PENSE OU DANCE: MÚSICA TORTA BRASILEIRA

Nunca quis ser músico. Ao contrário do que diz a máxima, não escrevo sobre música porque sou um músico frustrado. Não me considero sequer um crítico, então dá pra me tirar desse balaio.

Com relação à música, sei exatamente como deve se sentir um analfabeto: escuridão total. Não sei “ler” música, não sei distinguir sons muito parecidos, notas pra mim são hieroglifos sonoros, às vezes até me dou melhor falando russo do que detectando uma sutileza musical… Só sei o que sinto.

A música causa em mim reações que nenhuma outra forma artística consegue, nem mesmo o cinema e a literatura. E é aí que me aproprio dela. Tento dissecá-la com o coração e com o que já ouvi no passado. Ter um tanto de bagagem cultural talvez compense a incompreensão técnica.

“Na concepção ocidental, o som sempre teve algo de misterioso. Onipresente e, ao mesmo tempo, evanescente, o som não se rende facilmente a um raciocínio acostumado com coisas, locais e configurações estáveis”, diz Tiago de Oliveira Pinto, diretor do Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha – ICBRA – no seu ensaio “Som e música. Questões de uma Antropologia Sonora”.

Achar que alguém só pode falar de música se entender de tecnicamente a música é besteira. Como em toda arte, o entorno social é tão ou mais importante do que a própria obra. O impacto dela na sociedade e vice-versa. Um ouvinte, pois, deve ser mais “sociólogo” e “antropólogo” do que músico.

Segundo Oliveira, foi o livro “A Antropologia da Música”, de 1964, escrito pelo antropópolo estadunidense Alan. P. Merriam, que primeiro formulou uma “teoria da etnomusicologia”, “na qual reforçou a necessidade da integração dos métodos de pesquisa musicológicos e antropológicos. Música é definida por Merriam como um meio de interação social, produzida por especialistas (produtores) para outras pessoas (receptores); o fazer musical é um comportamento aprendido, através do qual sons são organizados, possibilitando uma forma simbólica de comunicação na interrelação entre indivíduo e grupo”.

Treze anos depois, em 1977, Merriam avançou ainda mais. “Para entender a música enquanto produto e estrutura construída seria necessário, de acordo com Merriam, aprender a entender conceitos culturais, que fossem responsáveis pela produção destas estruturas. Merriam caracterizou a pesquisa etnomusicológica como ‘o estudo da música na cultura’ para, na década seguinte, acentuar ainda mais o paradigma cultural, definindo a área de pesquisa como ‘o estudo da música como cultura'”.

Antes de avançar, vale uma pequena ideia do que é exatamente “música”, no sentido matemático e físico da coisa. Releve essa passada rápida e displicente pela História da Música (com maiúsculas), porque queremos apenas entender que o sistema musical ocidental funciona com sete notas naturais e cinco acidentais (as sustenidas e bemóis). São doze notas, dispostas em várias oitavas, que advém de um processo longo de evolução. Compreendê-las hoje é fácil, no sentido de saber o que é “afinado” e o que é “desafinado”.

Fisicamente, o “som” pode ser definido em propriedades como “duração” (o tempo de duração dele, indicado pela nota e pelo andamento), a “intensidade” (forte ou fraco, indicado pela dinâmica), “altura” (grave ou agudo, indicado pela posição da nota e pela clave) e “timbre” (um atributo específico de cada som).

Segundo Wesley Caesar, autor de vários livros sobre guitarra, ao descrever a “física do som” e as “noções de acústica” (“do grego: acuo = ouço”), é nessa área que se define exatamente o som que nossos ouvidos foram acostumados a gostar hoje em dia: “quando um corpo elástico, tipo a corda da guitarra, é tirado do seu ponto de repouso e portanto produz uma oscilação, indo e vindo consecutivamente, chamamos de Vibração. A distância percorrida por este corpo é a Amplitude (‘intensidade’). Se as Vibrações forem irregulares, o som é considerado um ruído, se forem regulares o som é considerado musical”.

E continua: “o número de Vibrações regulares por segundo define a Freqüência, que é medida em Hertz (Hz). Uma nota musical determinada tem sempre a mesma freqüência qualquer que seja o instrumento que a produz. A padronização do número da freqüência pode ser variável segundo a convenção estabelecida. Está fixado desde 1939 a afinação da nota La em 440 hz. Quanto maior a freqüência, mais agudo é o som (…). O ouvido humano percebe aproximadamente de 16 a 30.000 vibrações por segundo. Os sons de 32 a 4.000 vibrações por segundo são considerados musicais”.

