PENSE OU DANCE: É PROIBIDO PROIBIR

“E eu digo não
E eu digo não ao não
Eu digo: É!
Proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir…”

Esse é o refrão de “É Proibido Proibir”, música de Caetano Veloso (apresentada com vaias no Festival Internacional da canção de 1968). Foi nele que pensei assim que li os primeiros parágrafos da matéria de Juliana Gragnani, na Folha de São Paulo de 5 de outubro de 2013: “O cantor Roberto Carlos, que é contrário à publicação de biografias não autorizadas e já tirou de circulação obras sobre sua vida, conseguiu um apoio de peso. Os músicos Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Djavan e Erasmo Carlos agora estão a seu lado. Os sete cantores são fundadores do grupo Procure Saber, que, segundo a produtora Paula Lavigne, deve entrar na disputa para manter a exigência de autorização prévia para a comercialização dos livros”.

Sim, “autorização prévia” pra publicações. Em outras palavras, censura. Ou proibição, aquele ato que Caetano dizia, em tom quase ecumênico, ser proibido.

É uma óbvia afronta ao direito constitucional de expressão e informação. Um direito que Paula Lavigne, porta-voz do grupo, distorce, segundo a matéria: “‘usar esse argumento para comercializar a vida alheia é pura retórica’, diz Lavigne. Ela ressalta que o Procure Saber é contrário à comercialização, e não à publicação, das biografias. ‘Se alguém quiser escrever uma biografia e publicá-la na internet sem cobrar, tudo bem. O problema é lucrar com isso’, diz.

Ótimo, ela pede que os biógrafos e editores trabalhem de graça.

Já Djavan distorce a realidade: “Djavan disse que a liberdade de expressão pode causar injustiças ‘à medida que privilegia o mercado em detrimento do indivíduo’. ‘Editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação'”.

É sério. Djavan realmente acredita que biógrafos “ganham fortunas” com seus livros, ao estilo hollywoodiano.

E Lavigne termina com mais uma visão torta como argumento: “Corremos o risco de estimular o aparecimento de biografias sensacionalistas, em um país em que a reparação pelo dano moral é ridícula”. Ou seja, já que a Lei é “ruim” pra punir abusos e oferecer indenizações, melhor cortar logo o problema pela raiz: antes da possibilidade de informar o que se considera errado ou injusto, proibe-se a informação.

A jornalista da Folha, pra felicidade da lógica e deleite do bom senso, termina a matéria com uma informação lapidar: “Coerentemente, Lavigne pediu para ler esta reportagem antes de sua publicação. Sua solicitação foi negada”.

Jornalistas têm suas responsabilidades, mas apenas com a verdade, jamais com o protagonista da matéria; esse deveria se beneficiar do apoio do profissional à ética e à verdade – se a verdade não lhe for favorável, o problema está no ato do protagonista merecedor de ser levado a público, não é um problema de quem informa.

Mas Lavigne e sua turma, que um dia acreditaram ser proibido proibir, agora acreditam que dá pra proibir, sim, que só pode vir a público o que lhes convier. Querem institucionalizar uma História chapa-branca (com “h” maiúsculo).

Afora o fato de personalidades públicas serem de interesse público, com ações de impacto na sociedade (a luta dos artistas do Procure Saber contra a ditadura é notória) e, por isso, terem diminuído seu espectro de “privacidade”, suas histórias de falhas e acertos são simbólicas como capítulos da História da sociedade, exemplos a serem ou não serem seguidos. São – é bom reforçar – de interesse público.

Por outro lado, qualquer deslize cometido por biógrafos (ou jornalistas, ou editores) mal-intencionados deve sofrer sanção pela força da lei vigente ou pelo próprio mercado. Se a lei vigente é fraca e a Justiça, vagarosa, que se lute pra reparar essas duas falhas, e não pra alterar um princípio fundamental da sociedade democrática – o da liberdade de pensar, de se expressar e de criar obras a partir desses atos. Mudar leis e o funcionamento da Justiça demoram bem mais e é um caminho tortuoso que esses artista não estão dispostos a percorrer.

Entretanto, esse delírio de poder e isolamento que os artistas propõem não é novidade, muito menos valem a grandes nomes vendedores de discos. No subterrâneo brasileiro, há gente que se arvora com a possibilidade de editar textos, como se blogues e sites fossem seus canais de promoção, tais como assessorias de imprensa gratuitas. É compreensível, já que muitos blogues e sites (principalmente os indie-festivos) se prestam a isso. Mas não todos.

Há uma boa lista de casos de artistas que não gostaram disso ou daquilo numa matéria aqui publicada (normalmente com relação a opiniões) e pediram pra mudar o teor do que foi escrito. O Floga-se só altera o que foi publicado quando há erro de informação. Há casos – não poucos – em que o artista não gosta da foto publicada e pede pra ser alterada. Em um dos casos, diante da recusa, fomos “ameaçados” com a “punição” de não receber mais infos do tal artista. Chega-se a esse nível, o que é risível, de tão infantil.

A imagem pública de um artista é uma commodite importante na sua equação comercial, compreende-se isso. Por esse motivo é que quem deve cuidar dela é o próprio artista, e não o jornalista, blogueiro, roteirista ou biógrafo. Não quando se trata de textos isentos, informativos.

Talvez seja um problema do ser humano em lidar com a crítica ou com seu passado. Mas essa é só mais uma característica infeliz que merece entrar numa biografia, mostrando o quão falíveis e pequenas são as figuras públicas que desejam altares do povo.

— ATUALIZAÇÃO (em 10 de junho de 2015) —

O Supremo Tribunal Federal decidiu nesse dia que “é inconstitucional exigir autorização prévia para divulgação de biografias”. De acordo com a relatora, a ministra Carmen Lúcia, “é inconstitucional o entendimento de que é preciso autorização prévia dos biografados para publicação de obras bibliográficas ou audiovisuais. O entendimento contrário significa censura prévia” (veja matéria aqui).

Assim, a biografia “Roberto Carlos Em Detalhes”, escritor por Paulo Cesar de Araújo e lançada em 2007, que acabou por ser proibida pelo próprio Roberto Carlos, está livre pra ser editada e comercializada. Esse é o caso exemplar da vitória da Justiça. E da derrota dos que pretendiam calar a história.

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