Quando o baixista e o empresário da Siouxsie And The Banshees chegaram ao hospital psiquiátrico, tiveram um choque. O guitarrista, que recentemente havia se separado da esposa, estava ali basicamente pra se tratar de um problema com a bebida que havia piorado. Mas ele estava, segundo informaram ao baixista, num pub. Steven Severin e Dave Woods viraram a esquina em direção ao bar e acharam John McGeogh cercado por estranhos. Ele beijava todo mundo. Havia raspado totalmente sua cabeça e sua careca mostrava uma tatuagem novinha em folha. Ele parecia louco. Ele foi ao pub com algumas pessoas que tinham passe-livre pra sair do hospital pra casa por um dia. Parece engraçado, você entra num pub e tem ali dez malucos. Não havia sinal de que aquilo ia acabar. O que se podia fazer?
O relato foi feito por Severin à Uncut, em 2014, trinta e poucos anos depois do ocorrido, quando a banda estava prestes a iniciar uma turnê pela Inglaterra, promovendo seu quinto e aclamado disco, “A Kiss In The Dreamhouse”, lançado em 1982.
Não havia muito tempo, o grupo havia sofrido uma baixa que poderia ter sido traumática. Em 1979, logo após o lançamento do segundo álbum, “Join Hands”, o guitarrista John McKay e o baterista Kenny Morris deixaram a banda e Severin e Siouxsie ficaram na mão – isso sem contar que o primeiro baterista foi Sid Vicious, o próprio, o que acarretou toda sorte de problemas imagináveis.
A dupla foi salva por Robert Smith, que excursionava abrindo pra eles, com seu The Cure já promovendo o primeiro álbum, “Three Imaginary Boys”. Smith acabou tocando dois shows por noite, um com o The Cure, outro com o Siouxsie And The Banshees.
Se a guitarra passaria a ser posto problemático pra Siouxsie, a bateria foi assumida por Peter “Budgie” Clarke, do Slits, pra ficar definitivamente (e casar com Siouxsie Sioux – eles se divorciaram em 2007). Mas Smith não pretendia ficar pra sempre. Ele tinha seu The Cure. Logo, então, a dupla conseguiu convencer McGeogh a sair do Magazine e assumir a guitarra, pra que Smith voltasse a se dedicar só ao The Cure e tudo entrar nos eixos.
Mas os eixos pra aquela turma nunca foi algo muito equilibrado. Drogas e bebidas eram algo tão comum e cotidiano que ficou difícil encontrar uma sequência lógica de lembranças. Até que a fuga do hospital psiquiátrico pro pub em 1982 fez com que Severin tivesse que pensar novamente no já grande amigo Robert Smith pra assumir a guitarra do Siouxsie And The Banshees.
Smith havia visto seu The Cure se desfazer após o lançamento do quarto disco, “Pornography”, em 1982. A banda, que era ele, Lol Tolhurst e Simon Gallup, se reduziu a ele e Tolhurst, com a saída de Gallup, após uma intensa jornada de dezoito meses de bebedeiras diárias. Não havia fígado que desse conta.
Com o Cure entrando temporariamente numa hibernação forçada, Smith aceitou o convite e assumiu em definitivo a guitarra dos Banshees.
“Eu me permiti ficar doidão por um bom período de tempo”, disse, em entrevista à Quietus. “Com os Banshees, eu não tinha responsabilidade alguma. Era só ligar minha guitarra e tocar. E tocar mal. Só tinha que ligar aqueles pedais de efeito todos, que é o básico do som dos Banshees. E Severin e eu nos tornamos bons amigos, embora… err.. nós nunca tenhamos sido muito bons um pro outro. Nossa amizade era baseada inteiramente em estados alterados. Onde quer que a gente fosse juntos eu nunca chegava em casa antes do dia seguinte. Sua esposa, Mary, tinha ódio disso, claro. Nunca me senti tão mal na minha vida como quando eu estive com os Banshees. Em 1983, eu atingi um ponto de total colapso. Eu realmente queria chegar ao limite. Sempre fui uma pessoa bem saudável e ainda acho que todos esses excessos minaram o que eu sou hoje”.
Foi por conta das bebedeiras que ele inchou e assumiu o apelido de Fat Boy.
