O ano de 2015 pode ficar marcado como o pontapé inicial de uma absurda ascensão da intolerância descarada. Após a polarizada eleição presidencial de 2014, o Brasil, com a vitrine das redes sociais e a eleição do Congresso Nacional mais conservador e intolerante da história, descambou de vez pra prática do ódio e das discussões vazias.
A reflexão de hoje não se trata disso, embora possa confundir, porque o que temos visto aí não é debate, mas a própria negação do debate. É o triunfo do bate-boca, onde se fala e não se escuta, onde se exige ser compreendido e não há esforço de entendimento, numa infantilização total do embate político. A fuga da politização, por temor, por asco, por desprezo.
Vai piorar, você sabe. As próximas eleições, municipais em 2016 e estaduais e federais em 2018, serão mais ariscas. Haja maracujá.
Se o bom senso é diariamente rasgado com vigor no campo das relações sociais, no musical – artístico e crítico – seguimos na mesma toada, mas por outro viés, o do bom mocismo. As redes sociais viraram a forma mais contundente de divulgação de qualquer trabalho dito “independente” e as relações ali, ora “sociais”, agora se tornam “profissionais” ou de trampolim pro afago do ego.
O Floga-se recebe, tal como deve ser em qualquer site ou blogue ou veículo de comunicação, dezenas e dezenas de releases todos as semanas, independente se o conteúdo tem o perfil ou não do site – sabe como é, deve dar um trabalho danado pras assessorias fazer um filtro e enviar material dos seus clientes de acordo com o perfil de cada veículo.
O Floga-se é só mais um número ali na lista de e-mails que as assessorias utilizam pra vender capacidade de capilarização ao seu cliente, tanto faz se será publicado ou não.
Mas pro cliente importa. O pequeno artista independente que quer levar sua obra e mensagem pra um pouco mais de gente além dos seus amigos e familiares se importa se as pessoas vão falar dele. Porque o trabalho do artista hoje em dia não é só mais criar e executar, mas também espalhar a mensagem, fazer o jogo do relacionamento, a política comercial da sua arte que já não é mais arte, é negócio, por menor potencial de alcance que tenha.
Se você é um artista minúsculo e independente, que tem pouco poder de investimento, não pode pagar assessorias por muito tempo, nem um agente decente, tem que se valer das redes sociais e do que estão falando sobre você pra alimentar essa esperança de expansão da mensagem. Vale cada contato, cada mensagem de chat trocada, uma cervejinha no bar, uma troca de ideias com as pessoas que podem te ajudar a compartilhar e espalhar sua obra. Quanto mais gente conhecer pessoalmente o artista e achá-lo bacana, mais gente estará disposta a compartilhar e espalhar sua obra pelas redes sociais. É um ato de afeto: você deseja que as pessoas que você quer bem tenham sucesso.
Sem grana, esse é um trabalho de formiguinha. E de doutrinação. Diante da vida social e política polarizada atual, um pouco de afeto sempre cai bem, pra quem oferece e pra quem recebe, até porque nas redes sociais não custa nada – ou custa bem pouco (há quem ache custoso, que pense e repense o ato de dar um “curtir”). Quanto mais gente gostar pessoalmente do artista – e não necessariamente da arte dele – maior a chance de expandir seu alcance. É a época do bom mocismo regulando os interesses.
O raro e nobre leitor aqui do saite poderá observar que sempre foi assim, que essa é a lógica das relações públicas e sociais. De fato, desde que o mundo é um lugar onde se comercializam ideias, ideologias e conceitos, o autor da ideia precisa ser amistoso com a audiência, caso contrário, tende ao ostracismo pela repugnância, independente da genialidade contida ali, que só o tempo e outros defensores de ideias semelhantes mas mais aptos ao social poderão resgatar e iluminar.
E antes, vale lembrar, não havia a amplitude das redes sociais. Pra um artista independente, sem grana pra assessorias e agências (ou até mesmo pra quem tem grana e acesso a isso), e que quer ampliar o alcance do discurso, eis a ferramenta ideal. Mas só ela em si não vale de nada, é preciso o bom mocismo, a fuga do embate, o desprezo pelas rupturas e estranhamentos, porque rupturas causam aversão e distanciamento.
