OS DISCOS DA VIDA: SÉRGIO MARTINS

O embate ideológico que se instalou no Brasil nos anos 2000 (ou por conta dos seguidos governos do PT) criou algumas curiosidades e radicalismos típicos do oito-ou-oitenta que impende as pessoas de ponderar. Eis que aí a revista Veja acabou tombando pra um dos lados – o dos “reaças” – de modo que os do “outro lado” execram tudo o que é publicado nas páginas da publicação.

Azar o deles. Há coisas boas na Veja e uma delas é justamente o que escreve Sergio Martins, considerado por muita gente, atualmente, o melhor crítico musical do Brasil (ou, ainda, um dos melhores jornalistas do Brasil).

Faz sentido aplicar esses superlativos. Martins, que também passou, por exemplo, pelo estimadíssimo e saudoso Notícias Populares, tem uma visão ampla da música, sem amarras ou derramamento de ódios por artistas e estilos típicos de muitos pares. Martins é, como se vê, diferenciado. Mas só por esse motivo é diminuir sua importância.

Martins escreve bem pra danar – e é isso o que importa.

Nessa edição de “Os Discos Da Vida”, ele nos brinda não só com sua amplitude de conhecimento musical e crítico, como com ótimos textos sobre suas escolhas. Dez bons motivos pras pessoas diminuírem barreiras pela leitura, cultura e diversão.

SERGIO MARTINS

Clara Nunes – “Canto Das Três Raças” (1976)
Em casa, sempre se ouviu muita música. Discos de Roberto Carlos (item obrigatório nas casas de classe média dos anos 1970), Secos & Molhados, Benito de Paula… “Canto Das Três Raças”, de Clara Nunes, foi o LP que bateu mais forte. Por quê? Porque Clara era linda e tinha um sorriso apaixonante (a ponto de eu pedir pra a minha mãe conseguir um autógrafo quando ela se apresentou no Santos, em 1976); porque ela tinha um vozeirão límpido e passava emoção a cada nota, e por suas aparições na TV, nas quais se vestia de branco e dançava candomblé – pensando bem, um gesto bastante ousado para os tempos de ditadura. “Canto Das Três Raças”, pra mim, é seu melhor momento artístico. Clara era então casada com o compositor Paulo César Pinheiro, que também se tornou seu diretor musical. Um dos principais efeitos desse casamento foi um repertório mais abrangente. “Canto Das Três Raças” tem canções do próprio Paulo César, lindezas de Nelson Cavaquinho (“Tenha Paciência”, com o parceiro Guilherme de Brito; “Riso E Lágrimas”, com José Ribeiro e Nelson Brandão), Vinicius de Moraes (“Ai Quem Me Dera…”) e “Lama”, de Mauro Duarte, que traz uma das melhores interpretações de Clara. Foi o primeiro disco que eu aprendi a cantar de ponta a ponta – e se bobear, ainda hoje consigo me lembrar de 90% das letras.

Ouça “Tenha Paciência”:

Trilha Sonora – “Os Embalos De Sábado À Noite” (1977)
Eu tinha onze anos quando a disco music finalmente chegou ao Brasil. E chegou de maneira espalhafatosa, com o Fantástico anunciando que todos os jovens queriam dançar como John Travolta e mostrando cenas de “Os Embalos De Sábado À Noite”. Me encantei tanto com aquilo que assisti ao filme cinco vezes. Nunca aprendi a dançar – desenvolvi um estilo “Coisinha de Jesus” de coreografia –, tive de esperar a idade adulta pra entender muitos dos assuntos divulgados no filme. A música, no entanto, pegou na veia. O melhor da produção dos Bee Gees – “Stayin’ Alive”, “Night Fever”, “You Should Be Dancing”, “More Than A Woman” –, com um apanhado de tudo o que estava sendo feito de soul/funk/disco em outros estados americanos: “New Jersey” (Kool And The Gang), “Flórida” (KC And The Sunshine Band), “Massachussets” (Tavares) e versões disco de obras de Beethoven (“A Fifth Of Beethoven”) e Mussurgsky (“A Night On Disco Mountain”). Boas o suficiente pra botar um sapato bico fino…

