John Seabrook você conhece do belo livro “The Song Machine: Inside The Hit Factory” (leia mais aqui), sobre a “fábrica sueca de sucessos pop”.
Ele tem, em sua tribuna na revista The New Yorker, exposto os dilemas dos novos tempos da indústria da música, principalmente no que se refere à relação comercial de artistas e os meios de comercialização surgidos no novo século, em particular os serviços de streaming. O assunto é fascinante, como já foi possível perceber em vários artigos que o Floga-se publicou nos últimos anos, tentando destrinchar e entender os mecanismos dessa era.
Seabrook adentra agora numa questão curiosa: como os compositores dos grandes sucessos pop, aqueles que realmente circulam nos topos das paradas mundiais e fazem dinheiro de verdade, estão se virando nesses tempos? O dinheiro está sumindo, por mais que os ouvintes executem as canções nas suas plataformas preferidas. A lei não acompanhou a tecnologia (é algo corriqueiro na história da humanidade, por certo), e agora há uma clara defasagem entre o que detentores de direitos autorais merecem ganhar e o que de fato estão recebendo.
Eis que o autor chega à questão: assim esses serviços vão matar a arte de compor? A análise está abaixo (numa tradução aproximada e livre, com o perdão dos ilustres fluentes na língua de Seabrook). A resposta, obviamente, depende se a ação da sociedade se dará a tempo.
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Autor: John Seabrook
Original: publicado originalmente em 8 de fevereiro de 2016, na revista The New Yorker, “Will Streaming Music Kill Songwriting?”
Pra muitos compositores, seu despertar comercial chega quando conseguem seu primeiro sucesso em serviços de streaming. Pra Michelle Lewis, uma singer-songwriter indie, com dois discos-solo, “Little Leviathan” (1999) e “Letters Out Loud” (2002), e que agora escreve basicamente pra outros artistas, como Cher, Lindsay Lohan, Kelly Osbourne, Deni Hines, entre outras, esse despertar veio com “Wings”, que ela escreveu em parceria com Kay Hanley pro grupo adolescente britânico Little Mix.
As duas têm estado ocupadas num show da Disney e, por isso, de cara, Lewis não havia se dado conta de o quanto a música havia se tornado popular.
“Nós saímos dessa bolha”, ela disse, “e nos demos conta, ‘temos esse sucesso, isso será demais! Quase três milhões de audições no Spotify!’, e então meu cheque chegou, e era de dezessete dólares e setenta e dois centavos. Foi aí que eu me espantei, ‘que porra é essa?’, então liguei pra Kay”.
Lewis era uma das quatorze pessoas creditadas pela canção (alguma receberam mais grana que outras). A discrepância entre o número de audições e o valor do cheque a surpreendeu. E os números em outros serviços eram similares.
“Começamos a falar com nossos amigos compositores”, disse Lewis. E assim chegaram a Dina LaPolt, uma advogada do meio musical de Los Angeles, especializada em direitos autorais e questões afins dos compositores.
Dina disse às duas que a menos que a divisão de ganhos dos serviços de streaming fosse mudada e o sistema de licenciamento musical fosse revisado pra era digital, a profissão de compositor estaria a caminho da extinção. E que elas estavam por conta própria, porque, embora todo mundo adore um compositor, os profissionais não têm poder de barganha, seja através de um sindicato, seja com outra instituição poderosa, então, quando o dinheiro na indústria seca, eles ficam em sérios apuros.
“Nosso queixo estava no chão”, disse Lewis. “Tínhamos que falar isso pra todo mundo”.
E se o streaming é o futuro da música, os compositores podem logo voltar de onde começaram. Stephen Collins Foster, o primeiro compositor profissional dos Esteites e conhecido como o “pai da música americana”, foi também o primeiro a morrer falido. Suas canções, que incluem “Oh! Susanna”, “Camptown Races”, “Old Folks At Home” (também conhecida como “Swanee River”), “My Old Kentucky Home” e “Jeanie With The Light Brown Hair”, fizeram um bocado de grana pra outras pessoas – editores, vendedores, promotores de shows, donos de casas de espetáculo, e, claro, as estrelas que as interpretavam. Mas nem todo daquele dinheiro acabou nas mãos do impecunioso Foster, que morreu em 1864, na cidade de Nova Iorque, aos 37 anos, com três tostões no seu bolso, e um pedaço de papel no qual ele havia escrito “queridos amigos e corações delicados”. Sua canção mais conhecida “Beautiful Dreamer”, saiu logo após a sua morte.
