“O jornalismo cultural que eu tento exercer desde 1988 é o jornalismo crítico. Ele tem uma única premissa: compromisso total com o leitor e nenhum com a criação ou seu criador. Fã é fã, jornalista é jornalista. Fã perdoa tudo. Jornalista não perdoa nada, ou não deveria”, escreveu André Forastieri, em 2012, em seu blogue no R7.
Começar a falar sobre crítica cultural citando Forastieri tem um intuito maior do que só citar o resumo do que vai se ler aqui: é pra provocar mesmo.
Forastieri, bem como Álvaro Pereira Junior e André Barcinski, é tido como um velho desconectado com as novas mídias e, mais profundamente, com os novos tempos. Nenhum dos três é. Os três ainda têm importância justamente por fazerem algo que a moçada que os repudia não consegue fazer: criticar com sapiência, ironia, bagagem cultural e sem perdão.
Tirando APJ, hoje no “Fantástico”, os Andrés se mantém em contato com as novas plataformas, de alguma forma – em blogues ou redes sociais. Mas, principalmente, os três continuam afiados, da maneira que podem.
APJ, recentemente, deu umas alfinetadas na “diva” Lady gaga, em matéria “paga” no “Fantástico”, mostrando o quanto a moça é paranoica com o nada, ela sim desconectada da realidade (vá à parte da entrevista propriamente dita).
Os três fazem na grande mídia (Globo, R7, Folha) o que a maioria dita descolada não faz nos seus próprios veículos, blogues que se autodenominam “independentes”: eles apresentam uma visão crítica da vida cotidiana, não só do ambiente cultural.
Enquanto isso, a crítica atual, nesses tempos de oferta horizontal de cultura das redes sociais, dos blogues e sites que copiam o que se produz em blogues e sites gringos, se esforça mesmo é em agradar os fãs das suas bandas preferidas, a assessoria de imprensa, a produtora que dará ingressos ou discos pra sorteio, e por aí vai.
Suas opiniões flanam ao sabor dos cliques que vão ganhar, dos mimos que lhe oferecem. O compromisso não é com o leitor, embora nem sempre com a criação ou com o criador, mas com a estrutura que rege o atual sistema de favores. É o novo toma-lá-dá-cá. Tome meus elogios de seus produtos à minha audiência, dê-me convites VIPs pras festas e shows e afins.
Realmente, como acentua Tiago Ferreira, no Na Mira Do Groove, “não há senso crítico na blogosfera musical brasileira”: “ter acessos e ser referência imediata como publicação musical tem lá os seus prestígios. Aposta-se no factual, em detrimento do senso crítico”.
O crítico dessa geração não se contenta em ser “crítico-não-crítico”: ele também é músico, jornalista, assessor de imprensa, promotor de shows, dono de selo, amigo das bandas, tudo ao mesmo tempo. E, pior, não sente um tropeço ético ao resenhar discos dos seu próprio selo, da sua própria banda, dos próprios shows que promove, dos artistas que assessora. Não, pra esse novo “crítico”, se empenhar no auto-elogio é plenamente aceitável e ele se orgulha disso.
A crítica atual vive do “poder do elogio”, como já dissemos aqui. Crítica atual e artistas atuais, como veremos mais abaixo.
Parece óbvio, mas infelizmente o ensinamento de jornalistas rodados como os citados acima não surtiu efeito. Por outra, criou-se uma consequência contrária: a trinca, por ser direta, provocativa, desafiadora, acaba sendo tratada com aquele dedo na ferida que ninguém gosta de sentir.
O ensinamento é: veja sempre o lado contrário, mesmo que doa em si mesmo ou naqueles ao seu redor, mesmo que seja impopular, porque normalmente é impopular; questione-se e questione o que ninguém questiona, desconfie, bata de frente, faça o seu leitor perceber que há nuances, vários pontos de vista, imponha uma discussão e não se importe de sair “vencedor”, porque não se trata disso; não corrobore, provoque a si mesmo e aos outros, não seja bonzinho porque a maioria é boazinha, desmistifique, destrua o óbvio e construa um novo pensamento, uma nova visão – tente, ao menos.
A crítica musical e cinematográfica, ainda bem, nesses novos tempos, continua a oferecer boas alternativas (veja uma boa lista aqui, excetuando-se o cidadão de óculos ali, e vá atrás de outros não incluídos, como a grande Gaía Passarelli, falando como poucos com a juventude atual, aqui e aqui, e o novíssimo Catárticos, feito por essa juventude – veja também dez sites de música que valem a pena seguir). Mas não é suficiente.
