A Rolling Stone chamou de “briga de Golias contra Golias”. Não tinha Davi no meio. Pra revista estadunidense, o Pearl Jam peitou alguém do seu tamanho, quando, em 1994, comprou uma briga com a Ticketmaster nos tribunais do país.
Eric Boehlert, autor de um artigo publicado na Rolling Stone em 28 de dezembro de 1995, questionava: “se o Pearl Jam não conseguir, quem poderá? A mais poderosa banda do país foi pra cima da Ticketmaster. O grupo de Seattle tentou desbancar o domínio da Ticketmaster no negócio de shows. No final do ano, a corporação estava mais poderosa do que nunca, mas os roqueiros haviam dado à empresa um pesadelo no âmbito das relações públicas ao trazer à tona algumas das transações dos bastidores dessa indústria”.
A briga foi severa. Começou em 1994, quando Eddie Vedder e companhia resolveram estabelecer novos parâmetros de vendas de ingressos pra sua turnê daquele ano. O grupo havia acabado de ser alçado ao patamar de príncipes do grunge (da música jovem, na verdade), logo abaixo do rei todo-poderoso Nirvana. Os três primeiros discos, “Ten” (1991), “Vs” (1993) e “Vitology” (1994), até aquele momento, já haviam vendido mais de treze milhões de cópias (pra se ter uma ideia, “Ten” vendeu, no acumulado até hoje, 30% a mais do que “Nevermind”).
A banda talvez não tenha medido o tamanho da encrenca, muito menos sua força. O ponto nevrálgico foi a taxa de conveniência estipulada em US$ 1,80, ou 10% dos ingressos vendidos a US$ 18. A taxa era discriminada e clara aos consumidores. Já a Ticketmaster estava acostumada a cobrar até 30% e sem especificar os motivos. O Pearl Jam entrou com uma queixa antitruste contra a empresa e o Departamento de Justiça dos Esteites começou uma investigação federal pra tentar estabelecer se havia realmente monopólio e práticas abusivas da Ticketmaster – o artigo de Boehlert ressalta que “apesar de ter sido o Departamento de Justiça que abordou o Pearl Jam, muitas vezes foi erroneamente relatado que a banda iniciou a denúncia”.
A ressalva faz diferença. Os fãs por muito tempo acreditaram que o Pearl Jam era um espécie de banda-heroína em favor dos mais fracos – justamente os consumidores. Mesmo assim, é preciso reverenciar a coragem dos rapazes de Seattle, que afinal poderiam ter recusado a provocação do Departamento de Justiça.
O Pearl Jam alegou que a Ticketmaster abusou de seu domínio no mercado, cobrando taxas de serviço muito elevadas, porque não havia concorrência e ela simplesmente achou que podia cobrar o que quisesse. A empresa não só havia adquirido concorrentes diretos, como havia selado acordos exclusivos com grandes locais de concertos, deixando os consumidores e artistas sem outra alternativa a não ser utilizar os serviços da Ticketmaster. A fatia de mercado, segundo o artigo da Rolling Stone, àquela altura do jogo, era de nada menos que 70%. Os outros 30% eram distribuídos em “aproximadamente meia dúzia de pequenas empresas regionais”.
“Os contratos exclusivos da Ticketmaster eram invisíveis pros consumidores”, relata Boehlert, “até que o Pearl Jam levantou a questão. A ideia da empresa era simples: inflacionar as taxas de serviço, especialmente nos ingressos pra shows, na faixa de quatro a seis dólares, e oferecer à casa de shows 20% dos lucros da Ticketmaster durante o ano inteiro, em um determinado local e num teto de até US$ 500 mil, se a casa de show concordasse em usar exclusivamente a Ticketmaster. “Em Chicago, por exemplo”, apontava Boehlert, “uma banda não podia tocar no Rosemont Horizon, no United Center, no Soldier Field, no Arie Crown Theatre ou no New World Music Theatre, os principais locais da cidade, a menos que ela concordasse em vender e distribuir ingressos via Ticketmaster”. A coisa ficou mais grave quando as próprias casas de shows resolveram eliminar suas bilheterias, já que ali não podiam cobras taxas de serviço.