“O ácido fez eu me sentir bem conectado a Severin”, disse Smith. “A gente costumava andar por Londres, vivendo como no desenho do ‘Submarino Amarelo’. Era realmente divertido, porque me livrei de todas as coisas ruins do The Cure. Quando você está tomando ácido com alguém de quem realmente gosta, é muito engraçado”.
O único disco que Robert Smith gravou com o Siouxsie And The Banshees foi o sexto, “Hyæna”, que foi bem sucedido crítica e comercialmente. A versão de “Dear Prudence”, dos Beatles, que não entrou no corte inglês do disco, mas entrou no estadunidense, ainda hoje é o single que a banda mais vendeu na história. E lá está Robert Smith no clipe oficial:
É desse disco também que está outro sucesso da banda, “Swimming Horses”, igualmente com Smith no clipe:
“As sessões foram muito loucas”, contou certa vez Severin. “Não creio que realmente tomamos algum ácido enquanto estávamos gravando, mas houve uma festa nos estúdios da Britannia Row. A banda de Marc Almond estaria lá, The Associates… Foi uma loucura. A gente não dormia, acho que por causa do ácido, por causa da bebida, não sei. Nós gravávamos das seis da tarde até as seis da manhã. Então, voltávamos pra casa e relaxávamos assistindo vídeos. Continuou e continuou, dia após dia, era insano”.
A Memody Maker chegou a chamar Robert Smith de “um talismã” dos Banshees, tal “despreocupação melancólica” que o disco carrega. Era um elogio que já mostrava que Robert Smith tinha construído mais peso e relevância com o The Cure do que Siouxsie teria conseguido com sua já sólida carreira.
Mike Hedge, engenheiro de som que trabalhou com a banda em “A Kiss In The Dreamhouse”, disse que “todos os dias chegavam com quatro ou cinco garrafonas de vinho que depois iam pra geladeira. Isso era por volta das cinco da tarde e sabíamos como seria a noite inteira. Estávamos trabalhando quatorze horas por dia e acho que eu não estava bebendo tanto quanto a banda, porque senão não poderia ter feito meu trabalho”.
A própria Sioux lembra na Uncut que a coisa ia bem além do vinho: “os rapazes começaram a experimentar cocaína e speed enquanto a gente fazia ‘Juju’ (o disco anterior a ‘A Kiss In The Dreamhouse’). Nisso John (McGeogh) era bem organizado e era o responsável por conseguir a cocaína”.
Ela não estava nessa. Hedges a apresentara a uma marca de LSD chamada California Sunshine. Quando uma jam session totalmente bêbada às cinco da manhã produziu uma estranha e sedutora interpretação jazzística, liderada pelo piano atonal de McGeoch, Sioux levou a fita pra casa e começou a editar e escrever a música que se tornaria ‘Cocoon’, enquanto viajava no LSD. A letra mostra Sioux voltando à infância, deitada em um berço, abraçando os joelhos, imaginando os pensamentos de uma lagarta se escondendo ‘no casulo de algodão’ como uma metáfora pra insegurança infantil. “Quando estávamos fazendo essas sessões e eu tomei ácido pela primeira vez, lembro-me de pensar: ‘será que devo ir ver minha mãe convidá-la pra tomar um comigo?’. Lembro-me de pensar que eu realmente queria entender tudo sobre de onde minha mãe veio e sobre minha infância”.
Foi esse cenário completamente fora de lucidez que Robert Smith aportou nos Banshees. E ainda teve o atrito com a própria Sioux, como ele lembrou numa deliciosa matéria pro Independent, em 1997: “‘houve um pouco na época, porque o Cure estava realmente vendendo mais discos do que os Banshees. Fizemos ‘Love Cats’ e foi um grande sucesso! Quando eu estava com os Banshees, eu recusei qualquer pagamento. Significava que eles não poderiam me obrigar a fazer nada. Sioux achou difícil; ela não está acostumada com homens dizendo ‘não’ pra ela… Eu não vi ou falei com ela, mas não tenho certeza se Sioux e eu estaríamos em condições muito boas hoje em dia. Ela provavelmente guardou um rancor'”.