É que o crítico é uma espécie incompreendida quanto às suas intenções, mesmo quando o crítico entende quais são suas funções. O problema é que não só ele não entende sua função, como no Brasil, desde os tempos e pretensões provocativas do começo da revista Bizz, criou-se uma geração de jornalistas que se acham intocáveis e não se adaptaram aos novos tempos em que eles não são mais farol das novidades e indicadores do bom gosto, e uma geração de músicos que não aceita a crítica por bater de frente com tais jornalistas.
Lorena Calabria comandou o programa especial no Multishow, em 2008, “Os Músicos E A Crítica”, onde entrevistou alguns artistas famosos: Frejat, Skank, Ed Motta e Nando Reis. As respostas mostram o quão rancorosos estão esses artistas diante da crítica.
Pra começar, Ed Motta desqualifica a função: “eu não acredito numa crítica da arte, não acredito nessa função, acho que não deveria existir a crítica da arte, de um filme, mesmo que fosse de um artista pro outro, é um grande equívoco”.
Sem tirar a fala dele de contexto (que você pode conferir na íntegra nos vídeos abaixo), ele apresenta uma visão até interessante, apontando que a arte, por ser fruto da criação de alguém, envolvendo o emocional e, assim, um “desabafo” do criador, não há de se questionada: “não se pergunta por quê a um artista”, ele argumenta.
Nesse sentido, ele tem razão. Motta esquece-se, porém, que a análise crítica não é um exercício fútil daquele que ele considera “crítico”, como bem lembraram Dairan Paul e Maria Angélica Varaschini, no artigo “A Arte de Criticar” (com opiniões deste site, que podem complementar o corrente texto): “o que é considerado ‘belo’, na filosofia, é passível de discussão. A primeira teoria do gosto estético surge com o filósofo alemão Immanuel Kant, no seu trabalho ‘Crítica da Faculdade do Juízo’. Não por acaso, a obra surge no final do século XVIII, quando a burguesia toma conta da cultura e rompe os padrões clássicos da arte – que se baseavam na ideia da perfeição. Com o surgimento de outras propostas artísticas e poéticas, ao longo da história da arte passa a surgir, também, uma nova forma de apreciação, cujo pressuposto não se vale mais de um gosto único e universal” (leia aqui na íntegra).
E aos seis minutos e cinquenta segundos da Parte 1, Ed Motta admite que não aceita crítica, de jeito nenhum: “a partir do momento que eu mostro uma coisa que eu tô fazendo, eu espero que as pessoas gostem (…), mas o motivo da arte não é agradar, o motivo da arte é uma necessidade de fazer”. Sim, mas quando a arte é julgada, ela é julgada por essa necessidade e pelo resultado, por como o artista submete os signos e símbolos a favor da sua arte. Ou seja, há caminhos e caminhos. E se há caminhos, há interpretações. Se o artista submete sua arte a esses caminhos e interpretações, sua arte está sujeita a análises, mesmo que ele não as aceite ou as considere, o que é um direito do artista, obviamente.
Mas nem isso Nando Reis aceita, reforçando a desqualificação do “crítico”: “quem critica mesmo são os fãs”.
Frejat é mais centrado e lógico, apesar da adversativa desnecessária: “a minha opinião é soberana, não tem nenhuma pessoa que me faça mudar de ideia, ao mesmo tempo qualquer pessoa pode me fazer mudar de ideia, contanto que eu ouça um argumento convincente; ‘ah, eu detestei a sua música’, ‘mas por quê?’, o porquê é que é importante, se o porquê é forte, eu me obrigo a rever meus conceitos”.
A adversativa desnecessária, aqui, vem pela via de uma ideia que poucos aceitam e que eu chamo de “ditadura do argumento”. O “não gostei” ou “gostei” já deveria ser argumento suficiente pra determinar se pra aquela pessoa a obra é boa ou ruim. Não é preciso argumentos outros. Não numa conversa cotidiana. Já basta.
Entretanto, esses argumentos outros são importantes se o “não gostei” ou “gostei” for proferido num veículo de comunicação – do blogue lido por duas pessoas à grande mídia – por uma questão óbvia de necessidade de texto. “Não gostei” ou “gostei” não satisfazem o leitor que se propõe a mergulhar naquele artigo crítico.