Vamos deixar o papo na esfera técnica só mais um pouco, entrando no Fenômeno Físico-Harmônico: “quando uma corda vibra, ela vibra por inteiro, e ao mesmo tempo se divide em duas metades e esta vibração secundária produz uma oitava acima da mesma nota. Enquanto esta nota vibra por inteiro e em duas metades, divide-se também ao mesmo tempo em três terços, quatro quartos, cinco quintos etc… Então, obtemos aquilo que chamamos de Série Harmônica, que é o conjunto de notas produzidas por uma única nota fundamental. A extensão das séries harmônicas dos sons fundamentais das vozes humanas e dos instrumentos musicais e principalmente os sons que mais se salientam da série é o que define o Timbre do instrumento. Podemos dizer, então, que a partir desse processo temos aquilo que chamamos de Bases Físicas da Tonalidade, isto é, a base física das Escalas e dos Acordes (Harmonia). Na Série Harmônica, segundo sabemos, temos de 16 a 20 notas em harmônicos que são perceptíveis ao ouvido musical humano, entretanto as divisões de harmônios dentro da Série continuam se processando e acontecendo, porque na realidade temos várias sub-divisões de notas, que vão além das notas adotadas pelo nosso Sistema Musical Ocidental, que são doze, mas já foram vinte e duas notas, que é a Escala Completa do antigo Sistema Oriental. O que ocorre é que há alguns séculos o Sistema de Escala da Música Ocidental foi dividido e temperado, ou seja, passou a adotar apenas os 12 sons que formam aquilo que chamamos de Escala Cromática: do, do#/reb, ré, reb/mib, mi, fa, fa#solb, sol, sol#lab, la, la#sib, si”.

Como conclusão, sigo com Wesley: “cada Intervalo entre as notas possui um semitom ou meio tom, que é o nome da medida que usamos pra definir o espaço entre as notas. Entretanto no Sistema Musical Oriental antigo existem outras medidas que na realidade estão na própria natureza da formação dos sons. Em nossa cultura, admitimos como sons afinados apenas aqueles que se encontram dentro da Escala temperada, ou seja, aquilo que foi convencionado como nosso Sistema Musical”.

É uma convenção. Baseada em física – e matemática, com Pitágoras no meio, atribuindo as comas pitagóricas que se encontram dentro do intervalo de um tom (uma coma é igual à nona parte de um tom).

Tendo isso em domínio, pode-se argumentar que “toda convenção está aí pra ser quebrada”. Ou no mínimo contestada, ou ainda contrapor com uma outra convenção existente.

Quando se entra nos três elementos da música, descritos por Wesley, percebe-se que a música pode ser modificada de acordo com a compreensão e o aparato antropológico do receptor. Temos a “Melodia” (do grego: melos = canção, ode), como “uma sucessão de sons isolados e combinados em alturas e valores diferentes e que obedecem a um sentido lógico musical (…)”; o “Período”, que “é a sucessão de frases diversas dando sentido completo ao trecho musical”; e a “Harmonia”, “a combinação das vozes que acompanham uma melodia principal”.

Oliveira define bem como o nosso ouvido foi “educado” pra música que ouvimos: “como em toda investigação de estruturas, a busca por elementos musicais construídos e culturalmente significantes vai levar às menores unidades classificáveis do sistema, que servem de referência para a percepção do todo, o ‘som organizado humanamente’. Dentro da cultura musical estes elementos menores estarão ligados uns aos outros de maneira relativamente estável, estabelecendo assim a ordem musical vigente”.

Aí, chegamos ao ponto que queríamos chegar: a música torta.

Oliveira fez um estudo interessante: “em uma análise feita de uma peça de berimbau tocada por um mestre de capoeira em Santo Amaro da Purificação (BA), parti das menores unidades, aquelas que identificam o toque, para observar como se constrói a unidade maior, a música, de forma organizada e predeterminada quanto à disposição e combinação entre si das partes menores. Cheguei à conclusão que aquilo que os músicos chamam de ‘improviso’ na verdade não tem nada de imprevisto, por obedecer às regras de combinação e relação entre as partes menores. Pode ocorrer, isso sim, um desenvolvimento inesperado, mas sempre dentro do previsto, determinado pela cultura musical do berimbau no Recôncavo Baiano. Entender esta peça musical, portanto, requer um conhecimento da música local como um todo. O grande mestre instrumentista e compositor é aquele que impõe sua versão pessoal, porém sem ignorar o aspecto objetivo das regras musicais existentes (…) Quando se fala em ouvir e entender música, fala-se da ‘percepção’ musical”.

