PENSE OU DANCE: A MÚSICA QUE É BRASILEIRA

Pra ser considerada “música brasileira” ela precisa ter sido criada e executada por brasileiros? Ela precisa ser cantada em português? Ela precisa ter elementos regionais, instrumentos locais ou ser cem por cento baseada em ritmos locais? Ela precisa falar dos problemas brasileiros?

Como é essa entidade chamada música brasileira?

É certo que pensadores e historiadores têm boas respostas pra essa questão, mas cabe perguntar ainda assim, ao ritmo do novo século e da incrustada globalização, como de fato identificamos hoje uma música como “brasileira”.

É certo que esse entendimento passa por uma das perguntas do primeiro parágrafo.

Por exemplo, diz-se que o choro foi o primeiro ritmo tipicamente urbano à brasileira. Os grupos eram formados por flauta, violão e cavaquinho. Eram uma expressão carioca do fim do século XIX, mas os instrumentos não são tipicamente brasileiros. A flauta tem origem alemã; o cavaquinho, portuguesa. Porém, ninguém questiona que o choro é “música brasileira”.

Paralelamente, qualquer banda que ouse cantar em inglês hoje e toque post-rock, punk, hardcore, pós-punk, ou o que for, mesmo que os integrantes tenham nascido no Cariri, no Jequitinhonha ou no Pantanal, pode ter questionada sua brasilidade. Veja essa lista, por exemplo: cinquenta bandas vindas de muitas cidades brasileiras… Há quem duvide de que elas fazem “música brasileira”.

Acontece que não há música feita no Brasil que não tenha atributos africanos e europeus. A cultura colonizadora se vale até os dias de hoje.

Mas essa não me parece ser a questão.

O problema pode estar na noção que o patriotismo nos oferece de entendimento do mundo e dos valores. Música é música. Ela deveria ser universal, sem fronteiras pra compreensão e apreciação, mas o tempo, a história e a tradição nos deram a entender que devíamos fortalecer traços culturais pra chamarmos só de nossos e daí, entre outras coisas, identificamos o samba, o forró, o axé etc. como “músicas nossas”, genuinamente brasileiras.

Vale ler esse texto (longo, aviso) sobre o patriotismo: “é deliciosa a sensação de irmandade que nos acolhe quando estamos em nossa terra, cercadas de iguais, praticando nossos costumes, ouvindo nossa língua, nosso sotaque. É reconfortante fazermos parte de um estado-nação que nos reconhece como pessoas cidadãs, que garante nossos direitos humanos fundamentais, que nos fornece um passaporte aceito por outras nações. Infelizmente, essa nossa sensação de comunidade, que não é menos real, concreta e verdadeira por ter sido imaginada, fabricada, construída, muitas vezes nos leva a odiar ou desprezar as outras pessoas que não nasceram no nosso chão, que têm outros costumes, outras línguas, outros sotaques. Então, se amamos exaltadamente essas abstrações políticas imaginárias, com seus simbolozinhos e musiquinhas; se nos dispomos a matar e morrer por elas; se engolimos acriticamente o discurso nacionalista-excludente do ‘ame-o ou deixe-o’, então, sim, o patriotismo pode ser uma prisão”.

Essa prisão cultural acaba criando algumas aberrações, como a famosa história da “passeata contra a guitarra elétrica”, em 1967, da qual até Gilberto Gil participou. Ou a incrível aversão às bandas que cantavam em inglês no começo da década de 1990, como Pin Ups, brincando de deus, Wry etc.

A feliz junção de batuque com guitarra (que Jorge Ben já havia feito, por exemplo) que os anos 1990 viram em Chico Science; a união de Ramones com “nordestinias” que o Raimundos aplicou, ajudaram a fortalecer essa aversão: não precisávamos babar ovo pro que aqueles ingleses panacas estavam fazendo.

Entretanto, veja, o Pin Ups fazia música brasileira? E o Cansei De Ser Sexy? E o Sepultura?

Por outra, vale perguntar: pro gaúcho, o que o carimbó paraense tem pra chamar de seu, a não ser a imposição do nacionalismo de que somos todos ligados pela generalização de nos identificarem como “brasileiros”? Não seria o carimbó um ritmo tão estranho (estrangeiro) quanto o pós-punk inglês ou o industrial alemão? Não seria a chula baiana tão sem sentido em identificação nacional pro acriano quanto um death metal norueguês? Apesar disso, de acordo com o entendimento atual, se um brasileiro fizer música pop inserindo elementos de chula ou carimbó estará mais perto de fazer “música brasileira” do que um bando de moleques do interior de Rondônia fazendo trash metal.