Ouça “You Should Be Dancing” (Bee Gees):

The Beatles – “Rock’n’Roll Music” (1976)
A minha relação com os Beatles se iniciou ainda na infância, quando eu assisti, na antiga TV Tupi, ao filme “Os Reis Do Iê-Iê-Iê”. Mas era difícil se manter fiel aos Beatles sem ter dinheiro pra comprar discos e/ou livros. A salvação chegou através dessa coletânea, que pertencia ao pai de um amigo meu. Eu ia na casa do sujeito e me deliciava com o lado mais cru do quarteto inglês (era doido pela introdução de guitarra de “Dizzy Miss Lizzy”). Não era a solução ideal pra minha fissura de Beatles – estou falando do final dos anos 1970 –, mas foi uma das poucas maneiras que encontrei pra em aprofundar na música deles. O problema foi resolvido aos poucos, com o relançamento da discografia completa dos Beatles no final dos anos 1980. Mas por um bom tempo, “Rock’n’Roll Music” quebrou um galhão.

Ouça “Dizzy Miss Lizzy”:

Blach Sabbath – “Sabotage” (1975)
Fui devidamente apresentado ao rock pesado por “Fly By Night” (1975), do Rush, e “The Number Of The Beast” (1982), do Iron Maiden. Porém, foi “Sabotage” que me transformou num headbanger (ou metaleiro, na tradução brasileira). Fazia anos que o disco estava fora de catálogo. Eu o encontrei nas mãos da irmã de um conhecido meu, que se desinteressou por heavy metal (preferia Gal Costa e Fagner), mas não entendia por que eu passei dias implorando pra ela me vender o LP. “Sabotage” tem uma das melhores sequências de abertura da história do rock: “Hole In The Sky”, a acústica “Don’t Start (Too Late)” e Symptom Of The Universe”, com aquele rife rasgado do Tony Iommi. E o que dizer de “The Thrill Of It All”, que começa igual a trilha de filme de terror da Hammer e depois abre espaço para outro rife histórico do Iommi? Quando entrevistei o Ozzy Osbourne, no início do ano passado, implorei pra que eles tocassem algo do “Sabotage”. Mas acho que ele nem se lembra mais de ter gravado o disco…

Ouça “The Thrill Of It All”:

Pat Metheny Group – “American Garage” (1979)
O disco marcou o início da minha incursão no mundo do jazz. Suave demais pra quem gosta de bebop ou hard bop? Pode ser, mas Pat Metheny é um guitarrista excepcional, melodista de mão cheia e neste disco ele conta com a colaboração do sensacional pianista e tecladista Lyle Mays. “American Garage” foi importante porque marcou o fim da minha adolescência e a chegada da idade adulta – e com isso a decisão de prestar jornalismo, de mudar de Santos pra São Paulo e arrumar um emprego pra não depender do dinheiro dos meus pais. Até hoje eu não consigo escutar “The Search” sem me emocionar.

Ouça “The Search”:

The Beach Boys – “Made In USA” (1986)
Adoraria contar que comecei a escutar Beach Boys com “Pet Sounds”. Mas no final dos anos 1980, não era tão cool assim gostar de Brian Wilson & cia. Isso sem falar que as lojas de disco das Grandes Galerias cobravam os olhos da cara pelos vinis que eles achavam raros. O ponto de partida foi mesmo essa coletânea, recomendada por um amigo de faculdade chamado Paulo Cavalcanti (hoje editor da Rolling Stone e um dos meus melhores amigos EVER!). E foi bom porque “Made In USA” me deu um apanhado geral da carreira dos Beach Boys, entender a passagem deles de banda de surf music, com fortes influências do doo wop norte-americano pros experimentos sonoros de “Pet Sounds”.