Apesar do atrito, Smith credita grande influência dos Banshees no trabalho com o Cure – incluindo aí a loucura com o The Glove (que formou com Severin). Pra ele, “Kaleidoscope”, disco dos Banshees de 1980, foi crucial pra “The Head On The Door” (1985), por exemplo.
Severin mostra o quanto essa influência superou a música em si: “ele foi definitivamente influenciado por Siouxsie. Você só tem que olhar pra ele antes e depois dos Banshees pra ver isso. Eu tenho uma versão de onde o batom veio. Nós todos fomos a um clube no West End chamado Legends. Não sei se foi ópio ou LSD, mas algo foi adicionado à mistura. Ele então pegou emprestado o batom de Siouxsie, foi ao banheiro e, quando voltou, tinha o batom característico. E foi assim pra sempre”.
Com os Banshees ou com o Cure, Smith não deixa dúvidas sobre aqueles meses loucos: “temos uma reputação de excesso, e isso se justifica. Fomos bêbados por períodos de tempo bastante longos e o grupo sempre foi sociável, o que não se encaixa realmente com o que devemos ser. Mas tem havido membros do grupo que beberam em excesso com muita freqüência, e isso os reduziu a geleia, que foi o que aconteceu com Lol. Eu tive uma última aventura em 1989, quando completei trinta anos. Bem… é melhor do que se envolver com drogas pesadas”.
O que ele chama de sociável não é exatamente a imagem que se tem dele e dos Banshees. Aliás, nada da imagem dele corresponde muito com a realidade. Robert Smith tentou por muito tempo desmistificar sua imagem – a cabeleira, o batom, a maquiagem, o desleixo com as roupas e a própria bebedeira – mas foi tudo em vão. Ele é o que se vê nos vídeos, o tipo desajeitado pra dançar e cantar, o rapaz que aparenta uma timidez inviável pra quem tem quatro décadas de carreira nos palcos.
Mais do que isso, a saúde que depois de tantos excessos se manteve ali parece ainda mais firme, com Smith ganhando muitos quilos e aguentando shows de mais de quatro horas em pleno limiar dos sessenta anos.
A carreira de Robert Smith no Siouxsie And The Banshees terminou na virada de 1983 pra 1984. O The Cure estava de volta à ativa e Smith resolveu largar os Banshees antes da turnê de promoção de “Hyæna”. Sioux não o perdoou: “ele era uma daquelas pessoas que simplesmente não diziam ‘não’ a nada, então é difícil ter simpatia. Pra dizer dois dias antes de uma turnê que foi planejada com antecedência que ele não podia participar… – vai se foder!”.
Smith se defende dizendo que acha que “Severin entendeu e, veja bem, eu estava decidido; e apesar de tudo, eu avisei com duas semanas de antecedência, o que é mais tempo do que qualquer guitarrista jamais deu a eles antes!”.
A explicação pra volta do The Cure foi que seu corpo já não aguentava mais: “estávamos todos em um pub, então eu me encontraria com os Banshees. Eu tomaria algumas bebidas e depois entraria no estúdio. Nós começávamos a gravar às duas da manhã. Alguém faria um pote de chá com cogumelos. Então, eu voltaria pro pub. Eu costumava dormir no táxi, então eu tinha cerca de quatro horas de sono por dia. Eu fiz isso por cerca de seis semanas. Continuei até o final de 1983, depois despedacei. Era como a vingança de Deus, minha pele começou a se rasgar, caindo. Era quase como se meu corpo estivesse dizendo: ‘bem, se você se recusar a parar, eu vou parar você’. Eu tinha tudo que você pode imaginar dando errado comigo. Foi envenenamento do sangue, mas meu corpo não aguentou. Eu pensei que poderia viver sem dormir naqueles dias. Não podia. Daí, me levantei e fui fazer o ‘The Top'”.
As vidas em separado, com Smith levando seu The Cure profissionalmente, é que pode ter salvo sua vida. Ninguém é tão jovem pra sempre. Às vezes, a juventude dura apenas alguns poucos meses.
[…] para o texto. Depois de escrito, buscando outras informações nas Internet, nos deparamos com esse excelente texto do Fernando Augusto Lopes, do Flogase, que traz outras informações interessantes […]