PENSE OU DANCE: CHUTE NAS CANELAS

Sempre que alguém decreta a morte do rock, vem um batalhão de mentes elevadas desprezando a afirmação e diminuindo quem afirmou: “tiozão”, “não sabe pesquisar o que tem de novo por aí”, “parado no tempo”, isso quando não são impropérios indignos de publicação. Mas ninguém procura refletir sobre a afirmação.

O rock, como o punk, como o jazz, ou como os gêneros mais pesados e tortos, mesmo eletrônicos, sempre tinham um objetivo inicial: destruir o que vinha sendo feito antes ou provocar, incomodar e cutucar os mais velhos e os caretas. Depois, quando o mercado absorve o gênero e passa a vender até sabonete, chega outra vertente pra continuar provocando, destruindo, incomodando. O rock que dizem que morreu é esse que tem essa capacidade social de provocar. Rock hoje vende de tudo, tem tiozinhos de sessenta, setenta anos fazendo e não incomoda ninguém.

O rock do Rock In Rio e do Lollapalooza, os maiores festivais do Brasil, é o rock-varejo, associado a marcas, pra pessoas que não querem pensar, que querem só se divertir. Antes que joguem pedras, não há mal nenhum nisso. Cada um se diverte como quer. Por outro lado, é ingenuidade esperar que saia algo contestador de músicas populares, com alcance comercial? Não, é só preciso reajustar a antena.

Minha preferência é pela música provocativa, destrutiva, incômoda, torta, sem fru-frus (embora adore também uns sons cheios de bibelôs), mas sei que não há uma única banda ou artista que eu goste que seja socialmente relevante hoje em dia. Musicalmente até incomoda: há ruídos, guitarras inaudíveis, letras inteligentes, shows barulhentos e destruidores, discursos bem sacados e atuais, só que tudo sem o mínimo alcance. Socialmente, algo que tenha atitude e poder pra fazer a sociedade se questionar, não há uma só banda. Hoje, todos os artistas que têm capacidade pra isso não criam uma música que me atraia, mas tudo bem, que bom que eles existem.

A edição 2017 do Rock In Rio, com toda sua pataquada marqueteira sobre Amazônia e um discurso de correção à distância sobre um problema grave, acabou inserindo uma questão bastante útil que está no cerne da discussão política atual: o respeito às diferenças e às minorias.

É importante pressionar a classe política sobre a preservação da Amazônia, mas é duro de engolir o Rock In Rio fazer marketing pra ganhar uma grana pública (leia aqui) e posar de bonzinho. Se foi sofrível a forçação de barra (leia aqui), o festival involuntariamente abriu a discussão sobre as diferenças quando escalou nomes como Johnny Hooker e Liniker, permitiu palco a Pabllo Vittar e Dream Team do Passinho, e até quando não escalou Anitta (leia aqui).

Não há entre esses um só artista cuja obra eu aprecie, mas são nomes que conseguem pela atitude mostrar ao mundo encravado na cultura do ódio e da intolerância que há pessoas que vivem, pensam e se comportam de uma maneira distinta e nem por isso deixam de merecer respeito – é o óbvio ululante, mas muita gente parece não querer perceber.

Johnny Hooker e Liniker fazem uma música bunda-mole, não é preciso gostar. Mas num festival-shopping-center, com gente que pensa no automático sobre questões “polêmicas”, a presença deles rebolando, se beijando e cantando sobre amor é educativo o suficiente pra deixar a mensagem em muita cabeça que no cotidiano se fecha ao diferente.

“Falar de resistência, de respeito, de representatividade, falar de afetividade, de amor é muito importante pra gente”, disse Liniker em entrevista (leia aqui). “Resistência”: essa palavra é importante. Não se batalha só nos subterrâneos, com discursos que ninguém ouve porque alcance não há. É preciso palcos importantes. É em eventos dessa magnitude que se joga a semente que pode corromper o ódio cultural automático. É com transmissão ao vivo, com espaço. É aqui, é na novela.

Resistência que a história de Anitta parece exemplificar. Com as armas que sempre são negadas às periferias e subterrâneos, ela vem espantando os próprios marqueteiros. “Anitta: um caso de marketing que vale a pena ser estudado” (leia aqui), “O que Anitta pode nos ensinar sobre co-marketing” (leia aqui), “Anitta todo mês é estratégia recomendada pelo YouTube” (leia aqui), “Os ensinamentos de Anitta sobre branding” (leia aqui), “Anitta. A Poderosa do Benchmarking” (leia aqui).

Mas, ok, os marqueteiros sempre estão um passo atrás do que as ruas realmente borbulham. Mesmo assim, Anitta, em tempos em que a idiotia com foro privilegiado quer proibir o funk (leia aqui), mostra que é possível incomodar e ser aceita, fazendo a mensagem chegar a muito mais gente e fazendo um recorte da sociedade se sentir representado.

Pabllo Vittar ser a mais aplaudida personalidade do Rock In Rio é igualmente um tapa na cara de uma casta social que nunca aprendeu a viver com o diferente. Vittar não canta uma nota musical que seja apreciável pra mim, mas que se dane o meu gosto: sua presença evoca o Brasil de um passado que teima em permanecer presente (leia aqui) e essa provocação é mais rock’n’roll que trocentos The Who.

Não sei quanto tempo esses artistas vão durar. Nesse novo século, isso pode querer dizer quinze minutos, dois vídeos, dez postagens, sei lá. Daqui a um mês eles somem tão rápido quanto apareceram. Só que isso definitivamente não importa.

O que importa é ressaltar que a música jovem é sobre isso: incômodo. É o chute nas canelas. Se não incomoda, é música dos pais e avós, já foi aceita, é produto, pode vender sabonete. Não se trata de ser “música boa” ou “música ruim”, isso quem vai definir é uma verdade pessoal e intransferível. O “verdadeiro rock” (desculpe-me pelo termo tiozão) está nessas pessoas e em algumas tantas que têm a coragem de subir ao palco pra dizer que a sociedade não pode só andar em direção à Idade Média. O bonde é pra frente, rumo a um mundo mais justo – e num mundo mais justo também tem que ter espaço pra gente, atitudes, músicas, pessoas e ideias que fogem dos padrões estabelecidos pela nossa vivência. É nele que deveríamos querer viver. O único efeito colateral de um mundo utópico desses é que não teríamos artistas pra chacoalhar nosso modo de vida e dizer “vocês são tudo careta!”.

Foto: Ricardo Borges/Folhapress

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