OS DISCOS DA VIDA: VALCIÃN CALIXTO

Valciãn Calixto é do Piauí. Em 2016, lançou seu primeiro disco, “Foda!” (leia resenha aqui) e se já é difícil pra quem tá no grande eixo Rio-São Paulo e pras capitais “adjacentes”, como Curitiba, Porto Alegre e Belo Horizonte, imagine pra quem vem de um estado completamente desmembrado do ideário popular dessas regiões e, principalmente, da imprensa.

Isso, óbvio, não é problema, em dias de redes sociais a facilitar a troca de informações e contatos, mas essencialmente não é um problema quando você tem uma guitarra feroz, letras sagazes e socialmente preocupadas com os dilemas da atualidade (“Sobre Meninas E Porcos”, falando de pedofilia, é primorosa), e quando a criação é viável pras mentes de hoje, quando fala direto ao coração.

Valciãn é jovem ainda (é de 1991), não vive num país pequeno nem com dinheiro sobrando, que permitiria a um artista fora do eixo circular como deseja e como sua arte necessita, mas ele tenta e “Foda!” é seu grito ao mundo: é pra ser ouvido.

Não há distância que separe vozes que queiram falar de ouvidos que precisam e querem ouvir. No meio desse processo, da vontade à ação de criar, há uma história. Aqui, nessa edição de Os Discos Da Vida, Valciãn lista dez obras que moldaram sua mente artística. Discos fora do padrão “roqueiro”, porque num país tão diverso e grande como o nosso, há mais do que as notas e os discos de sempre pra se inspirar.

O embrião da obra de Valciãn se baseia num não-padrão. E esse já é um ótimo começo.

Mastruz Com Leite – “Grandes Solos” (1998)
Vou tentar ser cronológico aqui. Minha história com esse disco é a seguinte: meus irmãos são músicos; o mais velho, inclusive, gravou todas as baterias do “FODA!”, que é o Marciano. Meu pai, que também é músico, já foi presidente da Ordem dos Músicos do Brasil (Piauí) e tudo, tinha uma banda de baile quando eu era criança e meus irmãos tocavam com ele. Depois a banda acabou e eu, por ser mais novo, não peguei esse tempo. Mas via os ensaios, brincava na sede, ficava sempre por ali e tenho na lembrança os dias em que eles estavam pesquisando as músicas desse disco pra tocar. Banda de baile toca de tudo e meu pai levava isso à risca, tocavam desde Ray Conniff até Mastruz Com Leite em festas contratadas por prefeituras, formaturas e outras mais. Eu lembro que como meus irmãos ainda eram “verdes”, não se garantiam tanto nos instrumentos, o pai pegava as notas soladas e passava pra eles irem tocando, nota por nota. Às vezes, pra banda passar uma música, levava uma tarde inteira ou ficava um pedaço pro outro dia. Foi uma época que eu não peguei, mas que pra meus irmãos foi fundamental na evolução musical deles, pra mim essas melodias e arranjos do Mastruz Com Leite estão imortalizadas na minha cabeça de tanto que ouvi através desses ensaios.

Ouça “Bicho Carpinteiro”:

Zezé Di Camargo & Luciano – “Zezé Di Camargo & Luciano” (1994)
Durante minha infância nos anos 1990 eu costumava passar as férias ou no interior ou na Vila Irmã Dulce, a maior vila da América Latina, onde minha madrinha mora. Ela é lésbica e morava com uma mulher a quem chamo e considero minha tia, a tia Sula. As duas vendiam caipirinha em serestas e na época tinham um bar bastante frequentado por um público tanto hétero como homossexual. Por lá, rolava muito reggae e sertanejo também, desde Roberta Miranda, Leandro E Leonardo, Rick E Renner e, claro, Zezé Di Camargo & Luciano era o que mais rodava, então todos aqueles arranjos eu tenho de cor na cabeça. Eu acho, inclusive, que a década de 90 foi a melhor fase da dupla, cada disco lançado por eles tem pelo menos dois grandes sucessos que estiveram na boca do povo. O timbre dos solos de guitarra são muito marcantes, era como se tivesse duas guitarras solando de tão forte que era o timbre, então eu separei esse álbum de 1994 que já começa com “Salva Meu Coração”, depois vem “A Gente Fica Sem Se Amar”, essa letra é muito real e bonita e direta. No disco tem ainda a regravação de “Você Vai Ver”. Eu lembro até das capas dos discos, tinha uma com o fundo azul e sempre eles dois na frente, o título dos discos era o próprio nome da dupla e eu acho isso esquisito que só, mas enfim, tá aí.