Não sou patriota. Minha noção de “meu chão” se atribui a lugares por onde morei e finquei algumas raízes, fiz amigos, criei histórias. Não me sinto próximo a um catarinense tanto quanto não me sinto próximo de um maranhense ou de um carioca em termos de nacionalidade. Minha nação é minha casa, minha rua, meu bairro. É onde vivi a vida. É ali que está “meu chão”.

Esse sentimento patriótico que une pessoas, determinado por leis e tradições e transformado forçosamente em sentimento, pode até servir (e fazer sentido) como agregador pra questões mais importantes, como a preservação de oportunidades de vida iguais a todos aqueles que fazem parte daquele determinado povo. Ou seja, o que se produz no Brasil aos brasileiros deve retornar de forma igualitária. Pra isso, talvez sirva vestir-se de patriotismo e lutar por tal ideal.

Pra música, não. Ela é universal. Umas estão mais próximas ao “chão de cada um”, outras não. É certo que o que determinamos normalmente como “música brasileira” é algo de espectro riquíssimo. É uma história que começa com os índios se encontrando com os colonizadores – o cateretê e o cantochão. Passa pela força dos africanos escravizados, com o lundu, a umbigada, por exemplo. Chega à mistura estrangeira (europeia e de países vizinhos), com valsas, polcas, tangos e afins. Daí, à abrasileiração, com o choro, o maxixe, o samba.

A música, pois, não tem fronteiras. Ela pode ser identificada como de “algum lugar”, porém como um leque mais amplo cultural; não só com sons, mas com costumes, danças, vestes, sotaques, pinturas.

Essa “música brasileira” é uma espécie de imposição secular e geracional. Tornou-se cultural da mesma forma. Mas ela não tem uma forma única. Ela fala de várias misturas e ritmos. Mesmo que seja estranho um grupo de pagode russo, ou uma embolada tailandesa, ou alguns neozelandeses dançando o jongo, ainda assim isso não é impossível pelo simples fato de serem danças e ritmos tidos como “brasileiros”.

Todos podem tocar a música que lhes façam criar a história de seu próprio chão.

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Comentários

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2 comentários

  1. Fernando, meu caro – e, claro, pessoal que está a ler o texto e o comentário:

    Concordo integralmente com os seus apontamentos.

    Acho que, para além das ideologias que existem sobre o que “genuíno do Brasil” e “é parte do que a gente é”, também se pode ver algo que é extremamente empobrecedor nessa abordagem nacionalista: se uma nação (como a nossa) estabelece que a partir de um determinado todas as suas misturas e influências já se deram, que seus referenciais estão por fim consolidados e que o choro ou o samba é a última música genuinamente brasileira, toda a dinâmica de tudo que produzido por aqui acaba sendo desconsiderado – não existiriam músicas e ritmos novos que nascem a partir da atuação dos brasileiros.

    Ou seja, seria um erro tremendo – ainda vindo de um território que nasceu justamente de choque e contraposição de inúmeras referências culturais. Aliás, não custa lembrar, Espanha, Itália, Grécia, Inglaterra – todos, hoje, países consolidados com a “sua música”, foram influenciados historicamente (musicalmente e filosoficamente, inclusive) por árabes e pelos povos chamados de “bárbaros”. Só daí já dá para ver o quanto é complicado usar os “óculos nacionalista” para falar não só de música, mas de qualquer aspecto cultural “puro” de um determinado povo.

    Desculpe-me pelo longo comentário. Parabéns pelo site. Forte abraço.

  2. Fernando, meu caro – e, claro, pessoal que está a ler o texto e o comentário:

    Concordo integralmente com os seus apontamentos.

    Acho que, para além das ideologias que existem sobre o que é “genuíno do Brasil” e “é parte do que a gente é”, também se pode ver algo que é extremamente empobrecedor nessa abordagem nacionalista: se uma nação (como a nossa) estabelece que a partir de um determinado momento todas as suas misturas e influências já se deram, que seus referenciais estão por fim consolidados e que o choro ou o samba é a última música genuinamente brasileira, toda a dinâmica de tudo que produzido por aqui acaba sendo desconsiderado – não existiriam mais músicas e ritmos novos que nascem a partir da atuação dos músicos brasileiros.

    Ou seja, seria um erro tremendo – ainda mais vindo de um território que nasceu justamente de vários choques e da contraposição de inúmeras referências culturais. Aliás, não custa lembrar, Espanha, Itália, Grécia, Inglaterra – todos, hoje, países consolidados com a “sua música”, foram influenciados historicamente (musicalmente e filosoficamente, inclusive) por árabes e pelos povos chamados de “bárbaros”. Só daí já dá para ver o quanto é complicado usar os “óculos nacionalista” para falar não só de música, mas de qualquer aspecto cultural “puro” de um determinado povo.

    Desculpe-me pelo longo comentário. Parabéns pelo site. Forte abraço.

    PS: mandei um comentário anterior, cheio de erros e lapsos – por favor, apague.

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