No próximo século e meio, as perspectivas dos compositores estadunidenses melhoraram bastante, muito graças à Lei de Direitos Autorais (Copyright Act) de 1909 e a subsequente intervenção do governo. Sob o regime que emergiu na primeira metade do século 20, compositores detinham o direito de “publicação” das suas canções – o direito autoral das letras e melodia, tal como ela estava no papel. A maioria dos compositores cedia parte desses direitos a editores em troca de um adiantamento e por serviços de marketing. Se o editor conseguisse fazer a música ser gravada, o compositor então concedia os direitos da gravação – geralmente a uma gravadora – no que era conhecido como “licença mecânica” (“mechanical license” – a palavra “mechanical” deriva dos tempos em que os rolos tocadores-de-piano eram a commodity da nascente indústria da música). Com cada cópia da gravação vendida, os proprietários da gravação original/master, como o autor do áudio é conhecido (a gravadora, no caso), pagava um “royalty mecânico” aos donos dos direitos da canção. Hoje, esse royalty é algo em torno de nove centavos de dólar por cópia.
Compositores também podem ganhar uma grana quando uma gravação é executada num ambiente comercial, como um restaurante ou um cinema. Com a disseminação da transmissão em rádio, nos anos 1920 e 1930, o “royalty de performance” se tornou uma parte significativa dos ganhos de um compositor. Geralmente, quando as canções tocam na rádio, a estação paga ao detentor dos direitos de edição uma taxa fixa que representa uma porcentagem dos recebimentos publicitários da rádio. Os donos da master, por sua vez, não ganham nada da rádio, da mesma forma que os intérpretes também não. A razão por trás desse arranjo bizarro, que afora os Esteites, existe só no Irã, na Coréia do Norte e na China, é que o valor promocional vindo da rádio vale a pena pro compositor; as gravadoras e intérpretes podem compensar ganhando com a venda de discos e de ingressos.
Em 1941, o departamento de Justiça estadunidense emitiu o que é conhecido como Decreto do Consentimento (Consent Decree), que permite às “organizações de direitos” (ou “associações de recolhimento”) de ordenar as taxas de licenciamento de um número grande de compositores, coletivamente, por claras razões de eficiência (algo como nosso ECAD). Em troca de isenção do que normalmente seria tratado como uma questão antitruste – a iniciativa privada se unindo pra estipular preços – os editores musicais concordaram em deixar uma corte federal determinar a divisão de royalties, se as partes não concordarem entre si. O Decreto do Consentimento também determinou o licenciamento compulsório, fazendo com que os compositores disponibilizassem seu catálogo inteiro a quem quer que pagasse as licenças. Assim, a arte de compor música é a mais regulada das artes criativas. Setenta por cento do que ganha um compositor vem de divisões determinadas pelo governo, ao invés do mercado livre.
A regulação ajuda a assegurar que os compositores evitem o destino de Stephen Foster e que sejam pagos de forma justa pelo trabalho deles. Hoje o sistema engloba talvez um milhão de compositores estadunidenses (a estimativa é baseada no número de associados de duas das maiores “associações de recolhimento”, ASCAP e B.M.I., e um chute sobre uma bem menor, a SESAC, que não informa seus números). O sistema oferece uma vida decente pra muitos na sua grade, e a perspectiva de extraordinária riqueza pra uns poucos. Na verdade, a quantidade de dinheiro que uma música de sucesso pode dar aos seus compositores é impressionante. Documentos judiciais em uma recente disputa envolvendo Pharrell Williams, Robin Thicke e os proprietários do espólio de Marvin Gaye revelaram que a canção “Blurred Lines” rendeu quase dezessete milhões de dólares em dois anos, a maioria vindo de rádios, com Thicke e Williams ganhando cada um mais de cinco milhões de dólares. E num longo processo movido pela família de Randy California, o ex-líder da banda Spirit, cuja canção de 1968 “Taurus” se alega soar bastante como “Stairway To Heaven”, calculou que a música do Led Zeppelin, que foi lançada em 1971, ganhou meio bilhão de dólares até 2008.
Levando em conta que os direitos autoriais valem por setenta anos, dependendo de quando a canção foi lançada, os direitos de um par de sucessos podem sustentar uma família inteira por muitas gerações.