Ouça “A Gente Fica Sem Se Amar”:

Facção Central – “Versos Sangrentos” (1999)
Enquanto o Eduardo lançava o disco de 2003 do Facção Central, a galera da minha rua e eu estávamos ampliando nossos horizontes no rap, saindo do Racionais pra ouvir 509 E, Detentos Do Rap, Ndee Naldinho e claro, a metralhadora do Facção Central com esse disco. Faixas como “12 De Outubro”, Dia Dos Finados”, “Isso Aqui É Uma Guerra”, “A Minha Voz Está No Ar” e a abertura desse disco fizeram nossa cabeça demais ali no Renascença 2, bairro onde cresci em Teresina e ainda moro. Desde então eu sempre me questionei sobre o porquê de o Facção não ter tido tanto “sucesso” como o Racionais, mas hoje entendo que os caras eram muito mais dedo na ferida, incomodavam mesmo e possuíam um lirismo que até hoje não conheci igual em grupos de rap no Brasil. Pra mim, é como se eles fossem o NWA do Brasil.

Ouça “Isso Aqui É Uma Guerra”:

Sex Pistols – “Never Mind The Bollocks Heres The Sex Pistols” (1977)
Depois precisei mudar de cidade, passei uns três, quatro anos fora e quando retornei ao Renascença, a galera já não era a mesma, a empatia com os remanescentes também não, foi quando eu foquei mais no rock e olha só, o rock nacional. Naquela época eu era idiota suficiente pra acreditar que não fazia tanto sentido ouvir muito internacional, já que não sabia inglês, como não sei até hoje, o que é uma tristeza, apesar de que agora tento recuperar o tempo perdido aí. Então meu pai possuía muitas revistas com cifras, vigu, como ele chamava. Até hoje tem um bocado delas lá em casa. Muitas, além das cifras das músicas, traziam histórias dos discos, de bandas, história do rock, daí que quando cheguei em 1977 e li algumas das loucuras do Joãozinho Podre com o Sid Viciado, achei insano demais, pra mim que fazia tudo só, ouvia tudo só, descobria bandas só, foi a salvação. Nessa época eu já estava no ensino médio e um amigo meu tinha computador e Internet na casa dele e eu dava mó ponto dele me chamar pra passar o fim de semana lá na casa dele. Eu esperava ele e o irmão dele dormirem e ficava de madrugada sozinho lendo todos os escândalos envolvendo o Sex Pistols, vendo vídeos ao vivo dos shows com eles, procurando entrevista com alguma legenda em português. O que não é aquela letra de “Bodies”? “Throbbing squirm gurgling bloody mess/ i’m not a discharge/i’m not a loss in protein/ i’m not a throbbing squirm”, são imagens pesadas demais chegando na adolescência de alguém.

Ouça “Bodies”:

Replicantes – “Histórias de Sexo & Violência” (1987)
Então era Sex Pistols lá fora e Replicantes aqui. Esse disco me ensinou demais na questão das letras, em como ser lírico, agressivo, em como era possível os caras serem uma banda punk e falar de amor na lua, de amor trocado pela guerrilha como em “Sandina”, que tem no refrão: “todo mundo tem sua hora/todo mundo vai embora”, isso é o tipo da coisa óbvia que dita de certo modo causa mais impacto que muita filosofia de boteco. E a voz do Wander Wildner, o sotaque carregado nos plurais e palavras com “s” demais só davam mais punch pro som. Replicantes não é uma banda de músicos com excelência e tal, mas a tosqueira dos caras tocando consegue ser maior que tudo que alguém possa ver num palco, não sei como é hoje que os caras estão velhos, né, mas vai ser sempre uma boa banda pra mim.

Ouça “Sandina”:

The Distillers – “Coral Fang” (2003)
Porra, Brody Dalle, caralho, se você escutar essa mulher gritando uma vez na vida já vai ser motivo suficiente pra despertar o seu interesse e procurar saber quem ela é, qual era a banda dela, quantos discos gravou, fuçar tudo. A mulher grita lindo demais, quem diabo é Rodrigo Lima, Nenê Altro, Badauí perto dessa mulher gritando no microfone? Depois tem também a vida dela que não foi nada fácil na infância, o término do noivado com o Tim, do Rancid. Enfim, eu sei que “The Hunger” é a prova cabal da potência vocal da Brody. Escolhi o “Coral Fang” que é o mais pop dos álbuns do The Distillers.

