PENSE OU DANCE: DO FUTEBOL À MÚSICA SUBTERRÂNEA, O TEMPO DAS CONEXÕES

Os €222 milhões que o Paris Saint-Germain pagou ao Barcelona pra contratar Neymar revelam muito mais sobre nossa época do que sobre o futebol em si. Você provavelmente leu e ouviu muito debate sobre essa transferência histórica: como o atleta vai servir agora a um país, o Catar, na sua batalha geopolítica até a Copa de 2022 (leia aqui), e como isso expôs a relação cultural e social desse século.

Neymar é um ótimo jogador de futebol, mas isso não é exatamente o que importa pra transformá-lo num ativo de quase um bilhão de reais. Ele é menino (com 25 anos), tem ambição de ser o melhor do mundo e de ganhar títulos, entretanto o mais importante é o que sua imagem compreende: milhões de milhões de outros meninos e meninas querem ser ou parecer como Neymar ou curtir o que Neymar curte. Ele é o garoto-propaganda do novo século: o cara que usa e extrai das redes sociais como poucas celebridades sabem usar.

Ele não é personalista, embora tudo sempre parece se tratar sobre ele afinal de contas. Pra Neymar ser Neymar, ele precisa estar com outras celebridades, de Lewis Hamilton, o ultracampeão da Fórmula 1, a Justin Bieber, de Bruna Marquezine a astros de basquete, golfe, Messi, cantoras etc.

Você não vai ver Neymar com Robert De Niro, Pelé, Alain Prost. Esses são ídolos dos seus pais e avós. Não interessa a seus seguidores. As celebridades do novo século se retro-alimentam num grande banquete de likes e compartilhamentos de fotos e vídeos entre si, pra deliciar seus milhões de seguidores (escrever, nem pensar, já que ninguém parece mais ler hoje em dia).

Há quem se assuste com o que venha a ser a geração chamada de iGen, mas ela é presente, não pertence a um futuro distópico qualquer, está aí. Vale mais de duas centenas de milhões de euros e influencia outras centenas de milhões de mentes por aí. Mentes que vão crescer, arrumar emprego, ganhar grana e seguir consumindo o que já consomem hoje com a grana dos pais, coisas que as suas celebridades mandam consumir – e muitas vezes mandam consumir indiretamente.

Neymar, porém, não é um caso isolado. Ele é só o mais valioso e mais rico. Os youtubers estão aí expondo suas vidas com prazer e um sorriso falso, sem problemas. Já viraram álbum de figurinhas e muito mais, o que só amplia ainda mais as possibilidades pra pais-empreendedores (por assim dizer), que desejam que sua criança tenha talento ou pro futebol, ou pra música popular, ou pra computação, e que agora podem torcer pra ela ser youtuber. O alpinismo social ganhou novas frentes.

É que as relações mudaram. Hoje, vale mais você ser visto e elogiado do que de fato deixar um legado. Neymar já ganhou uma medalha de ouro olímpica, Copa Libertadores, Liga dos Campeões da Europa e títulos nacionais, mas ainda lhe falta uma Copa do Mundo e o título de melhor jogador do ano pela FIFA. Ele ainda não é Messi ou Cristiano Ronaldo (que jamais ganharam uma Copa do Mundo), ou Ronaldo Fenômeno ou Pelé, entretanto o produto Neymar consegue faturar em seis horas um milhão de euros (leia aqui) e fazer uma marca saltar quinhentos milhões de euros (leia aqui). Talvez pra seu público pouco importa o que ele faz em campo, como importa o que Messi faz.

Messi faz mágica em campo, ele é um super-herói no gramado, tipo X-Man. Mas fora dele não tem o carisma de Neymar. Não tem a influência que o brasileiro tem. E provavelmente é disso que se trata.

Se Neymar jamais chegar a ser o mágico que Messi é, ainda assim terá influência maior – a ponto de ser o garoto-propaganda de um país e não só de uma marca de lâmina de barbear.