A notável popularidade mundial da música estadunidense é muitas vezes atribuída, com razão, ao talento e diversidade de artistas e músicos do país. Mas isso só acontece por conta de um sistema que inspira e permite que os compositores se dediquem em tempo integral ao seu ofício (das dez mais baixadas músicas nos Esteites em 2015, de acordo com a Nielsen, apenas uma, “Trap Queen”, de Fetty Wap, foi escrita somente pelo artista). O sistema não recompensa apenas talentos comprovados; também promete a novatos avanços seguros em direção a ganhos futuros, dando-lhes tempo pra aprender seu ofício de forma gradual, até que também tenham um sucesso e possam começar a nutrir a próxima geração de talentos.
Mas a indústria da música começou a devagar e agonizantemente definhar na era digital, o local confortável dos compositores começou a se esvair. O declínio acentuado da venda de álbuns – resultado de uma mudança do tradicional modelo de distribuição pro modelo digital e agora pro streaming – deu um duro golpe no rendimento dos compositores, principalmente na “licença mecânica” (na era dos álbuns físicos, até mesmo uma faixa descartável num disco campeão de vendas rendia tanto ao compositor quanto os sucessos que faziam as pessoas comprarem o disco). E, como mostrou a experiência de Lewis, as taxas de ganhos vindo de serviços como Pandora, Spotify, YouTube, Amazon Prime e Apple Music são na maioria dos casos muito mais baixas do que seriam se tocassem em rádios. Normalmente, nos acordos das gravadoras com os serviços citados, quando uma música é executada, 60% dos ganhos vão pros donos da gravação sonora (a gravadora, normalmente), 30% vão pro próprio serviço, e 10% pros compositores e editores. Quando uma canção é executada numa webradio – Pandora é de longe a maior – os detentores dos direitos recebem um milésimo de centavo por execução.
Por que a execução por streaming vale tão menos que a de rádio? A razão básica dada é que um stream é geralmente uma transação direta pra uma pessoa, enquanto que a rádio alcança milhares ou até milhões de pessoas ao mesmo tempo. Mas se milhões de pessoas ouvem uma canção no YouTube, e o compositor ainda não recebe um pagamento decente, você começa a perceber que há algo de errado. Além disso, por que o valor do direito do compositor/editor vale tão menos, em comparação ao da gravadora, no mundo do streaming? Parece que é uma determinação das gravadoras, que detém a maior parte das gravações do catálogo estadunidense. Depois de ter ficado de fora, historicamente, dos ganhos dos “royalties de performance”, as gravadoras tiveram o cuidado, na era digital, de garantir seus ganhos, e em alguns casos de fazer valer seus interesses, no streaming.
Kara DioGuardi, uma compositora de priscas eras, que virou jurada do “American Idol”, me disse recentemente, “eu vou estar numa festa e ouvirei uma canção de amigos, e vou perceber que está sendo executada por streaming. Daí vou achar ‘que droga’, porque sei que os compositores não estão sendo pagos como merecem”. Pra compositores, há muitas razões pra odiar esses serviços. Talvez a maior indignação, sem contar o principal, que são os serviços enfiando a mão em seus bolsos, é direcionada às empresas que se beneficiam mais com os serviços, como Google, Amazon, Apple. Essas companhias, que estão entre as mais valiosas da Terra, usam a música pra levar tráfego aos seus sites e manter as pessoas nos seus ecossistemas. Pra elas, o negócio da música em si nada mais é do que um detalhe. Em 2015, por exemplo, a indústria global da música gerou vinte e cinco bilhões de dólares, pouco mais de um décimo da receita da Apple no ano. O que torna a situação kafkanesca é que de acordo com os termos do Decreto de Consentimento, que foi criado em parte pra evitar que os compositores monopolizassem o mercado, eles estão agora muitas vezes obrigados a licenciar suas músicas pra esses gigantes monopolistas por preços absurdamente baixos.
Há mais razões. Alguns serviços são piores que outros. O serviço gratuito do Spotify, que é financiado por publicidade, tem sido fonte de muita reclamação, assim como o YouTube. As receitas totais do Spotify da sua plataforma gratuita na primeira metade de 2015 foi um reles cento e sessenta e cinco milhões de dólares, sessenta milhões a menos que os ganhos da indústria com as vendas de álbuns de vinil e EPs no mesmo período. As receitas provenientes da parte paga do site são normalmente bem melhores que as vindas dos planos gratuitos, suportados pela publicidade, mas mesmo assim há problemas com os pagamentos de direitos. Parece que enquanto a empresa estava obstinada a conseguir as licenças pros direitos autorais das gravadoras, não está tanto assim na obtenção de todas as licenças necessárias sobre os direitos dos editores, em parte porque os metadados necessários pra identificar os donos dos direitos se perderam em muitos arquivos de canções. O Spotify tem depositado cerca de dezessete milhões de dólares em “royalties” numa conta separada até que esses donos dos direitos possam ser identificados (editores dizem que o número deveria ser de vinte e cinco milhões), e está construindo um banco de dados que irá tornar mais fácil identificá-los.
