São trabalhos de invenção e manipulação fonética e eletrônica do material sonoro vocal com farto uso de paisagens sonoras, música concreta e multi-trackings. Lily é umas das precursoras do uso experimental da voz, trilha seguida posteriormente por Meredith Monk, Maja Ratkje e radicalmente por Phil Minton. Foi a artista quem cunhou o termo “música lingual” pra definir conceitualmente suas criações. “Lingual Music” é um tremendo disco de música de invenção, embora seja catalogado como Non-Music em alguns acervos.
Ouça “Relativity”:
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Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Giallos”.