Outro estudo: “ao estudar as músicas de pífanos e da pequena gaita dos grupos de caboclinhos de Pernambuco e da Paraíba em 1984 e 1985, verifiquei a constância de um elemento de afinação destes instrumentos que têm na terça neutra um recurso básico, que transcende o puramente estilístico. A remoção das terças maior ou menor das melodias, e a inserção, ao invés delas, da terça neutra, toma do repertório nordestino das flautas o jugo dos modos maior ou menor, sem os quais, lembre-se, não existiria a música do ocidente, baseada na tonalidade e harmonia funcional. Ora, o fazer música, que não esteja em uma tonalidade maior ou menor e a utilização de intervalos intermediários, portanto não-temperados, é assunto para festivais de música de vanguarda, atonal e de pouca aceitação do público de massa. No entanto, as bandas de pífanos do nordeste, os aboios, as trovas dos repentistas, as toadas de caboclinhos, os forrós pé de serra, todo este vasto repertório é caracterizado pela terça neutra”.

Há uma série de estudos que mostram que a música – ou o “perceber a música” – é uma questão de “educação” de repertório, uma questão de que tipo de som determinada sociedade e seus indivíduos estão há gerações ouvindo e se acostumando como “certo”, “afinado”, “aceitável”.

A música africana, a de algumas tribos americanas (inclusive brasileiras), a oriental e outras fora do espólio geracional ocidental acabam se tornando estranhas aos ouvidos. Elas são fisicamente ineficientes pra compreensão ocidental.

Mas é curioso que um grande número de músicos, mesmo educado pelo Sistema Musical Ocidental, continue tentando desconstruir utilizando as ferramentas que conhecem, o próprio Sistema Musical Ocidental. O produto desses músicos eu chamo de “música torta”. E é mais interessante ainda perceber que há muitos brasileiros empenhados nessa desconstrução com o mesmo ferramental.

É o que chamo de Música Torta Brasileira. Ou simplesmente, MTB.

A MTB sempre existiu. Hermeto Pascoal presentou a cultura brasileira com discos excepcionais. Mas com a Internet, ela tem se proliferado com facilidade maior, já que encontrou um meio de ser difundida – o rádio jamais daria ou deu espaço a ela.

Surgiram nomes como Chinese Cookie Poets, Sobre A Máquina (e todos os experimentos de Cadu Tenório: do Santa Rosa’s Family Tree ao extremo VICTIM!), Bemônio, Farmacopéia (e suas guitarras ruidosas), Gimu, I Buried Paul, Deus Nuvem e tantos outros que distorcem as frequências e fazem os “ponteiros de medição tonal” saírem do padrão.

Voltamos, então, ao início do texto. Sou um analfabeto em música, não entendo nada, meus ouvidos são descalibrados pra identificar qualquer nota, escala, frequência. Não entendo de música, mas sou um inquieto com arte. Música sendo arte (“música como cultura”, segundo Merriam), prefiro uma arte que me diga algo, que me tire do sério, do padrão, do conforto. Gosto da música dentro do sistema a que fui educado, mas prefiro que meus ouvidos se incomodem, prefiro que os tímpanos sejam invadidos na rudeza, porque a mesmice quase nunca serve pra contemplação.

A arte que te tira do equilíbrio é aquela arte que te diz alguma coisa, que te marcou de alguma forma, que te modificou.

Se há brasileiros jovens experimentando pra fazer isso, palmas pra eles, é preciso enaltecê-los, abrir os portões da mente, dos veículos de comunicação, dos palcos e das escolas. Não é uma competição: a música torta brasileira não precisa tomar o lugar da música popular brasileira. Só deveria haver espaço pras duas.

É uma questão de educação (informação) mostrar que existe alternativa, ver que o mundo tem outras vias – tortas, especificamente. De mesmice estamos bem servidos e agradecidos. Deixem a música torta brasileira ocupar seu espaço.

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Comentários

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15 comentários

  1. […] Por falar em colunas novas, Otávio Augusto estreou a errante e deliciosa “Discos (Pop) Perdidos”, na faixa “agosto”, dando um leve sabor pop que o Floga-se buscava; porque de fato e direito, até mesmo “politicamente” falando, o site fincou bandeira com a música torta, principalmente a MTB, a Música Torta Brasileira. […]

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