No final de 2015, David Lowery, líder do Cracker e do Camper Van Beethoven e um persistente provocador da indústria, entrou com uma ação de classe contra o Spotify, cobrando a empresa por infringir as “licenças mecânicas” de uma série de suas canções e de outros, pedindo até cento e cinquenta milhões de dólares em reparação. Lowery está argumentando que o Spotify não está se esforçando pra obter as “licenças mecânicas” de muitos dos compositores de sua base, incluindo as dele; o caso pode depender, entre outras questões, se a empresa apropriadamente cumpriu com os requerimentos técnicos de casos em que ela não sabia quem eram os donos dos direitos (um segundo processo foi aberto pela compositora Melissa Ferrick em janeiro).
Certamente os nomes que faltam não diminuíram a busca do co-fundador do Spotify Daniel Ek pelas licenças de toda a música do mundo. No entanto, não está totalmente claro se o Spotify realmente precisa de uma “licença mecânica” pra executar música. Um stream não é exatamente uma cópia da mesma forma que um download é – em muitos aspectos, é mais como uma “performance”. A Lei de Direitos Autorais de 1976 é datado demais pra oferecer uma orientação legal útil.
Em meio a toda raiva e incerteza, ano passado a advogada de direitos autorais LaPolt reuniu Lewis, Hanley, e algumas centenas de outros compositores, e os incentivou a fundar uma organização de defesa e instrução, Songwriters Of North America (SONA), que busca reformas contundentes no sistema de licenciamento, pra se encaixar melhor na era digital. Já há algumas poucas iniciativas legislativas em andamento, a nível nacional, como a Songwriter Equity Act, um projeto de lei cuja ideia é alterar duas seções da Lei de Direitos Autorais de 1976, pra aumentar a parcela que os compositores ganhariam dos serviços de streaming. Outro esforço, o Fair Pay, Fair Play Act – que exigiria das rádio começar a pagar royalties aos detentores de direitos de gravação de áudio (normalmente as gravadoras), bem como aos compositores, ao lado de algumas reformas pra se encaixar à indústria da música digital – foi apresentado na Câmara em 2015.
Na visão de LaPolt, a melhor esperança de uma real mudança é revisar a Lei de Direitos Autorais de 1976. Os compositores nunca realmente se organizaram antes, mas eles aprenderam. “É porque estamos indo bem. Enquanto a grana chegava era, tipo, ‘isso não tem nada a ver comigo’. Mas de dois anos pra cá, as pessoas estão dizendo ‘ei, quem mexeu no meu queijo?'”, diz Lewis. Mesmo agora, ela acrescenta, alguns compositores estão relutantes em reclamar, porque “a psicologia é ‘não posso acreditar que eles estão me pagando pra fazer isso tudo, é melhor não mexer no vespeiro, senão vão descobrir que sou uma farsa”.
Savan Kotecha, cuja “Love Me Like You Do” foi recentemente indicada a um Grammy, me disse que os compositores estão cada vez mais conscientes. “Afeta como você planeja o futuro e se vai investir num novo talento, porque no mundo do streaming você não vai necessariamente ver qualquer retorno do seu investimento. Por ora, a rádio tá segurando a onda. Mas rádios podem desaparecer, porque todo mundo tem celulares agora. E uma vez que o streaming chegue definitivamente aos carros, aí já era”.
De fato, os ouvintes continuam a aderir ao streaming. O setor aumentou 93% em 2015, com trezentos e dezessete milhões de canções transmitidas, ao todo. Somando-se o YouTube e outros serviços não pagos, o total chega a trilhões. Enquanto isso, as vendas de álbuns, o esteio de longa data do negócio, continua seu declínio, apesar do sucesso recorde de “25” da Adele, que representou 3% de todo o mercado de discos dos EUA em 2015, de acordo com a Billboard. Pra um compositor, tomar uma posição contra o streaming pode parecer tomar uma posição contra seu próprio futuro.
Os intérpretes estão encarando muitos desses mesmos desafios, mas eles, ao menos, têm a opção de sair em turnê e ganhar uma boa grana. São famosos, são astros. Sem os royalties, porém, os compositores terão apenas “queridos amigos e corações delicados” pra apoiá-los. Isso não funcionou muito bem pra Stephen Foster.