PENSE OU DANCE: A TAXA DE INCONVENIÊNCIA

Ela parece existir desde sempre. É que houve um tempo pré-Internet em que ela oferecia ao consumidor ao menos a percepção de relevância. A taxa de conveniência cobrada na compra de ingressos pra shows (que é o nosso foco aqui, embora ela seja cobrada pra quase todos os eventos culturais) parecia mais justa. Mas vamos ver que ela não tem nada de justa.

Quando um festival abria as vendas, tinha uma bilheteria oficial e vários outros pontos de vendas. Eram pontos de vendas em postos de gasolina, lojas de departamento, lojas de discos, livrarias etc. Estruturas que não eram do organizador do evento, no intuito de aproximar os pontos de venda do consumidor que morasse longe da bilheteria oficial. De fato, uma conveniência. Mas uma conveniência pro organizador do evento.

O organizador utiliza a estrutura de terceiros – com espaço e às vezes até equipe – pra vender aos seus consumidores um produto que não é do terceiro. Nada mais justo que o terceiro cobre por isso. Se é uma facilidade pro consumidor, por ser um ponto de venda mais próximo do que a bilheteria oficial, por que não cobrar essa facilidade do consumidor?

Mas na era online, a coisa desandou de vez. Ao invés de apenas se utilizar da estrutura de terceiros, o organizador agora pode oferecer seu produto (o ingresso) também na Internet. Cria um sistema de vendas ou contrata um sistema e só divulga o link. As taxas hoje chegam, em casos extremos, a 30% do valor de face do ingresso. Trinta por cento, quase um terço do produto sendo cobrado a título de “facilidade”, de “conveniência”.

Uma facilidade que na verdade só atende ao próprio organizador.

Senão, vejamos. O organizador precisa vender seu produto, mas não tem estrutura de vendas. Não tem postos de vendas, não tem pessoal (muito menos treinado), não tem maquinário, não tem logística pra entrega. O que faz? Contrata terceiros e, concomitantemente, cria um sistema online pra chegar mais próximo do consumidor, pra efetivamente cobrir essa sua deficiência estrutural de vendas.

Mas, curiosamente, um custo que deveria ser do organizador – o maior interessado em vender seu produto é o próprio organizador – passa a ser do consumidor, que paga essa estrutura contratada ou criada desembolsando uma grana a título de taxa de conveniência. É, pois, um negócio da China: o valor que era um custo vira receita.

Há mais aberrações nessa lógica. Usando a Internet, o consumidor está cansado de saber que paga uma porcentagem do valor de face do ingresso, ao invés de uma tarifa única, o que seria mais compreensível.

Por que cobrar uma tarifa única? Se o consumidor está pagando por um serviço (que de fato é um custo do organizador), ele está pagando por um serviço que se presta uma única vez, quando daquela compra de ingresso pra determinado evento – e seja pra compra de um ingresso, dois ingressos, cinco, vinte ou duzentos. O processo é um só e é único, a utilização do serviço é uma só e é única.

Ao cobrar uma porcentagem sobre o valor de face do ingresso e não uma tarifa única pelo ato da compra, o organizador tá cobrando uma porcentagem por cada ingresso adquirido, como se pra cada ingresso adquirido o consumidor utilizasse o serviço oferecido uma nova vez.

Eis que temos a seguinte aberração. O ingresso custa, por exemplo, R$ 200,00. Com 20% de taxa, ele passa a custar R$ 240,00. Presume-se, pois, que o custo operacional pela “conveniência” (comprar sem sair de casa) é de R$ 40,00. Se o consumidor comprar um ingresso só, ok. Mas quando ele compra, por exemplo, dois de uma vez, numa mesma operação, passa a pagar R$ 480,00, e o custo da operação, que continua idêntica, aumentou pra R$ 80,00. Se ele comprar quatro, a transação total sai R$ 960,00, sendo que o custo da mesmíssima operação passa a ser R$ 160,00.

Não faz sentido.

Pela mesma lógica, não faz sentido algum a cobrança de uma taxa diferenciada pra produtos diferentes, que é o que acontece na prática quando o consumidor adquire ingressos de setores diferentes (com preços diferentes). Como não se cobra um valor fixo por operação, mas uma porcentagem, o valor de face do ingresso impacta nessa porcentagem o que faz com que cada produto tenha uma taxa diferente.

Exemplo. Você compra dois ingressos de “Pista” a R$ 200,00 cada, com taxa a 20%, totalizando R$ 480,00. Custo da “conveniência”, R$ 80,00. Mas você não encerrou sua compra ainda. Ao seu carrinho de compras, você adiciona dois ingressos “Mezanino”, a R$ 100,00 cada, igualmente com taxa 20%, totalizado R$ 240,00. Fecha o carrinho de compras e vai pagar. Total dos quatro ingressos, R$ 720,00, sendo que a “conveniência” pros ingressos “Pista” custou R$ 80,00 e a “conveniência” pros ingressos “Mezanino” custou R$ 40,00.

Não é o mesmo serviço? Por que cobrar taxas diferentes? O ingresso “Pista” vem com um perfume diferente? Novamente, não faz sentido algum.

Vale ressaltar uma pequena crueldade no processo: quem mora longe da praça do show desejado e, por isso, não pode comparecer à bilheteria oficial, fica refém dessas práticas na venda online. Ou compra pelo site ou simplesmente não vai ao show. Acaba tendo que pagar a taxa obrigatoriamente.