Outras bandas relutaram em participar da cruzada, embora Soul Asylum, Garth Brooks, Neil Young, U2 e Bad Religion tenham declarado apoio verbal. O co-empresário do R.E.M., Bertis Downs, testemunhou contra a Ticketmaster durante as audiências, mas mesmo assim o R.E.M. acabou usando os serviços da empresa na sua turnê “Monster”, com taxas de serviço a US$ 6,50 pra um ingresso de US$ 40. Aparentemente, não havia como escapar da força Ticketmaster.
Discussões sobre leis antitruste não eram novidade nos Esteites. A mais famosa e impactante foi a do cinema, que acabou colocando cada um no seu quadrado: estúdios não podiam ter distribuidoras, que não podiam ter locais de exibição, que não podiam ter estúdios. E é mais ou menos assim até hoje.
A briga Pearl Jam versus Ticketmaster fez a revista Time chamar o caso de de “Guerra Santa do Rock’n’Roll”, já que a Ticketmaster não tinha casa de shows, mas as dominava; não produzia música, nem distribuía, mas dominava os artistas. Num memorando arquivado na Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, de 6 de maio de 1994, o Pearl Jam afirmou que a Ticketmaster tinha um “monopólio quase absoluto da distribuição de ingressos pra shows”. Mas o que constitui um monopólio “quase absoluto”? A lei de patentes permite monopólios (posições de vendedor único) pra invenções e inovações; o copyright confere monopólios em obras literárias ou artísticas. O Pearl Jam tem o monopólio legal de todas as músicas e performances que eles criam, claro. A Ticketmaster tem um monopólio similar em ingressos? Ela argumenta que não. A Ticketmaster tinha concorrência, mas seus rivais não conseguiam competir. Como vimos, ela tinha 70% do mercado, o que torna bem mais fácil manipular pesos e medidas de atuação.
A Ticketron, o maior concorrente, foi vendida pra Ticketmaster em 1991, depois de perder milhões de dólares por ano a partir de 1988. Por que a Ticketron perdia milhões de dólares por ano, enquanto a Ticketmaster dava lucro? A Ticketron deve ter operado com menos eficiência, é o que se imagina. Na emissão de bilhetes, como em qualquer mercado contestado, as empresas (ou empresas) que sobrevivem serão as que melhor cortam custos, encontram novos mercados e planejam a longo prazo. Em outras palavras, os sobreviventes serão aqueles que tomarão as melhores decisões de negócios. O problema é que não era exatamente uma questão de “melhores decisões de negócios”, mas de como essas decisões se davam em detrimento de uma concorrência leal.
A revista Time, em seu citado artigo, dizia que “alguns fãs pagariam praticamente qualquer coisa para ver Barbra Streisand ao vivo. Mas apenas alguns podiam se dar ao luxo de pagar o que for preciso – até US$ 1.000 pra obter um bilhete com um valor nominal de US$ 350 por um assento em frente ao palco de arenas como Anaheim Pond e Madison Square Garden. (…) Quando se trata de conseguir ingressos pros melhores eventos, é o dinheiro que conta. Muito dinheiro. E como a temporada de concertos de verão cheia de estrelas começa – com artistas como Streisand, Billy Joel e Elton John, Rolling Stones e tais – uma ‘guerra santa’ estoura. Os preços dos ingressos sobem, forçando a indústria da música a escolher os lados”.
A batalha legal sobre quem deve controlar os ingressos e os preços aconteceu em um momento em que os fãs já estavam cansados do vale-tudo que elevava os preços dos ingressos mais desejáveis pra várias vezes o seu valor facial, à medida que eram revendidos, muitas vezes mais de uma vez. É o cambismo rolando solto, um negócio altamente lucrativo, como aponta a Time e qualquer fã sabe bem. E foi essa a fraqueza do Pearl Jam. “Essa guerra é uma mistura de cambistas, advogados de alto padrão que especulam com os ingressos pra lucrar, executivos de corporação que trocam favores, membros da indústria musical e mafiosos que controlam os principais blocos de ingressos e cobram um preço inflacionado. Enquanto o Pearl Jam aponta o dedo pras taxas de serviço relativamente modestas da Ticketmaster, são esses corretores de bastidores que são responsáveis pelas centenas de dólares adicionados ao preço de alguns ingressos. Embora esses cambistas lidem com menos de 20% dos ingressos, eles geralmente são os melhores ingressos: as primeiras dez filas em um show do Elton John ou das finais da NBA. Eles são a razão pela qual até mesmo os fãs que dormem nas bilheterias pra serem os primeiros na fila acham que não podem comprar os melhores lugares. Nenhum desses lucros finais é pro artista, apesar de se acreditar que algumas bandas negociam pesadamente com cambistas, impedindo que a maioria dos melhores ingressos cheguem à bilheteria. Em última análise, são os fãs que pagam por tudo”, refletiu a Time.
