PENSE OU DANCE: CONTRA A BARBÁRIE

Num mundo utópico, todas as pessoas seriam realmente iguais, teriam os mesmos direitos e oportunidades, haveria segurança, felicidade, alegria e tudo o mais daquilo que as propagandas modernas de margarina vendem ser a melhor qualidade de vida.

Mas o mundo, obviamente, não é assim e, longe disso, bem longe, é um lugar perverso em que o discurso da busca desse mundo ideal nem sequer se aproxima dos atos pra que ele seja apreciável por mentes não-perversas. Há toda sorte de desilusões, violências, desigualdades, falta de estrutura, acinte, ofensas… Aquela velha história de que o “ser humano é assim” tem servido de desculpa pras sociedades serem do jeito que são.

Mas nada justifica alguns extremos.

Há mais de vinte anos, em 2 de outubro de 1992, véspera da eleição pra prefeitura de São Paulo (que elegeu Paulo Maluf), houve uma briga feia entre gangues no Pavilhão 9 do complexo penitenciário do Carandiru. Apesar de “controlada”, segundo o secretário de segurança à época Pedro Franco de Campos disse o governador do estado Luiz Antônio Fleury Filho (que admitiu em várias entrevistas ter a responsabilidade política, ao menos, do massacre), o Coronel Ubiratan Guimarães, líder da tropa, ordenou a invasão. Segundo o governador, foi por conta de ser bem quisto pelos comandados, que tudo saiu do controle: o coronel foi ferido, a tropa achou que ele havia morrido e resolveu “se vingar”. Essa é a versão oficial.

Dez anos depois, o Coronel Ubiratan foi condenado a 632 anos por 102 das 111 mortes (seis anos por cada homicídio e vinte anos por cinco tentativas de homicídio). Mas, como é PM e mora no Brasil, acabou eleito deputado estadual por São Paulo, antes da sentença se dar definitiva. Por isso, o julgamento do recurso foi realizado pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça, ou seja, pelos 25 desembargadores mais antigos do estado de São Paulo, em 15 de fevereiro de 2006. Ele foi inocentado, claro. Sete meses depois, foi assassinado no seu apartamento, num crime aparentemente sem ligação com o massacre.

O mesmo eleitor que deu um cargo público ao ex-coronel assassino (ou, por outra, ex-coronel com péssima capacidade de analisar e gerenciar crises e, portanto, incapaz pra função) é o cidadão que agora vaia veementemente a condenação recente de 23 PMs participantes do Massacre a 156 anos de prisão cada um (leia os comentários da matéria lincada e das correlatas, pra se ter uma noção do viés nazista desse pessoal).

Embora a advogada dos PMs condenados, Ieda Ribeiro de Souza, tenha classificados seus clientes como “heróis” e dito sentir orgulho deles “por serem efetivamente o que a sociedade espera que sejam”, ela o faz por uma questão ética da profissão, é o que se espera. Como boa profissional que deve ser, vai procurar os recursos cabíveis (deixando os réus em liberdade, enquanto isso, o que é uma afronta, mas um direito deles) e questionar o que acha certo nas vias legais. Não vai pegar uma arma e sair matando ninguém.

E nem vai esperar que, caso dos seus clientes realmente sejam presos, eles estejam eventualmente envolvidos numa briga de quadrilhas, dentro de um presídio qualquer, e acabem mortos por uma invasão desastrosa da PM, porque hoje a advogada acredita que os réus são “seres invisíveis por quem a gente passa na rua e nem olha na cara – ainda que ele vá salvar meu filho, pai ou irmão”. Se acabarem mortos na hipotética rebelião, seriam esses PMs, agora alçados à condição de heróis, renegados à vala comum dos “bandidos que merecem morrer”, por serem bandidos só por estarem num presídio? A alegoria do senso comum dos justiceiros nazistas é essa.

Mas ainda bem que o Estado brasileiro, com sua Justiça (cheia de defeitos e merecedora de toda desconfiança), consegue equilibrar as coisas.

