“As gerações passadas lutavam contra inimigos reais, fossem cruéis ideologias políticas, como nazismo, fascismo ou comunismo, ou sinistras formas de governo, como a ditadura militar. Saber quem era O Outro ajudava a saber quem a própria pessoa era: sou aquela que luta contra Aquilo. A leitura política do mundo fica muito mais simples quando o inimigo tem um plano, uma plataforma e um braço armado pra lidar com quem ousa criticá-lo”: o abre do texto de André Cunha, no Brasil 247, que aponta a “Nostalgia do Inimigo”, é um bom caminho pra se analisar a bunda-molice da atual música jovem nacional.
Não há inimigo forte. Não há sequer inimigo.
Essa falta de canelas pra chutar deixa as coisas muito doces; e a juventude fica sem gana pra criar, gritar, se rebelar e ir em frente. Ao contrário, fica a olhar passarinhos, rosas e achar que o amor resolve tudo. Bom, na puberdade é possível que acreditar nisso seja razoável, mas alguns anos nas costas mostram que não é bem assim. O amor pode mais atrapalhar do que ajudar.
Não falo do amor ao próximo, o que constrói uma sociedade justa, o amor humano e tals; mas desse amor novelesco, bossa-novístico, piegas, aquele que o universitário lambe-botas toca ao violão pra impressionar as menininhas. O cidadão com dezessete, dezoito, vinte anos não pode estar preocupado com o amor perdido – ou, claro, não só com isso (afinal, ele deverá perder vários amores durante a vida, então é melhor depositar suas frustrações em outras ações). O moleque tem que ter ganas de querer mudar o mundo, de destruir tudo aquilo que a geração anterior disse pra ele que era bom, fazendo-o aceitar goela abaixo as regras em vigor. Os peitos dos mais velhos têm que ser afundados violentamente pelas solas dos tênis surrados dos mais jovens, pra que a sociedade continue em mutação, avançando.
E a música sempre foi um bom canal pra isso. Há outros, claro – a arte é sempre uma saída. Mas não é o que se vê hoje. Não há inflação preocupante; a crise é global e o alvo nem sempre é claro; o nível de emprego diminui, e as oportunidades têm crescido; as polaridades ideológicas não são tão agudas e rígidas; os Esteites estão enfraquecidos; a Igreja seria um bom judas, mas é dar murro em ponta de faca, já que as pessoas ainda acreditam em seres sobrenaturais, como Deus, deuses, anjos, santos, rezas; os governos são corruptos, mas como bem lembra Cunha, “o que seria senão quixotismo e nostalgia do conflito o ato de sair na rua pra fazer Marcha Contra a Corrupção, assim, de modo genérico? Uma coisa é a luta contra o corruptor e o corrompido. Outra é ser contra o conceito abstrato. Marchar contra isso tem algum efeito prático na sociedade?”.
Há a Marcha da Maconha, que é algo vazio, porque flana pelo discurso da liberdade de expressão, sem exatamente lutar por ela. Liberdade de expressão é um conceito. Há a defesa do meio-ambiente e “dos desprovidos”, como se vê na discussão sobre Belo Monte, mas as frases feitas e a desinformação dominam as linhas, de modo que é claro que o discurso se vale meramente visando a correção aos olhos do entorno social de quem discursa.
Assim, a classe média está perdida, sem inimigos. Ela diz que sofre, mas não sabe quem a faz sofrer (ou nem se sofre de fato). Enquanto isso, nas classes com menos posses, “menos abastadas” )pra usar um termo politicamente correto), o rap, o forró e o tecnobrega (com seus próprios métodos de produção e distribuição), e até mesmo o sertanejo e o axé, vão dando seu recado, expressando suas mazelas e suas qualidades, ganhando ouvidos e mentes. A música de massa é essa, essa é a verdadeira música popular, a que tem público, a que conjuga o verbo certo pra maioria das pessoas. O rock, o indie e essas besteiras vão perdendo terreno até mesmo entre a classe média, a dita “pensante”, seu público-alvo, que já não encontra mais voz ali.
O axé fala de beijar na boca; o sertanejo universitário diz que “vai te pegar” e que o barato é “open bar”; o tecnobrega fala de turmas, gangues, festas, periferia; o rap denuncia os problemas das comunidades periféricas urbanas; o forró aproxima e faz crítica social; o samba e o pagode se alimentam de amores e festas… O rock se perde no meio disso tudo. A ele caberia, como já coube em muitas oportunidades, o desafio às autoridades, sejam elas os pais, o professor, a namorada ciumenta, a polícia ou o governo. Essa música da classe média já era, perdeu o foco.