Ouça “The Hunger”:

Planet Hemp – “Usuário” (1995)
Descobri o Planet Hemp porque o tecladista que tocava na banda do meu pai, o Danilo, (ele é meio irmão nosso, meu e dos meus irmãos, aprendeu a tocar junto com meus irmãos também) cantava umas letras lá quando o ensaio da banda do pai não tava rolando. Eu era novo demais, não me ligava ainda em conseguir discos pra ficar ouvindo, só anos depois, também no ensino médio, conheci um cara que tinha os discos do Planet Hemp. Então, eu ficava pedindo pra ele cantar pra eu aprender as letras. Depois quando comecei a mexer com Internet ia em lanhouse só pra acessar a Rádio Uol e botar o “Usuário” pra tocar. Até então, só conhecia os sucessos desse disco. Depois quando eu comecei a comprar CD pirata, CD com discografia completa de banda, tudo em MP3, que eu fui sacando os outros discos. Eu era meio idiota, botava os caras falando de maconha na maior altura lá em casa quando a mãe tava rezando na cozinha, doidera. Eu acho que o Planet foi uma banda muito importante e hoje a discussão que eles traziam nas músicas é pauta política. Quando você pensa isso e lembra que os caras foram presos por nada é foda.

Ouça “Mantenha O Respeito”:

Davi Moraes – “Orixá Mutante” (2004)
Depois disso tudo eu comecei a pesquisar melhor as coisas, ser um pouco mais seletista mesmo. Nisso, descobri o Davi Moraes, filho do Moraes Moreira. O Davi cresceu naquele meio ouvindo muito frevo, muita marchinha, muito solo do Armandinho na guitarra baiana, muito arranjo complicado de metal e ele conta que tirava aquilo tudo de ouvido, ganhou velocidade tocando coisas de metal na guitarra e criou um estilo percussivo de tocar advindo dos batuques de todos esses ritmos. Então, esse disco pra quem gosta de sacar guitarra, é muito bom. O Davi tira uns sons de percussão na guitarra, faz células rítmicas de percussão no instrumento, é um monstro e já tocou com Caetano, Ivete… Atualmente tá na banda da Maria Rita.

Ouça “Som Das Ruas”:

Sasha Keable – “Black Book” (EP) (2013)
É o único EP que vou citar porque, deus do céu, Sasha Keable é bom demais! Cê pode ouvir se tá triste, se tá alegre pra ficar mais alegre ainda, pode ouvir em qualquer situação que é sempre bom. A Sasha é misteriosa demais, lançou dois EPs e o último já tem acho que três, dois anos, quase não posta nada em redes sociais, aqui e acolá faz uns feat e eu fico aqui torcendo por um disco cheio. E tem outra coisa, ela quem me apresentou o trip hop. Se não me engano conheci o trampo dela através de um post do King Krule no Facebook. Eu ainda não manjo muito dessas ondas trip, mas tenho bastante interesse de alcançar essa sonoridade um dia, seja numa faixa, seja um disco inteiro que eu possa lançar.

Ouça “Daydreamer”:

Vitor Brauer – “Nosferatu” (2012)
Eu sou dois anos mais novo que o Vitor Brauer, somos de capricórnio, nascemos e nos criamos em duas cidades horrivelmente quentes – Teresina, no Piauí; e Governador Valadares, em Minas. Eu falo isso porque penso que a gente aprendeu a queimar tudo dentro da gente com os nossos discos. Ele começou a lançar muito cedo, quando eu descobri seu trabalho, o “Nosferatu”, e as entrevistas que vi dele serviram pra fortalecer tudo aquilo que eu já trazia dentro de mim sobre postura, atitude, meter a cara e fazer as coisas mandando um foda-se a tudo e todos que se opusessem ou não entendessem nosso trabalho. Ele já tem o espaço dele, que é merecido e vai crescendo a cada lançamento, ou pelo menos, se renovando. Eu estou na luta tentando conquistar o meu. Nada tem sido fácil tampouco impossível!

Ouça “Amor E Morte”:

Na edição anterior, “Os Discos da Vida: Justine Never Knew The Rules”.

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