A decisão histórica e exemplar dada pela Justiça brasileira mostra ao mundo que o país não suporta e não apoia e não aplaude justiceiros que fazem “justiça” com as próprias mãos. A eles, os réus, foi dado o direito que não deram aos assassinados: um tribunal justo, dentro da lei vigente, com possibilidade ampla de defesa. Os bandidos mortos, longe de serem bonzinhos, não mereciam ser mortos pelo simples fato de já estarem cumprindo a pena pra qual haviam sido condenados (a maioria nem condenada havia sido) e, pelo o que consta, tal pena não incluía a morte.

Sem contar o fato de os presos não estarem armados (eles entregaram as armas – brancas – assim que a PM ameaçou a invasão, e os testemunhos oficiais, defronte ao juiz, demonstrarem uma ação fria, de arrepiar, dos PMs assassinos) e que nenhum policial morreu, num saldo tão instigante quanto injusto.

Embora ninguém possa afirmar que aquelas pessoas fossem “flor que se cheire”, é bom lembrar que dos 111 mortos, 89 ainda aguardavam julgamento. Vale repetir: oitenta e nove! Em outras palavras, os PMs poderiam, pela presunção de inocência, ter matado 89 pessoas que nem “bandidas”, naquele momento, poderiam ser consideradas. Então, nem a nazistóide sentença dos apoiadores do massacre de que “bandido bom é bandido morto” vale aqui.

No total, foram disparados 451 tiros, uma média de mais de quatro por vítima, o que caracteriza execução. Houve casos em que os presos estavam dentro das celas – trancadas – e mesmo assim foram metralhados. Depois, os projéteis sumiram, inexplicavelmente, mas sobraram os buracos na parede, que um preso lembrou muito bem: a história daquele dia está bem escrita naqueles buracos.

Defender uma ação dessa porque a polícia acabou eliminando “apenas bandidos” é uma estupidez sem tamanho, uma atrocidade social só explicável pelo clamor de uma sociedade encurralada pela impunidade e pela falta de segurança e perspectivas. Por outro lado, há um sistema prisional que não ressocializa, que não educa; uma sociedade que não oferece oportunidades pra essas pessoas recomeçarem, normalmente vítimas de preconceito pela condição de ex-detento; a falta de educação e a péssima distribuição de riquezas; uma polícia mal preparada e mal educada; o acesso fácil a armas e o crescimento constante, há décadas, de estados paralelos, intocados pelo Estado, financiados por atividades ilícitas, de poder e ganhos fáceis… Tudo isso compõe um sistema que pouco sustenta o aparecimento de uma solução ou de um equilíbrio satisfatório.

Daí, deste quadro, surgem extremistas religiosos e politicos, justiceiros sociais que pregam “a família acima de tudo”, como se a família fosse a solução pra qualquer coisa (tenho medo de quem usa a “preservação da família” como argumento pra qualquer ato violento praticado por instituições oficiais ou discursos intransigentes).

É compreensível que pessoas que foram vítimas de atos violentos e perderam entes próximos de maneira estúpida, pelas mãos de um idiota qualquer, se revoltem e exijam justiça a qualquer preço, em detrimento do direito à vida dos seus algozes. No calor da emoção, são justificadas os clamores por penas duras como a de morte. É uma ferida que marca não só na carne, mas ideologicamente.

Todos têm total liberdade de pensar o que quiserem, até mesmo de agir, desde que acatadas as consequências dos seus atos. Ou seja, ninguém é obrigado a concordar com punição aos PMs assassinos do Carandiru, com a decisão do júri em casos que envolvem seus entes queridos como vítimas, ou mesmo com as leis que protegem PMs de cometer atos como esses e ficar mais de vinte anos na mesma função que os deu liberdade de matar. Todo mundo pode falar, se expressar, mostrar o quão o vil, conservadora e desesperadora é sua visão do mundo.

Porque não há certo e errado nessas questões. A liberdade que pregamos pra uma utópica sociedade perfeita dá iguais direitos aos liberais e aos conservadores, aos extremistas insanos e aos de bom senso – todos podem se expressar. Contanto que o Estado continue a se portar entre aqueles de bom senso, sem afetações em situações de crise, está tudo bem: isso quer dizer que estamos no caminho certo pra evitar que nos tornemos bárbaros.

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