Ouça “Surfin’ Safari”:

Aswad – “Too Wicked” (1990)
O Aswad é a banda mais completa da história do reggae. Pra mim, eles perdem apenas pra Bob Marley & The Wailers. O fato de serem ingleses contribuiu muito pra isso. O Aswad surgiu como uma banda de roots reggae, mas assimilou influências do dub, do soul e do rock, fazendo uma receita musical única. “Too Wicked” nem é o melhor disco do Aswad – o meu predileto é “Live And Direct” –, mas ele marcou a minha vida de diversas maneiras. Primeiro porque um dos primeiros encontros que eu tive com a minha esposa foi numa apresentação do Aswad, em abril de 1991, no Olympia (São Paulo). Segundo, ele me apresentou uma sonoridade moderna, que eu veria com detalhes em julho do mesmo ano, quando fui ao Reggae Sunsplash, na Jamaica. “Too Wicked” foi o cartão de visitas pras batidas eletrônicas de Gussie Clarke, de Steely & Clevie, de Home T Bennett, da empáfia de DJs como Shabba Ranks e Cuty Ranks… E funciona bem até nos dias de hoje. Tanto que vim escutando “Too Wicked” no carro a caminho do serviço justamente pra checar se ele merecia ou não entrar nessa lista. Entrou com honras…

Ouça: “Confidential”:

Racionais MC’s – “Raio X Brasil” (1993)
Todo jornalista musical sonha em estar na plateia de um show que fez história. Pois eu estava cobrindo uma apresentação lendária dos Racionais MC’s, na quadra da escola de samba Rosas de Ouro, no final de 1993. Foi justamente o lançamento do disco “Raio X Brasil”, que pra mim ainda é o melhor deles. Eles tocaram acompanhados por uma banda – fato raro – e a plateia não fazia barulho: todos queriam prestar atenção nas letras do Mano Brown. Foi ali também que escutei pela primeira vez “O Homem Na Estrada”, que tinha o verso “superstar do Notícias Populares” (eu trabalhava no NP e aquilo virou matéria poucos dias depois. Matéria, não: abre de seção). O show terminou na metade por causa de uma pane elétrica, mas o “estrago” já estava feito. Naquela noite os Racionais tinham se tornado o maior nome do rap nacional.

Ouça “O Homem Na Estrada”:

Nikolaus Harnoncourt e Filarmônica de Berlim – “Bruckner: Oitava Sinfonia” (2000)
Aquelas cordas pareciam que estavam saindo do centro da terra. Começavam em pianíssimo, depois explodiam juntamente com as trompas, as tubas wagnerianas, os trompetes e os trombones. Depois, vinha a calmaria. E depois vinha a explosão… Foi assim que eu fui apresentado à Filarmônica de Berlim, que meses depois faria sua primeira visita ao Brasil. Aquilo é um soco no peito, uma massa sonora compacta, uma precisão que poucas vezes eu vi e ouvi na vida. E foi também a primeira vez que escutei a música do compositor austríaco Anton Bruckner. O impacto foi tão grande que eu passei a colecionar essa sinfonia com diferentes maestros – Herbert von Karajan, Riccardo Chailly, Wilhelm Furtwangler, Sergiu Celibidache, Daniel Barenboim. Hoje ela nem é a minha predileta do Brucker (prefiro a Sétima). Mas nunca me esqueço da emoção que senti quando a escutei pela primeira vez…

Ouça “Oitava Sinfonia”:

Stevie Wonder – “Talking Book” (1972)
Não poderia deixar esse disco de fora, foi meu passaporte de entrada na soul music. Mais uma vez, eu tive de lutar contra a falta de dinheiro pra comprar discos importados. “Talking Book” saiu numa coleção chamada Discoteca Básica, da Warner, no final dos anos 1990. Eu comprei o disco porque amava “You Are The Sunshine Of My Life”, que meu pai tinha em fita. A minha alegria foi descobrir que o LP tinha muito mais coisas interessantes. Stevie Wonder fez um disco para comemorar a chegada de um novo amor e mostrar sua parcela de culpa pelo fim do casamento com a Syreeta Wright (e aqui, nada supera “Blame It On The Sun”, uma das melhores confissões de pisadas na bola que já escutei). “Talking Book” foi também a primeira Discoteca Básica que escrevi para a BIZZ, em 1994.

Ouça “Blame It On The Sun”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Marcos Bragatto”.

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Comentários

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Um comentário

  1. Sérgio Martins você pode me dizer sua teoria para a Inglaterra ser o berço das melhores bandas da história mundial?Parece que lá é um berço cultural infinito…

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