Ele chegou lá jogando futebol, é claro, mas principalmente tirando fotos e fazendo vídeos que agradam seus seguidores. Chegou envolto em auto-elogios e em elogios dos amigos (que no seu caso também são celebridades com milhões de seguidores).

Acontece que isso não se diferencia muito na nossa vidinha mundana aqui, a dos boletos vencidos e números negativos no banco. Só muda, claro, a escala.

Também tentamos ser amados e elogiados nas redes sociais. De fotos de gatinhos e cachorrinhos a comidas e copos de cerveja, tentamos de tudo. Então, não é de se espantar que aquele banda que você ama ou aquela da qual você nunca ouviu falar faça o mesmo.

Na música, com uma ajuda de profissionais gabaritados, qualquer artista pode aumentar seus seguidores e, consequentemente, a influência dentro de seu universo. Há assessores de imprensa, planejadores de mídia, promotores e outros. E há amigos. Já falei por aqui sobre a mágica do poder do elogio e do bom mocismo, não custa reforçar. Não parece que a “qualidade” (assim, entre aspas) da música tenha qualquer importância.

Os tempos, eles estão mudando, disse há décadas Bob Dylan. E, caso você não tenha percebido, o consumo de música tem mudado também, o que influencia na forma de se descobrir ídolos e de se fazer música.

Olhando pra cinquenta anos atrás, as músicas eram feitas pra serem encaixadas com perfeição na programação das rádios: entre as canções ou bloco de canções de três minutos havia o espaço certo pra inserir a palavra do patrocinador; além disso, as longas introduções antes dos vocais permitiam com que o DJ falasse por cima da música, agilizando a programação. Os vinis de trinta e três rotações, ao contrário dos de quarenta e cinco, permitiam mais músicas no acetato, assim como a chegada do CD fez com que os artistas pensassem em discos com mais canções. A era dos singles voltou com força quando o iTunes inaugurou a venda de músicas a centavos de dólar.

Agora, estamos na época dos plays e replays. Quanto mais plays uma canção tem nos sistemas de streaming maior seu sucesso. Pra isso, o sistema de divulgação não pode ser o mesmo do passado, é preciso apelar pros amigos e pros amigos dos amigos. É preciso ter um bom network. Todos precisam trabalhar como vendedores daquela canção, um elogio aqui, um apupo ao artista ali, críticas são indesejáveis.

Dessa forma, Neymar não está assim tão longe do artista mais underground que você conhece. Cada um sobrevive como pode, cada um espalha a mensagem como dá. O público é minúsculo, mas ainda assim ele deve ser atingido com elogios e agrado dos amigos. Quem estiver fora da bolha desses amigos vai ter que ou virar amigo também (elogiando o trabalho deles) ou criar outra bolha de elogios e compartilhamentos. Se der pra viver assim da sua música, ótimo, caso contrário, é preciso inflar a moeda de troca com mais elogios.

Não é incomum, portanto, entrar nas redes sociais e ver artistas elogiando outros artistas como se todos fossem infalíveis, blogueiros e jornalistas elogiando artistas como se toda e qualquer criação fosse perfeita, promotores abraçando a causa pra vender seus festivais. Essa é a lógica que Neymar usa. Tem funcionado em todas as escalas, na proporção que a escala possibilita.

Há quem possa ponderar: “mas sempre foi assim, sempre tivemos o jabá pro jornalista elogiar uma obra ou a rádio tocar uma canção”. De fato, mas agora a moeda de troca chama-se elogio em público. É o jabá “gratuito”, o escambo de likes.

Evidentemente que não é uma crítica. Cada um se vira como dá. Mas numa época em que se visualizava (e se desejava) uma sociedade mais aberta ao próximo, ela vai se fechando cada vez mais em bolhas menores, onde só cabe o elogio e jamais o contraponto. Você não verá Lewis Hamilton ou Justin Bieber vir a público criticar Neymar caso ele, sei lá, perca um pênalti decisivo. Tampouco verá a banda do amiguinho criticar o disco do outro amiguinho se esse disco for terrível. A arte é o menos importante. O que importa são as conexões.

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