O que vemos pra esse público é uma sucessão de bons moços e boas moças da Rua Augusta e das universidades ganhando os jornais, a MTV, as rádios e os canais da Internet. Posam de “salvação”, como a “nova” música brasileira, mas é auto-entronada com atitudes arcaicas, discursos apaziguadores, temas politicamente corretos. Ninguém tá afim de um bom confronto, de uma discussão, de um enfrentamento. O negócio agora é, como se diz, ser coxinha mesmo.
Faz sentido. O público que gosta desse disco novo da Gal (a Lady Gal Gal), do Thiago Petit, da Miranda Kassin, do Jeneci, do Marcelo Camelo (só pra citar alguns bons exemplos) e dessa bunda-molagem toda é o mesmo que reclama dos preços altos dos ingressos, mas faz fila pra comprá-los e os esgota em poucas horas (um paralelo tosco, mas um exemplo válido, que tá na memória recente, e um exemplo que ainda vai poder ser bastante utilizado). É um público sem mira e com as armas da insubordinação enferrujadas. São os indies festivos: independentes só no nome, que não contestam nada, que querem tudo mastigado e só estão a espera da próxima festinha, do próximo oba-oba.
Um inimigo comum é o que falta à música jovem brasileira no momento. Não é preciso surgir um, veja bem. A sociedade não precisa caminhar “pra trás”. É preciso apenas identificá-lo e elegê-lo e se enraivecer dele. Ele está aí, em algum lugar. As coisas não podem estar tão boas a ponto de ninguém ter motivos pra se insurgir. Há de se ter inimigos pra poder fabricar heróis. Uma juventude sem heróis não é nada – é só uma juventude que passa, que envelhece.
Sabe o que, na verdade, acho que acontece? Isso aqui:
http://www.recombinantrecords.net/docs/2009-05-Amusing-Ourselves-to-Death.html
E talvez o bom momento que o país vive, ajude. O “sonho” já acabou, deu errado. Daí, de uns anos pra cá, o país cresceu e vem se formando uma nova classe média, inserida através do crédito e do poder de compra. Uma sociedade voltada para o consumo, fica acomodada, vai lutar pelo que mesmo? O que acontece nos EUA, Europa, Oriente Médio está distante demais da “nossa realidade”. É engraçado que é uma espécie de crise que atinge o rock – que parece bem desfalecido – e também à política. A esquerda, que é quem costuma se indignar e lutar vem se diluindo em um governo de centro, direitos humanos muitas vezes se confunde com o moralismo do politicamente correto, muitos esquerdistas estão decepcionados e já se perguntam se a nova classe média não será mais acomodada que a atual (é o que leio em páginas de esquerda). Enfim, todas essas linhas mal traçadas pra dizer que o que eu vejo é uma geração anestesiada pelo “prazer” (como no cartum acima), careta, com uma vida confortável, que não inspira muitos questionamentos e sem culhão para ir contraa maré (mesmo reclamando dela).
Um ótimo resumo esses quadrinhos! É isso. O sistema tratou de preservar a si mesmo, com a ajuda daqueles que deveriam corrompê-lo, alterá-lo e transformá-lo em algo novo (não necessariamente bom). A pasmaceira é que incomoda…
legal partir dessa ideia do inimigo. mas mesmo conhecendo o inimigo, bem fragmentado como cê disse. não tem como tocar numa ferida a não ser na sua própria. o sistema se auto-preserva. a crítica tem efeito bumerangue. o seu próprio texto é um exemplo disso. aposto que tem leitor do floga-se pensando “fernando de novo com suas desilusões. vou acabar deixando de ler isso aqui” hehe
^^
Lógico que tem. Uma ferida social, que tenha amplitude na sociedade, também é uma ferida pessoal. A pessoa só luta e se enraivece se tiver se incomodado com aquele alvo. O sistema se auto-preserva como o PMDB: pra ser sistema ele tem que estar a favor, sempre a favor. E se “a favor” é ser contra tudo o que ele já foi um dia, ele assim o será e se auto-destruirá, pra ficar de novo por cima da carne seca, pra acalmar tudo. E não é uma desilusão esse texto. Eu tô fora do prazo de validade pra me revoltar – só se for com o sistema de saúde e da previdência, que são meus focos agora. A tarefa cabe aos jovens, à energia deles – essa, porém, parece que sumiu pro que interessa.
Pessoal, é um prazer ver essa discussão. Acho q hoje um bom inimigo seria a industria bélica, ou as leis permissivas em relação à ela, que permitem que tantos andem armados. Impostos excessivos também parecem inimigos plausíveis.
[…] aclamado “ativismo de sofá” toma conta das causas nobres (já tratei do assunto aqui, nesse texto), muita gente tem a sensação do dever cumprido simplesmente compartilhando uma notícia de algo […]