Eis que numa linha do tempo das duas maiores redes sociais de compartilhamento de ideias (o Twitter e o Facebook) acabo me deparando com um mar de elogios e críticas açucaradas e empolgadas de tudo quanto é obra, show e festival. Acabou-se o espaço pra crítica azeda, ácida, contundente? Não, claro que não. Ela até existe por aí (o certeiro Fora Do Beiço é um exemplo e tanto), mas fica renegada ao submundo do submundo, à periferia da periferia. O que salta aos olhos são as exuberantes críticas elogiosas, obras elevadas ao altar, frases lapidares, de efeito, em destaque.
Ao artista independente e sem grana, taí a saída. Ele pode montar um release com algumas dessas matérias de pequenos blogues e saites (como o Floga-se) e sair divulgando por aí, como selos colados de uma qualidade aludida por “gente especializada”. É legítimo, veja, é o que a falta de grana pode adquirir.
Mas o risco está em isolar o artista numa bolha. Pra ele, aparentemente, sua obra é perfeita, sem necessidade de retoques, ou cumpriu o papel pra aquele momento.
É claro que vai da necessidade e percepção de cada artista pra com sua obra e carreira. Cada um deles tem suas próprias ambições. Se for só pelo ego, bingo, tá feito, parabéns. Mas se a ideia for expandir comercialmente, artisticamente, moralmente, socialmente sua amplitude, a bolha pode atrapalhar.
Os saites e blogues – e quero crer que o Floga-se não esteja incluído aqui, pelo menos faço um esforço pra que não esteja – viram meros veículos de propaganda desses artistas e suas obras, com textos e “críticas” que vão ser compartilhadas pela rede de bom mocismo do artista no Facebook e Twitter e em seus releases. É o mundo encantado da falta de contraditório.
Vale ressaltar que a música é uma ferramenta política e social importante, independente da sua “qualidade” (variável subjetiva). Analisá-la requer conteúdo histórico e senso crítico social. Ou várias mentes com conteúdos históricos e sensos críticos sociais. A última coisa que um crítico pode ser é bom moço. E a última coisa que o artista deveria querer ler sobre sua obra é uma análise apaziguada – mesmo que ela vá se valer como propaganda.
Tenho asco desse bom mocismo, onde tudo é perfeito, nada é afeito à crítica. Entendo o teor comercial, de divulgação, da prática, só que é execrável fazer do seu mundo uma bolha ainda mais incrustável do que já é: “o seu filtro-bolha é o seu próprio, pessoal e único universo de informação com o qual você vive online. E o que está no filtro-bolha depende de quem você é, e depende do que você faz. Mas a questão é que você não decide o que entra. E, mais importante: você, na verdade, não vê o que fica de fora” (lembra desse texto?).
Nossa visão do mundo deveria estar cheia de opiniões contrárias, de desafios e de desconfortos, pra que possamos reagir a isso e, sabe-se lá, tentarmos ser melhores do que achamos que somos. Um artista, mais ainda.
Artista é aquele ser que vê a vida de uma forma diferente dos meros mortais; ele percebe as coisas de uma maneira mais abrangente, sagaz, e sabe expressar isso. Ele não pode ficar preso a uma bolha de bom mocismo, mesmo que sua obra se valha apenas ao entretenimento (este artigo é uma piada, mas há uma verdade).
Todo artista deveria encarar os tomates e ovos que a plateia eventualmente arremessa. E fazer disso a sua base pras próximas criações.
Mais um bom texto.
Penso que nenhuma “obra artística´´ deve se valer apenas pelo entretenimento, teria que ter um contexto social, ser um motivo de transformação de quem as aprecie (transformação essa, absolutamente subjetiva, e difícil de mensurar) . Como tal, não admitir criticas negativas, ou se afastar de debates, é burlar o que entendo ser a própria função social da arte.