Além de tudo, há o próprio conceito de… conveniência. Vimos que a maior conveniência é pro próprio organizador, que resolve um custo dele transformando-o em receita. Mas bem que podia haver uma conveniência de fato ao consumidor, além da balela de que “é possível comprar ingressos mais perto de casa”.

Poderia haver uma conveniência de entregar em casa o produto. Mas isso é cobrado a parte, muitas vezes. Poderia haver a conveniência de se retirar numa bilheteria no dia do evento, no local. Mas isso também é cobrado e o consumidor chega a enfrentar horas na fila (como aconteceu no Lollalooza Brasil 2013, o ápice do mau-caratismo). A maior “conveniência” é permitir à pessoa imprimir o ingresso em casa. Ok, coloque então o papel e a tinta na conta do ingresso…

Governos de alguns estados tentam conter essa farra. O do Rio de Janeiro sancionou uma lei em dezembro de 2011, que dizia claramente que não se poderia cobrar por porcentagem e o valor deve ser fixo (veja o artigo 4).

Mas aí, brasileiro que é brasileiro não ia cumprir tal lei, ainda mais empresário que parece achar que pode tudo. Em 2012, o governo do Rio cedeu à pressão e mudou esse artigo, dizendo que uma porcentagem já era aceitável. Eis a desculpa do deputado autor da mudança: “representantes do setor do entretenimento, sobretudo cinemas, têm se queixando da forma como as regras estão colocadas” (leia matéria aqui).

Bom, ninguém cumpria a lei mesmo, né, não?

O Procon de São Paulo também afirma que a taxa é abusiva – e faz isso há tempos, mesmo que sem sucesso efetivo algum: “o Procon-SP afirma que a cobrança da taxa é ilegal. Para o especialista em direito do consumidor, Dori Bocault, se não houver prestação de serviços adicionais e diferenciados – como evitar filas, entrega na residência e outros – a cobrança da taxa é abusiva. ‘Nesse caso, não é válida a cobrança simplesmente pelo fato da pessoa obter as entradas antecipadamente. Outro exemplo em que pode ser aplicada a taxa é quando o consumidor a paga para ter preferência na entrada do local’, explica. O Código de Defesa do Consumidor prevê a devolução em dobro do valor pago em excesso nas taxas. O consumidor deve denunciar no Procon da sua cidade para adoção das providências administrativas cabíveis. Recentemente a organização do festival Lollapallooza, Geo Eventos, foi autuada pelo Procon pela taxa abusiva na compra via internet e telefone” (leia aqui).

Os organizadores do Lollapalooza Brasil, mais uma vez, como se sabe, riram na cara de todos. Nada aconteceu, os ingressos vendem como água no deserto e ficou tudo por isso mesmo. Não só os organizadores do Lolla, mas de qualquer evento. O que vale é o “dane-se” ao consumidor.

Não há uma legislação nacional que trate do assunto (até 2014, pelo menos, não há). O consumidor fica à deriva. O ideal seria que todos pudessem comprar sem a taxa, na bilheteria oficial ou apelar pro radicalismo puro e boicotar os eventos que utilizam dessa prática abusiva. Mas isso é impossível, não vai acontecer.

Já falamos sobre isso nesse espaço: mais importante do que discutir os preços (que são questionáveis mas seguem lógicas de mercado) é discutir o respeito ao consumidor nesses eventos. No preço “limpo”, de planilha, não se deveria mexer, mas é possível exigir mais respeito por conta dos organizadores.

Do jeito que a coisa caminha, ao deus-dará, sobra-nos a incômoda e inconveniente sensação de estamos sendo enganados, pagando por algo que não nos entregam.

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Comentários

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Um comentário

  1. Prezado,

    Seu texto está muito bem escrito, mas existem algumas questões que não foram levadas em conta. Qualquer custo que exista em qualquer empresa seja produto ou serviço, é o consumidor no final que vai pagar, seja ele visível (como a taxa acrescida no ingresso) ou embutida.

    Assim, caso não houvesse taxa de conveniência, o organizador teria que pagar para as empresas de sistemas online de ingressos pelo serviço, e consequentemente teria que modificar a estrutura de preço do seu evento, para manter sua margem, que muitas vezes se estreita com a alta quantidade de ingressos meia entrada.

    Assim, um ingresso de R$ 100,00 por exemplo, viraria R$ 110,00, e todos pagariam R$ 10,00 a mais, inclusive quem compra na bilheteria.

    A taxa sendo transparente e cobrada somente nos pontos fora da bilheteria possibilita que só pague quem use de fato o serviço, e não pessoas subsidiando o que não usam.

    A questão dela ser percentual tem outros fatores que o público não tem conhecimento: o custo variável que se tem para realizar as vendas (taxa de cartão, taxas de conectividade, etc) e do risco, já que existem muitas compras fraudulentas. Cobrar uma mesma taxa fica teria que tornar possível que o risco de vendas altas fossem equilibrados pelas vendas de baixo valor. Nesse caso, quem compra um ingresso barato estaria também bancando o risco de quem comprou um ingresso caro (e pode pagar mais por isso).

    Enfim, o ponto a se levar em consideração é o abuso. Uma taxa de 20% como muitas empresas tem cobrado, de fato é abusiva. Valores como o que estão sendo aprovados nas leis de alguns estados de 10% já parece mais razoável, mas que claro ainda sim sujeitos a uma boa entrega do serviço.

    Abraços,
    Eduardo Muller

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