Com a máfia e a própria indústria envolvida e conseguindo lucros impressionantes com a revenda não contabilizada de ingressos pros mais variados eventos, as taxas de serviço da Ticketmaster acabaram parecendo uma pequena intriga do Pearl Jam. Mas não era. Se havia um grande fluxo de dinheiro circulando sem ser rastreado, isso era um problema do governo, não do Pearl Jam. A banda estava preocupada com seus fãs e o quanto seria “justo” eles pagarem por um ingresso nos meios oficiais de venda. Uma investigação não eliminava a outra.
Por mais de um ano, os funcionários do Departamento de Justiça entrevistaram empresários de artistas, profissionais de turnês, concorrentes da Ticketmaster e funcionários de bilheteria pra determinar se os contratos exclusivos violavam as leis antitruste. Então, em 5 de julho de 1995, com grande parte do Capitólio vazio por conta do Dia da Independência, o Departamento de Justiça emitiu uma declaração que dizia que a investigação estava encerrada.
A derrota atingiu o Pearl Jam com força, e quase todas as datas restantes de sua turnê daquele ano foram canceladas. Mas quem realmente ganhou e quem perdeu? Antes do caso Pearl Jam, o único debate sobre os ingressos na indústria dos shows era: quão alto os preços poderiam subir? As turnês dos Eagles, Rod Stewart, Elton John e Billy Joel estavam quebrando a barreira dos US$ 100, e as taxas de serviço nunca foram discriminadas. O consumidor não fazia ideia do que estava pagando. O Pearl Jam ajudou a virar a maré liderando uma onda de jovens bandas que vendiam discos a rodo e baixavam os preços dos ingressos, incluindo o Green Day, The Offspring, Stone Temple Pilots, Soul Asylum e Hootie And The Blowfish e Live. Em alguns casos, essas bandas sacrificaram uma parte de seus próprios lucros, mas a Ticketmaster também fez gestos simbólicos cortando suas taxas de serviço. A empresa chegou a abrir a possibilidade de alguns fãs comprarem ingressos por correio, sem qualquer taxa de serviço.
No final das contas, por incrível que pareça, essa luta rendeu vantagens mais pro consumidos, que viu muitas das taxas de serviço sumirem, num apelo da Ticketmaster pra refazer sua imagem. O caso também forçou concorrentes a mostrar pra Tickemaster que era possível escapar do cambismo. Os ingressos passaram a ter códigos de barra e o nome do comprador impresso.
Mas, observando o caso com vinte e cinco anos de distância, tudo parece ser uma tremenda bobagem. Nos dias atuais, onde a Internet é a maior ferramenta de vendas, voltamos à estaca zero dessa questão. Nem é mais (apenas) sobre monopólio, mas sobre serviços realmente prestados pelas vendedoras de ingressos, já que hoje ingressos nem mais precisam ser impressos, enviados pra casa ou até mesmo existirem de fato (basta um código de barras ou QR code pra ser escaneado na entrada do evento). Bandas grandes não conseguem vender elas mesmas seus ingressos e bilheterias físicas não dão conta da demanda, então é preciso utilizar ferramentas que essas prestadoras de serviços oferecem (ler mais sobre isso, no Brasil, aqui ou aqui).
Entretanto, a briga iniciada vinte e cinco anos atrás, em 1994, mostrou que os artistas, se quiserem, podem enfrentar um sistema pra que ele se torna mais acessível (aos artistas e aos consumidores) e tornar o ambiente economicamente mais saudável e justo.
[…] contra ingressos exorbitantes. Em meados dos anos 1990, a banda travou uma batalha pública com a Ticketmaster, alegando que a empresa cobrava taxas abusivas sobre as vendas de entradas para apresentações ao […]
Excelente artigo, Fernando!