Insisto na ideia, apesar do combate à “ditadura do argumento” vir de encontro a Kant, mais uma vez como lembra o artigo da jovem dupla Dairan e Maria Angélica: “o juízo do gosto, proposto por Kant, considera ser possível fundamentar a arte filosófica a partir do outro, daquele que aprecia a obra. É a atitude dele, chamada de ‘atitude estética’, que pode dizer se o objeto é belo ou não”.
Um dos questionamentos de Nando Reis é que a crítica “não é um debate”. Ora, não é mesmo. É só uma opinião, que, como a própria arte, pode e deve ser questionada, mas sem tanta importância, porque importância mesmo tem a arte e não a crítica. Quando o artista desmerece a crítica e tenta argumentar, debater, ele está sublinhando uma dimensão de importância que a crítica não tem, nem mesmo a da grande mídia (embora hoje os artistas de qualquer envergadura discutam até mesmo com a crítica de minúsculos blogues). Questionar a crítica pode até mesmo ser uma perda de tempo, simplesmente porque a importância da arte, da obra, está acima de qualquer opinião sobre ela.
A opinião sobre a arte tem importância passageira. É diversão, pelo menos – ou ao menos. O dito sobre o que é “bom” ou o que tem “valor” deveria vir da bagagem cultural de cada um. Ouvir as opiniões alheias pode ser um bom exercício de enobrecimento da sua própria bagagem cultural, mas não determinante. Um crítico, porém, por necessidade da profissão, deve incrementar sua bagagem cultural ininterruptamente, ele tem que ter tempo e dedicação pra isso, algo que as outras pessoas não possuem, nem mesmo o artista, o que dá ao crítico uma boa vantagem pra enfrentar a “ditadura do argumento”.
Mesmo assim, essa vantagem não faz dele melhor ou pior pra que sua crítica seja mais considerada por um artista ou um fã do que a de outro crítico.
Essa é a sinuca de bico: a crítica se dá importância e recebe importância de artistas e fãs numa amplitude que ela não tem. Mas ela precisa ser consciente de que é importante porque sem ela, com suas muitas nuances, forma um rico leque de opiniões que pode incrementar muitas “bagagens culturais” e a visão do mundo. Cabe ao leitor se aproximar daquele crítico cuja verve lhe agrade mais.
Mas vale lembrar: você não precisa concordar com o crítico. O texto crítico também é uma obra e como tal merece críticas e observações. É a questão imprescindível do meio-termo: nem tudo ao oito, nem tudo ao oitenta.
Analisar o mundo, como a trinca de jornalistas que abre este texto bem faz, é um preceito crítico. O mundo, a vida, carece de crítica. É assim que se apontam saídas pros dilemas constantes do dia a dia. É, pois, um exercício determinante de todos.
Parte 1:
Parte 2:
Parte 3:
Lembra do Ed Motta tomando uma surra do Alvaro Pereira Junior no Altas Horas? O que o APJ fala de critica ali é muito bom tambem.
Procurei esse vídeo, mas no YouTube ele foi tirado do ar. Lembro dessa história. Quem tiver o vídeo, pode postar aqui.
Sabe,há uns 2 anos atrás eu não conhecia quase nada sobre bandas e indie rock ou qualquer coisa do gênero. Eu tive pouco acesso a tudo isso e só gostava daquilo que todo mundo gostava, do óbvio, das bandas e músicos da grande mídia. O twitter e os sites que eu sigo me proporcionaram essas descobertas, sei que ainda tenho muito coisa pra conhecer, mas eu vou devagar, sem muita pressa, no meu tempo. O Floga-se é um site que eu amo muito, e a infinidade de coisas que é escrita aqui me fizeram menos tapada e um pouco mais antenada. Eu tenho o meu tempo pra absorver as coisas, algumas bandas eu preciso ouvir infinitas vezes pra começar a gostar, mas quero que saiba que tudo o que vocês escrevem tem muita importância sim para todos nós, pois é um ponto de referência, a gente acredita muito naquilo que vocês nos repassam, nem sempre concordamos com tudo, mas é muito bom ter esse apoio, ter acesso a essas informações. Sim as pessoas tem preguiça de ler, eu também tenho mas estou vencendo isso aos poucos e escrever é um dom, não é algo fácil na minha visão, principalmente quando trata-se de crítica. Obrigada por tudo 🙂
=)